Por Luiz Ferri de Barros - 15/12/2015
Foi lançada ontem – em 2005 – em Porto Alegre, a Coleção Mario Quintana, inaugurada com a reedição de seus três primeiros livros: A rua dos cataventos, Canções e Sapato florido. Outros quatro volumes serão publicados ainda este ano e, em 2006, ano em que se comemora o centenário de nascimento do poeta, os demais, totalizando 18 livros, entre os quais duas antologias.
Trata-se de estupenda homenagem esta que se faz ao poeta gaúcho. Parece feita sob medida para atribuir definitivo sentido à fina ironia de seus mais famosos versos, desde sempre nada aleatórios, nem meramente lúdicos: “Todos esses que aí estão/ Atravancando o meu caminho, / Eles passarão... eu passarinho!”
Não se trata da edição das “obras completas” do autor, observa a coordenadora da coleção, Tania Franco Carvalhal, que conheceu o poeta ainda menina, com ele conviveu em tertúlias poéticas, especializou-se em sua obra, e hoje é professora titular de Teoria Literária na UFRGS. Trata-se, sim, de uma reunião dos livros de que a Editora Globo é detentora dos direitos de publicação, o que corresponde a grande parte da obra de Quintana.
Os volumes da coleção obedecem à cronologia e ao conteúdo original de cada livro, recuperando a identidade das obras, ao delimitar com precisão o que ele desejou reunir em cada uma. Os prefácios são assinados por diferentes autores em cada volume. Ao final consta uma bibliografia sucinta e também uma breve cronologia da vida e da obra do poeta, o que é indispensável, mas talvez aborreça o leitor que venha a adquirir vários títulos, pela repetição do conteúdo. A muitos leitores talvez fosse mais interessante a reunião dos livros em um número menor de volumes, mas a estratégia da editora facilita o contato inicial com o poeta para aqueles que eventualmente se assustariam com volumes mais robustos.
A rua dos cataventos, em que se destacam temas evocativos da infância e juventude, traz os sonetos do autor publicados em 1940, como se fosse uma passagem obrigatória para a publicação de seus livros posteriores, em versos livres. Em Canções (1946) predomina o uso de versos heptassílabos, redondilha maior, tipo usual nas trovas e desafios e também nas cantigas folclóricas, infantis e de roda, de todas estas havendo várias no livro. Sapato florido (1948) inaugura sua produção de “poesia em prosa”, parte especialmente saborosa de sua obra.
A contribuição de Mario Quintana para as letras brasileiras não se limitou à poesia. Embora tenha escrito em prosa apenas um conto, que depois desprezou, foi incansável tradutor. Segundo Tania Carvalhal, ele traduzia sozinho, sem contar com auxiliares. Traduziu Marcel Proust, Virginia Woolf, Aldous Huxley, Joseph Conrad, Robert Grave, Guy de Maupassant, Somerset Maugham, Emil Ludwig, Giovanni Papini, Voltaire, Balzac, e... outros clássicos indispensáveis, como se quisesse provar que, além de passarinho, era não apenas um gaúcho não regionalista, como verdadeiramente universal.
SERVIÇO:
A rua dos cataventos. 72 págs.
Canções. 88 págs.
Sapato florido. 168 págs. Organização da coleção e fixação do texto: Tania Franco Carvalhal.
São Paulo. Editora Globo: 2005.
Entrevista com a organizadora da Coleção Mário Quintana.
Pernas dobradas, o poeta na cama escreve sobre uma prancheta
Luiz Barros: Como era Mario Quintana pessoalmente? Quais seus hábitos de trabalho na escrita?
Tania Carvalhal: Quando comecei a conviver com o poeta, era uma pessoa afável. Contam que era antes muito sisudo e quieto. Com os anos tornou-se uma figura muito popular e querida, conhecido não só pelos escritos no jornal Correio do Povo como também por circular no centro de Porto Alegre, em especial na Praça da Alfândega durante as Feiras de Livro. Muitas vezes escrevia na cama, com as pernas dobradas e em cima de uma plaqueta. Há fotos fixando essa posição de escrita.
LB: Nos primeiros livros da coleção, mesmo quando ocorrem cenas provincianas e temas folclóricos, não há traços de regionalismo rio-grandense. Existirá, nos outros, um poeta gaúcho?
TC: Não, se pensarmos em temas e em uso de localismos. Quintana não foi um poeta regional, como um Vargas Netto, por exemplo. É um poeta gaúcho por seu apego às cidades onde viveu – a Alegrete natal e a Porto Alegre, de adoção – mas é sobretudo um lírico universal, interessado no homem, nos temas essenciais – a morte, a infância, o tempo - e no cotidiano.
LB: Nestes três primeiros livros, há variações de forma e também nos temas, que evoluem e se modificam. Quantos Mario Quintana conheceremos ao final dos dezoito livros da coleção?
TC: Há três momentos essenciais na obra de Quintana. No primeiro período, de 1940 a 1951, são publicados seus cinco primeiros livros. Neles se percebe que o poeta já transitava por várias formas (do soneto ao verso livre) e por várias tendências, de um romantismo tardio a um simbolismo que foi passagem para a modernidade. O livro que encerra esse período – O aprendiz de feiticeiro – é essencialmente moderno e um dos mais significativos de sua obra. O segundo momento data dos anos 70 (em 1973 publica Caderno H, em 1977, A vaca e o hipogrifo) – livros nos quais mescla poemas e prosa, sem rima e sem verso, como fizera antes (1948) em Sapato florido. São livros que caracterizam a poesia de Quintana em sua modernidade, graças a essa mescla de verso e prosa que domina com precisão. O terceiro momento começa em 1976 – com a publicação de Apontamentos de história sobrenatural – e se completa, como se fora uma trilogia – com Esconderijos do tempo (1980) e Baú de espantos (1986). É a afirmação do poeta moderno que estabelece a ponte entre o mundo real e o surreal, revelando o lado mais dramático e profundo da poesia de Quintana.
Publicado originalmente no Diário do Comércio. São Paulo, 2005.
Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.
Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.
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