Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
1. A oitiva de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência é realizada por dois procedimentos: a escuta especializada e o depoimento especial, sendo que a Escuta Especializada é conceituada como “procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade” (BRASIL, 2017) e o Depoimento Especial como “procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária” (BRASIL, 2017), sendo ambos regidos pela Lei 13.431/2017, pelo Decreto 9.603/2018 e pela Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 299, de 05 de novembro de 2019.
2. A proteção jurídica brasileira direcionada à criança e ao adolescente é realizada mediante a construção da Doutrina da Proteção Integral, inaugurada com a constitucionalização dos direitos infantojuvenis em 1988 e esquematizada com a entrada em vigor da Lei 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, tendo por princípios norteadores os que seguem: prioridade absoluta; melhor interesse da criança e do adolescente e municipalização.
3. Paralela à Doutrina da Proteção Integral está a construção da Doutrina da Proteção Plural, a qual objetiva a adequação do microssistema protetivo direcionada à criança e ao adolescente à diversidade étnica, cultural e linguística, objetivando o reconhecimento da existência e resistência das infâncias pertencentes a povos indígenas e a Povos e Comunidades Tradicionais de modo geral.
No que tange à adequação étnica e linguística dos procedimentos de oitiva de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência e oriundas de povos e comunidades tradicionais, considera-se que:
A adaptação do depoimento especial aos universos culturais e sociolinguísticos dos povos e comunidades tradicionais, orientados por normas comunicativas e códigos de condutas particulares, é fundamental tanto para permitir que a comunicação seja efetiva, quanto para evitar que mais uma violência institucional seja perpetrada contra esses coletivos. Afinal, a criança vítima ou testemunha de violência que presta depoimento no âmbito de um processo judicial é duplamente vítima por fazer parte de povos e comunidades alvos de preconceito, discriminação e precarização e seus modos de vida instituídos ao longo do processo histórico de contato interétnico (BRASIL, 2022, p.12).
Contribuição importante para este estudo, referente à imposição de uma única forma de ser e dialogar com o Direito e demais normas sociais é realizada por Carlos Marés, no livro intitulado “O renascer dos povos indígenas para o direito”, considerando que:
A dimensão do preconceito, discriminação e etnocentrismo está clara nesta tentativa de unificar a religião, a língua, a cultura e o Direito, negando a diversidade. Apesar disto, é evidente a existência de línguas, culturas, religiões e direitos diferentes que até hoje sobrevivem, a duras penas é verdade, mas se mantém organizando a sua vida em sociedade segundo normas jurídicas que nada têm a ver com Direito estatal, porque são a expressão de uma sociedade sem Estado, cujas formas de poder são legitimadas por mecanismos diferentes das instâncias formais e legais (MARÉS, 2021, p.74).
A respeito da Doutrina da Proteção Plural e das diferenças entre esta e a Doutrina da Proteção Integral e a necessária adequação dos princípios que incidem sobre a proteção de crianças e adolescentes, Assis da Costa Oliveira destaca que:
Ao invés do princípio do melhor interesse da criança, a proteção plural estabelece o princípio da autodeterminação ou livre determinação dos povos como fundamento jurídico orquestrador da revisão e reconversão dos direitos, da perspectiva individual do direito à vida para outra coletiva do direito à vida dos povos indígenas (OLIVEIRA, 2014, p. 136).
Assim, a Doutrina da Proteção Plural reconhece a existência destas diversidades e adequa tanto as normas quantos os procedimentos direcionados à criança e ao adolescente, respeitando o princípio do melhor interesse da criança, porém adequando-o culturalmente.
Dentre estes procedimentos, situam-se os da Escuta Especializada e do Depoimento Especial, os quais são realizados na totalidade dos órgãos e serviços do Sistema de Garantia de Direitos e que devem, imprescindivelmente, ser adequados cultural, étnica e linguisticamente às infâncias pertencentes a povos indígenas e a povos e comunidades tradicionais.
4. A respeito desta adequação étnica, cultural e linguística aos procedimentos da Escuta Protegida, especificamente ao momento do Depoimento Especial, a Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 299, de 05 de novembro de 2019, a qual entrou em vigor na data da sua publicação, determina o que segue referente
à necessidade da existência de profissional com formação ou conhecimento na área de antropologia na equipe técnica; intérpretes e a produção de protocolo de atendimento e de realização de depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas de violência, oriundas de Comunidades e Povos Tradicionais:
Art. 10. Os profissionais especializados que atuarão na tomada do depoimento especial deverão ser preferencialmente aqueles que integram o quadro de servidores da respectiva unidade da federação, que compõem as equipes técnicas interprofissionais, as quais deverão receber capacitação específica para essa atividade.
