Por Adrian Barbosa e Silva - 06/07/2015
Enquanto declaração pública de intenções, indubitável que um manifesto proponha pauta crítica de reflexão. No campo penal, essa crítica deve reagir à governamentalização – prática social que sujeita indivíduos a mecanismos de poder que reclamam verdade –, ou seja, deve ser o movimento pelo qual o sujeito interroga a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade, conformando verdadeira arte de inservidão voluntária (Foucault, 1990, p. 39).
A hipótese se justifica porque, como explicita Sozzo (2006, p. 356), os vocábulos teóricos da criminologia aportam articulações discursivas nas quais tramitam racionalidades, programas e tecnologias governamentais sobre a questão criminal, é dizer, configurações em cujo marco de verdade se (re)produzem relações de poder.
Dessa forma, o realismo marginal, proposto em manifesto, proclama fundamentos desajustadores da “política de verdade” embutida no oficial(izado) modelo integrado de ciências criminais – caracterizado por uma dogmática narcísica, ideologicamente defensivista e auxiliada pela criminologia de corte positivista – em face do punitivismo na era do grande encarceramento, problematizando o papel dos atores das agências de punitividade no que se refere à proteção dos direitos humanos.
Assim, em Criminología: Aproximación desde un margen (1988), En Busca de las Penas Perdidas (1989) e Hacia un Realismo Jurídico Penal Marginal (1993) Zaffaroni diagnostica a perda de legitimidade dos sistemas penais latino-americanos e desenvolve o “realismo marginal”, princípio epistemológico que partindo da crise do discurso jurídico-penal busca reconstruí-lo e elaborar, em última análise, um modelo integrado condizente com a realidade operacional do potestas puniendi.
No entanto, o que seria “marginal”? Zaffaroni (1998, p. 170) indica três sentidos: (1.º) a localização da América Latina na periferia do poder planetário, cujo vértice é ocupado pelos países centrais; (2.º) a necessidade de se adotar a perspectiva dos fatos de poder latino-americanos próprios de sua relação de dependência com o poder central; e, (3.º) a compreensão de que a grande maioria da população latino-americana marginalizada é objeto da violência do sistema penal.
Segundo o mestre portenho, impossível seria validar teoria alijada da realidade social que não concebesse a incapacidade estrutural do sistema penal em cumprir com suas funções declaradas (proteção de bens jurídicos e redução da criminalidade). Ademais, sintomáticas seriam as importações teóricas que correspondessem a traduções traidoras, dando azo à colonização científica por teorias alienígenas incondizentes com as especificidades culturais dos países da periferia marginal (Sozzo, 2006).
Importa notar que em terras tupiniquins o positivismo se enraíza na obra As Raças Humanas e a Responsabilidade Penal no Brasil, de Nina Rodrigues, catedrático da Faculdade de Medicina da Bahia, o qual propagou a inferioridade racial dos negros com fundamento na pretensa marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade, tornando, em reação, incontestavelmente pertinente o sagaz questionamento de Zaffaroni: “Como pôde Lombroso florescer na Bahia?”.
Isso porque a importação e incorporação do discurso biologicista ao poder punitivo, enquanto instrumento verticalizador voltado ao progresso civilizatório, converteu as sociedades colonizadas em imensos campos de concentração para os inferiorizados nativos, aos quais se atribuiu lombrosianamente a qualidade de inimputáveis e, a partir disso, se racionalizou lógica de exclusão.
Na América Latina, a criminologia positivista deu azo a novo modelo integrado de ciências criminais análogo ao inquisitório, e, desde sua perspectiva racista-evolucionista-colonialista, propiciou verdadeiro apartheid criminológico, revivificado nos governos autoritários (doutrina da segurança nacional), desconstituídos nas últimas décadas, mas que ainda guardam ranços de populismo punitivo (Sozzo, 2009) presentes nas políticas e legislações penais nacionais.
Em direção ao “genocídio tecnocolonialista”, denuncia Zaffaroni (1998) que os sistemas penais latino-americanos comportam nível tão alto de violência que matam mais que a violência privada. São mortes por: confrontos armados, grupos parapoliciais de extermínio, torturas, título de “exemplo”, erro ou negligência, motins carcerários, violência exercida contra presos nas prisões, doenças não tratadas nas prisões, suicídios etc., vitimizando inclusive os agentes do sistema penal. O Brasil, em especial, segundo o Conselho Nacional de Justiça, apresenta o terceiro maior índice de encarceramento no mundo (715.592 mil presos), e, conforme a Anistia Internacional, apenas com as polícias militares carioca e paulista, registra nos autos de resistência maior letalidade do que os países que possuem pena capital (42,16% a mais, em 2011).
