Por Alceu de Oliveira Pinto Junior - 10/04/2015
No cárcere, não é uma opção do preso simplesmente cumprir a sua pena e retornar à sociedade. Antes do sonhado retorno deve sobreviver ao tempo da pena. Num sistema abandonado, com altos índices de analfabetismo e violência, sem a convivência com a família, sem assistência médica adequada, disputando o um espaço onde menos de metade de uma vaga pode lhe ser destinada, a “lei da cadeia” se impõe. Aquele preso que não pertence a um determinado grupo será perseguido por todos. A segurança está num grupo, qualquer que seja:
O indivíduo não é mais uma entidade estável provida de identidade intangível e capaz de fazer sua própria história, antes de associar-se com outros indivíduos, autônomos, para fazer a história do mundo. Movido pela pulsão agrária, é, também, o protagonista de uma ambiência factual[1] que o faz aderir, participar magicamente desses pequenos conjuntos escorregadios que propus chamar de tribos.[2]
Esse necessário agrupamento, então, é decorrente daquilo que Maffesoli denominou tribalização[3], existente em todas as sociedades como reconhecimento de grupo. A tribalização (tribos urbanas, neotribalismo, tribalismo pós-moderno, ou simplesmente tribos) é uma expressão que passou a ser utilizada para definir grupos determinados com características de pertencimento próprias.[4]
Ocorre que no cárcere essa tribalização se apresenta como imprescindível para a sobrevivência. O resultado é que o preso não consegue, e por vezes não quer, desvincular-se dessa sua nova tribo quando do término da pena. Mantem afinidade com o grupo fora da prisão e para ele dedica seus esforços.
A ousada proposição maffesoliana de afirmar um papel central na sociedade ocidental contemporânea, do comunitário e do grupal, deve ser compreendida na sua radicalidade. É uma radicalidade corajosa e quase solitária no momento de sua elaboração. Neste momento o preso somente consegue posicionar-se em função da dicotomia (ou, segundo Maffesoli, do dilema) indivíduo/sociedade. E esse grupo, por mais que negue ser o objetivo em si mesmo, é o criador de pertencimento (ou criado por sentimentos de pertencimento) que, não sendo retrato de uma perfeição moralizante e normativa, tem lados obscuros e normas rígidas de conduta, lealdade e obediência.
A indução ao grupo é feita pelo próprio Estado. Primeiro, assegura que os presos experimentem o cárcere como privação absoluta. Amontoados como restos em corredores úmidos e fedorentos, os presos, em regra, experimentam a pena em galerias; onde estão, às vezes, mais de uma centena deles. È o alerta de Salo de Carvalho:
Entenda-se: o regime prisional efetivo no Brasil – absolutamente ilegal – é o da prisão coletiva onde estão todos os tipos de delinquentes separados não pela gravidade dos crimes pelos quais foram condenados, mas, normalmente, pelos laços de pertencimento, fidelidade, ou submissão a grupos organizados no mundo do crime, na medida da rivalidade entre eles. Depois de trancafiá-los assim, expondo os mais frágeis a todo o tipo de violência física ou sexual, o Estado encarrega-se de submeter-lhes a uma noção de disciplina totalmente heterônoma procurando alcançar um controle interno equivalente à conduta de corpos dóceis. Incentiva, então, procedimento como a delação e oferece tratamento privilegiado aos internos que se revelarem ‘úteis’ ao objetivo de alcançar a dominação sobre o conjunto da massa carcerária.[5]
O indivíduo, quando recolhido ao cárcere, perde a individualidade (e a dignidade). Sofre com o verdadeiro desprezo do Estado pela sua condição, posto que a pena, por vezes, é entendida como o merecido sofrimento. Esse desprezo estatal é primeira indicação da necessidade associativa contra o poder estatal.
Seja qual for a tirania, onde a opressão se exprime com violência [...] nenhum regime resiste muito tempo aos efeitos do distanciamento interior induzidos pelo desprezo. Pois, ao fim, essa distância interior explode num levante incontrolável [...] ou exprime-se através da desafeição.[6]
No momento do encarceramento o indivíduo encontra-se em novo ambiente, fora do seu grupo anterior. Não tem mais a força anterior nem o poder sobre si mesmo. Não poderá agora ser um “alguém” isolado. Sua sobrevivência depende de ser um “ninguém” num grupo:
Perdendo-se por uma multiplicidade de aberturas, o indivíduo suscita as relações que fazem a pessoa, mas, ainda, perdendo o que parece ser a solidez de um poder sobre si e sobre os outros, ele pode adquiri uma força bem mais forte, que é a da “sobrevida”, que se pode também compreender como um suplemento de vida. Isso, o astuto Ulisses nos ensina quando, no momento de deixar a caverna do ciclope que acaba de cegar, ele dá-lhe seu nome, “Ninguém”, e com isso se salva. Esse reflexo de autoconservação nos ensina que, levando ao extremo a dilaceração da abertura, a pessoa pode se tronar “o” ninguém, o que pode garantir a liberdade essencial. Ser “o” ninguém pode fazer tomar parte de uma energia vital primordial que escapa às determinações da singularidade.[7]
Já há no ser humano uma tendência a “adesividade”, essa “potência da massa” que ultrapassa cada indivíduo fazendo-o membro de um “genius” coletivo, criando a sociedade (ou associatividade) no seu meio natural e social[8]. O tribalismo se caracteriza pela saturação do sujeito, da subjetividade de massa, do “narcisismo de grupo”[9] e de outras formas do “urgrund” coletivo, ou seja, o que é o fundo de todo estar-junto: o que lhe serve de suporte, o que é seu capital de base.