Parágrafo único. No caso de crianças e adolescentes pertencentes aos Povos e Comunidades Tradicionais, a equipe técnica deverá ser integrada por profissional com formação ou conhecimento na área de antropologia.
Art. 13. Os tribunais estaduais e federais deverão manter cadastro de profissionais necessários a realização do depoimento especial, inclusive dos povos e comunidades tradicionais.
Art. 18, § 2º Se necessário à efetiva comunicação com criança e adolescente de origem indígena ou que pertença a minorias étnicas ou linguísticas, será garantido intérprete ou outro meio eficaz.
Art. 29. O Fórum Nacional da Infância e da Juventude – Foninj editará, no prazo de cento e oitenta dias, protocolo de atendimento e de realização de depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas de violência, oriundas de Comunidades e Povos Tradicionais, que deverá ser observado por todos os tribunais estaduais e federais.
Dessa forma, a resolução em comento é a norma responsável pela edição do Manual Prático de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes Pertencentes a Povos e Comunidades Tradicionais, documento será analisado a seguir.
5. O Manual de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes Pertencentes a Povos e Comunidades Tradicionais foi produzido mediante a metodologia de pesquisa-ação participativa e colaborativa, realizada em comarcas dos estados do Mato Grosso do Sul, Amazonas, Roraima e Bahia e sua importância justifica-se no fato de que “o Estado Brasileiro abriga uma grande diversidade étnica, sociocultural e linguística de povos e comunidades tradicionais (BRASIL, 2022), de modo que os povos e comunidades tradicionais atendidos pelas comarcas citadas acima são: indígenas (31 povos, falantes de 22 línguas distintas); ciganos (etnias Rom e Calon); quilombolas e comunidades de terreiro.
O manual Prático em tela possui os seguintes itens: apresentação; antecedentes; introdução; o fenômeno da violência contra crianças e adolescentes de PCTs e diretrizes para o atendimento a crianças e adolescentes de PCTs. Deste último item, destacamos os subitens: da perícia antropológica; dos intérpretes forenses e mediadores culturais; do local para a coleta do depoimento especial e da consulta e participação dos PCTs.
O referido Manual possui um conjunto de diretrizes, a serem: 1) diversidades dos povos e comunidades tradicionais: infâncias, modos de proteção e pluralismo jurídico; 2) consulta e participação dos povos e comunidades tradicionais; 3) identificação étnica e língua da criança ou do(a) adolescente vítima ou testemunha de violência oriunda de povos e comunidades tradicionais; 4) local para a coleta do depoimento especial dos povos e comunidades tradicionais; 5) planejamento da audiência de depoimento especial dos povos e comunidades tradicionais; 6) entrevistadores forenses; 7) intérpretes forenses e mediadores culturais; 8) adequação do Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense de Crianças e Adolescentes Vítimas ou Testemunhas de violência oriundas dos povos e comunidades tradicionais; 9) perícia antropológica; 10) organização interna do Judiciário para a tomada de depoimento especial; 11) articulação do Judiciário com o sistema de garantia de direitos; 12) formação permanente; 13) povos indígenas isolados e de recente contato; 14) planejamento, monitoramento e avaliação (BRASIL, 2022, p.19).
A respeito da consulta e da participação dos povos e comunidades tradicionais na construção dos fluxos de atendimento e nos procedimentos concernentes ao Depoimento especial, o Manual destaca que
Os povos e as comunidades tradicionais, por meio de suas lideranças e representações legítimas, devem ser convidados a participar ativamente na implementação das diretrizes instituídas por este Manual prático.
Os saberes, as práticas, os modos de resolução de conflitos, as redes de parentesco e os cuidadores tradicionais envolvidos no cuidado com a infância e a juventude devem ser articulados aos atendimentos prestados pelas instituições do sistema de garantia de direitos, de modo a realizar a adequação intercultural dos fluxos, dos protocolos e dos procedimentos adotados, entre eles o do depoimento especial. Tais adequações são fundamentais para a efetivação dos direitos à proteção integral e a não revitimização de crianças e adolescentes dos povos e comunidades tradicionais (BRASIL, 2022, p.21)
Ainda no que se refere às diretrizes para o Depoimento Especial, especificamente no tocante à identificação étnica e da língua da criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência oriunda de povos e comunidades tradicionais, o documento em análise afirma o que segue:
Os sistemas de informação judicial devem abrir campos para o preenchimento das informações, levando em consideração o direito à autodeclaração, referente à etnia, à língua, ao povo e à comunidade tradicional ao(à) qual pertence a vítima ou testemunha que participa dos processos judiciais (BRASIL. 2022, p.23).