A emergência da assunção do projeto realista implica a incorporação de dados sociais à construção teórica, notadamente as advindas do paradigma da reação social e criminologias críticas, bem como, adoção de horizonte de projeção do discurso jurídico-penal a partir de onde o poder punitivo se manifesta, assumindo de vez a tarefa de latinizá-lo, não podendo mais ignorar os fatos de poder circunscritos no controle punitivo militarizador-verticalizador-vigilante-disciplinar (Foucault, 2012), mapeando o sistema penal até sua ramificação subterrânea de violência (Aniyar de Castro, 1984).
Desde a reverberação das violências do sistema penal – “meio civilizador destruidor de civilização” (Nietzsche, 2005, p. 243) –, o saber dos juristas requer urgente atitude deslegitimadora da pena (teoria negativa/agnóstica da pena) que conceba o fracasso das teorias positivas. Isto seria possível através da reconstrução do direito penal pelo direito humanitário, assim, a pena não teria justificativa jurídica, mas política (Tobias Barreto) enquanto ato beligerante limitado ao máximo por uma política de redução de danos – re-etização do discurso jurídico-penal.
Por fim, e em síntese, adverte Carlés (2012, p. 271) a necessidade de atenção às “(...) consequências da intervenção do poder punitivo do Estado nos conflitos que se apresentam em nossas sociedades, renunciando a toda possível legitimação do sistema penal”. Segundo o autor, imprescindível seria “renunciar também a tentação de importar teorias dos países centrais sem que passem previamente pelo filtro de nossa realidade e das necessidades que criam os problemas específicos de nossa margem”, para que não ocorra importação dos problemas que aquelas mesmas teorias buscam resolver. Esta colonização teórica não pode fazer com que “a árvore nos impeça de ver o bosque”.
Publicado originalmente no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, ano 22, nº, 264, novembro de 2014, pp. 11-12.
Disponível em: https://www.academia.edu/9121317/Manifesto_Realista_Marginal
Notas e Referências:
Aniyar de Castro, Lola. Derechos humanos, modelo integral de la ciencia penal y sistema penal subterráneo. In: Zaffaroni, Eugenio Raúl. Sistemas penales y derechos humanos en América Latina. Primer Informe. Buenos Aires: Depalma, 1984.
Carlés, Roberto Manuel. ¿Ver el árbol o ver el bosque? El realismo jurídico penal marginal como principio epistemológico fundamental para un modelo integrado de las ciencias penales en América Latina. In: Borges, Paulo César Corrêa (Org.). Leituras de um realismo jurídico-penal marginal. Homenagem a Alessandro Baratta. São Paulo: Cultura Acadêmica/NETPDH, 2012.
Foucault, Michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. 25. ed. São Paulo: Graal, 2012.
_______. Qu’est-ce que la critique? [critique et Aufklärung]. Bulletin de la Société Française de Philosophie, Paris, v. 82, n. 2, p. 39, avr.-juin, 1990.
Nietzsche, Friedrich Wilhelm. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Sozzo, Máximo. Populismo punitivo, proyecto normalizador y “prisión-depósito” en Argentina. Sistema penal & violência, Porto Alegre, v. 1, n. 1, jul.-dez., p. 33-65, 2009.
Sozzo, Máximo. “Traduttore Traditore”. Traducción, importación cultural e historia del presente de la criminología en América Latina. Reconstruyendo las criminologías críticas. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2006.
Zaffaroni, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas: deslegitimación y dogmática jurídico-penal. 2.ª reimpresión. Buenos Aires: Ediar, 1998.
Adrian Barbosa e Silva é Mestrando em Direitos Humanos pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará (PPGD/UFPA). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Pesquisador do Centro de Estudos sobre Intervenção Penal (CESIP/CNPq), do Grupo de Pesquisa Filosofia e Castigo (UFPA/CNPq) e do Grupo Europeu Criminología y Justicia (CyJEspaña). Advogado criminalista. E-mail: <adrian@sssa.adv.br>.
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