Este é o ponto nodal filosófico do tribalismo. É preciso tê-lo em mente, pois suas consequências sociais ainda são insuspeitas. Remetendo a uma análise de Gilbert Simondon, eu diria que o que está em jogo é o “mais que um”. Isso faz com que cada um participe de uma espécie de pré-individual. O mundo e o indivíduo não podem mais ser pensados a partir da “reductio ad unum”, da qual A. Comte construiu o esquema e que está na base dos diversos sistemas sociológicos que lhe sucederam. É preciso retomar o mecanismo de participação mágica: com os outros (tribalismo), com o mundo (magia), com a natureza (ecologia). Em todos os casos não se trata mais de enclausuramento na fortaleza do próprio espírito, em uma identidade (sexual, ideológica, profissional) intangível, mas, bem ao contrário, da perda de si, do dispêndio e de outros processos de desgaste.[10]
O tribalismo é, então, uma declaração de guerra ao sistema consubstanciado no indivíduo, em Deus, no Estado ou nas instituições. A geração na tribo de sincretismos religiosos ou filosóficos, maneiras de se vestir, de se alimentar, técnicas de corpo, tudo isso é o “mais que um”. Trata-se do deslocamento do indivíduo à identidade estável que exerce sua função em conjuntos contratuais, à pessoa que representa papéis na tribo que se afetuou (relacionamento afetual) por – raramente - identidade, ou – normalmente – necessidade de sobrevivência. Traduz uma “identificação sucessiva derivada de uma matriz comum”[11].
Chama à atenção a mudança da maneira de avaliar os reagrupamentos sociais. Maffesoli afirma que podemos usar a análise sócio-histórica que M. Weber faz da “Comunidade Emocional” (Gemeinde). Ele esclarece que se trata de uma categoria que pode servir de revelador de situações presentes. A grande característica que se pode atribuir a essas comunidades emocionais são: o aspecto efêmero, a “composição cambiante”, a “ausência de uma organização” e a estrutura quotidiana (Veralltäglichung). Esses grupamentos são encontrados em todas as religiões e, geralmente, à parte dos enrijecimentos institucionais.[12]
Essas características são também típicas daqueles grupos criminosos ditos organizados. São grupos que não primam pela agregação espontânea, mas obrigatória; tem uma grande variação na composição de seus membros; não há uma estrutura hierárquica clara, mas oportunista, dependendo dos membros disponíveis no sistema prisional e fora dele. Igualmente são encontrados na maioria dos estabelecimentos prisionais, especialmente os mais rígidos na contenção dos presos. Esta comunidade emocional é instável, aberta, o que pode torna-la, em muitos aspectos, indiferente à moral estabelecida. Ao mesmo tempo ela não deixa de suscitar um conformismo estrito entre seus membros, “existe uma lei do meio, à qual é muito difícil de escapar. Conhecemos os aspectos extremos dela: a máfia, as associações de ladrões”[13].
A variação dos membros do grupo não põe em risco a sua existência em decorrência do que Maffesoli chama de “potência subterrânea”. Trata-se de uma maneira de entender a “perdurância societal” escudada no seu simbolismo de força. Independe da gerencia de seus membros sobrevivendo a mudança destes. O desaparecimento de um comando faz surgir, naturalmente, o comando seguinte.[14] Trazendo para o tribalismo prisional, fica atrelada ao mito de que somente o grupo pode reagir aos desmandos, injustiças ou desvantagens impostas pelo sistema carcerário. Embora a sustentação das tribos prisionais se dê pela corrupção e pela ameaça, independe dos que a compõe resultando num método de sobrevivência que se adequa ao sistema. Com o desaparecimento de um líder surge outro naturalmente como aquele que se impõe ao grupo restante. A aceitação (tribal) é necessária para a continuidade do grupo. O renascimento (para Maffesoli: caótico, desordenado, efervecente) é a garantia de continuidade das vantagens ou segurança oferecida pela tribo, condições que não seriam alcançadas isoladamente.