Tendo em vista o Depoimento Especial objetivar primordialmente evitar a revitimização e a ocorrência de demais violências institucionais, o local para a oitiva das vítimas ou testemunhas deve ser acolhedor e proporcionar proteção ao depoente, por este motivo, quando o depoente for pertencente a povos ou comunidades tradicionais, a escolha e preparação do local a ser realizado o Depoimento Especial deve ser dialogada com as lideranças, de modo que
Os critérios para definir as características de um espaço protetor e acolhedor para essas crianças e esses(as) adolescentes variam de acordo com a cultura do povo e comunidade tradicionais ao qual pertencem. Desse modo, os Tribunais de Justiça deverão avaliar, juntamente com os líderes e representantes dos povos e comunidades tradicionais, qual o melhor local para fazer a oitiva das crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. A possibilidade de realizar o depoimento especial nos territórios desses coletivos deve ser considerada como uma das formas de efetivar o direito da criança ou do(a) adolescente a ser ouvido(a) em um ambiente apropriado e acolhedor (BRASIL, 2022, p. 23-24)
Possuem especial importância mais duas diretrizes do Manual: a que trata dos Intérpretes Forenses e dos Mediadores Culturais e o sobre a Perícia Antropológica. Referente aos primeiros, o Manual leciona o que segue:
Os intérpretes forenses designados pelo juízo para atuar na tomada de depoimento especial das vítimas ou testemunhas de violência oriundas de povos e comunidades tradicionais devem pertencer ao mesmo povo da criança ou do(a) adolescente que será ouvida em audiência.
Caberá ao intérprete não apenas fazer interpretação linguística, mas também colaborar para o acolhimento da vítima ou testemunha de violência e para a construção da empatia realizada no primeiro estágio da entrevista forense (rapport). Para que essa ambientação ocorra da melhor forma possível, convém que o intérprete seja do mesmo gênero que a vítima ou a testemunha de violência (BRASIL, 2022, p. 26).
Já quanto à Perícia Antropológica, afirma que “deverá responder a quesitos relacionados às formas tradicionais de resolução de conflitos e de proteção das crianças e dos(as) adolescentes empregadas pelos povos e comunidades tradicionais” (BRASIL, 2022, p.28).
6. Por fim, consideramos que o Manual, o qual possui força recomendativa, apresenta-se como de relevante contribuição para o atendimento crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência e oriundos de Povos e Comunidades Tradicionais, não apenas por indicar a necessidade de se modificar o modo de fazer e saber do Judiciário, em observância da diversidade étnico cultural, mas também por ser um instrumento de informação aos povos indígenas e aos PCTs de modo geral dos direitos que possuem e que estão organizados e disponibilizados como direcionamento à prática, para além dos textos de leis, bem como por reconhecer a importância e valor da interdisciplinariedade na construção de fluxos de atendimentos étnica e culturalmente adequados.
Notas e Referências
BRASIL, Decreto Presidencial nº 9.603, de 10 de dezembro de 2018. Regulamenta a Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.
________. Diagnóstico Situacional de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes Pertencentes a Povos e Comunidades Tradicionais. Brasília. 2022.
________. Lei nº 13.431, de 04 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.
________. Manual de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes Pertencentes a Povos e Comunidades Tradicionais: sumário executivo. Conselho Nacional de Justiça. Brasília, 2022.
________. Resolução nº 181, de 10 de novembro de 2016. Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Dispõe sobre os parâmetros para interpretação dos direitos relacionados ao atendimento de crianças e adolescentes pertencentes a povos e comunidades tradicionais.
________. Resolução n° 229, de 05 de novembro de 2019. Dispõe sobre o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, de que trata a lei nº 13.431/2017.
OLIVEIRA, Assis da Costa. Indígenas crianças, crianças indígenas: perspectivas para construção da doutrina da proteção plural. Curitiba: Juruá, 2014
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, Convenção nº 169 sobre povos indígenas e tribais e Resolução referente à ação da OIT. Brasília: OIT, 2011 1v.
PÖTTER, Luciane. Vitimização secundária infantojuvenil e violência sexual intrafamiliar: por uma política pública de redução de danos. 3.ed. rev. atual e ampl. Salvador, Juspodivm, 2019.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. O renascer dos povos indígenas para o Direito. 1ª ed., (ano de 1998). 10ª reimpr./Curitiba: Juruá, 2021.
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