Convivendo na tribo prisional e dela extraindo benefícios, entre os quais, a própria sobrevivência, o preso desenvolve um “laço”, com o significado de obrigação[15]. A tribo sustenta-se pela corrupção e pela ameaça que, por vezes, não pode ser exercida com os meios ou pelos membros existentes no sistema prisional. O laço maffesoliano estende-se, portanto, para fora do sistema prisional. É no exterior dos presídios que a engrenagem tribal movimenta seus recursos, normalmente apoiados no tráfico de entorpecentes, venda e aluguel de armas e proteção pessoal. O preso, enquanto beneficiário do poder da tribo no sistema prisional, quando solto deve arcar com os custos do tempo que sobreviveu ou recebeu benefícios no sistema prisional. A “dívida”, agora, deve ser paga com as suas habilidades.
Considerando o perfil do preso, não é possível imaginar que a sua contribuição para a tribo se dará de forma regular e honesta. Fora das grades do cárcere o agora egresso passa a servir ao próprio sistema que o ameaçava (posto que ainda pode ser ameaçado), participando das atividades ilícitas que sustentam a tribo prisional.
[...] o comportamento do grupo tende a predominar. Na sequência. Pode-se elaborar uma legitimação ou uma racionalização, mas continua em primeiro lugar o fato de guardar para si, para os próximos – parentela ou grupo ampliado – o monopólio do poder e o seu exercício. [...] cada um em seu domínio é tão mais tribal na medida em que mais se esforça para negar essa realidade.[16]
Nesta condição passa a reincidir na senda criminosa. O círculo da reincidência pela tribalização se fecha. Dificilmente suportaria as agruras do cárcere sem a proteção da tribo e passa a reincidir para manter a tribo protegendo. Caso não tivesse participado da tribo, não teria, então, essa obrigação e alguma chance alcançaria na tentativa ressocializante. A prisão, portanto, gera a própria prisão.
Notas e Referências:
CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. 3ª Ed. Ampl. e Ver. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2008. p. 220.
MAFFESSOLI, Michel. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Tradução de Juremir Machado da Silva. 4ª edição. Porto Alegre : Sulina. 2011.
MAFFESSOLI, Michel. No fundo das aparências. Tradução de Bertha Halpern Gurovitz. 4ª edição. Petrópolis : Vozes. 2010.
MAFFESSOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 4ª edição. Rio de Janeiro : Forense. 2010.
[1] As terminações em “al”, como no neologismo factual, implicam para Maffesoli a ênfase no caráter orgânico dos fenômenos ou sentimentos.
[2] MAFFESSOLI, Michel. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Tradução de Juremir Machado da Silva. 4ª edição. Porto Alegre : Sulina. 2011. p 15.
[3] MAFFESSOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 4ª edição. Rio de Janeiro : Forense. 2010.
[4] MAFFESSOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 4ª edição. Rio de Janeiro : Forense. 2010. p. 15.
[5] CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. 3ª Ed. Ampl. e Ver. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2008. p. 220.
[6] MAFFESOLI, Michel. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Tradução de Juremir Machado da Silva. 4ª edição. Porto Alegre : Sulina. 2011. p 95.
[7] MAFFESSOLI, Michel. No fundo das aparências. Tradução de Bertha Halpern Gurovitz. 4ª edição. Petrópolis : Vozes. 2010. p 273.
[8] MAFFESSOLI, Michel. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Tradução de Juremir Machado da Silva. 4ª edição. Porto Alegre : Sulina. 2011. p 164.
[9] MAFFESSOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 4ª edição. Rio de Janeiro : Forense. 2010. p. 15.
[10] MAFFESSOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 4ª edição. Rio de Janeiro : Forense. 2010. p. 16.
[11] MAFFESSOLI, Michel. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Tradução de Juremir Machado da Silva. 4ª edição. Porto Alegre : Sulina. 2011. p 190.
[12] MAFFESSOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 4ª edição. Rio de Janeiro : Forense. 2010. p. 30.
[13] MAFFESSOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 4ª edição. Rio de Janeiro : Forense. 2010. p. 45.
[14] MAFFESSOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 4ª edição. Rio de Janeiro : Forense. 2010. p. 73.
[15] MAFFESSOLI, Michel. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. 4ª edição. Rio de Janeiro : Forense. 2010. p. 227.
[16] MAFFESSOLI, Michel. A transfiguração do político: a tribalização do mundo. Tradução de Juremir Machado da Silva. 4ª edição. Porto Alegre : Sulina. 2011. p 54.
Alceu de Oliveira Pinto Junior é Graduado em Direito pela UFSC; Mestre e Doutorando em Ciência Jurídica pela UNIVALI; Diretor dos Campi Kobrasol São José e Biguaçu da UNIVALI; Coordenador do Curso de Direito da UNIVALI – Campus Kobrasol; Professor de Direito Penal, Direito Processual Penal; Criminologia e Didática do Ensino Superior; Professor Convidado Permanente da ESA-OAB/SC e da ENA/CFOAB; Advogado Criminalista.
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