Por Luiz Ferri de Barros - 15/09/2015
Machado de Assis é o maior escritor brasileiro, porém é Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, a maior obra-prima de nossa literatura.
Machado retratou a vida urbana no final do Século XIX, em especial a carioca – uma vida que se modernizava buscando novos valores e costumes em meio às molduras de uma sociedade que rapidamente se tornava arcaica, à época do final do Império, da Abolição, do início da República. Seus personagens são retratados com sutileza, perspicácia psicológica e fina ironia; e a fluência da narrativa é insuperável.
Em sentido oposto, em meados do Século XX, já em curso a industrialização brasileira que levaria à acelerada e irreversível urbanização, Rosa alçou os olhos para uma parte da vida e do território brasileiro que – ainda que compusessem com grande força o presente na ocasião – mais se assemelhavam a um passado que coexistia intocado à margem do chamado progresso brasileiro, e assim o escritor dedicou-se a retratar a realidade e o misticismo dos sertões.
Para além do que escreveram, porém, em grande parte foi a forma com que escreveram – isto é, como cada um fez uso da língua portuguesa – o que granjeou a ambos o lugar de distinção que ocupam nas letras brasileiras.
Segundo dados apresentados no encontro “Movimentos Atuais da Literatura Brasileira”, organizado pelo Itaú Cultural na Flip (Feira Literária Internacional de Paraty) em 2013, Machado de Assis e Guimarães Rosa mantêm-se nos primeiros lugares entre os 10 escritores mais estudados nos programas de doutorado em literatura brasileira no Brasil e no exterior (O Estado de São Paulo – 4/07/2013).
A Machado muito se deve para a depuração da língua portuguesa. Fixou uma forma leve, direta e enxuta de escrita, que nos soa coloquial ainda que vazada na expressão mais pura e correta do idioma. Com naturalidade ele faz o que quer da narrativa e do leitor, avançando e retrocedendo na história sem jamais perder o fio da meada ou deixar que o leitor se perca nela. Radicalmente diferente de Guimarães Guimarães Rosa, portanto, que não se preocupa em indicar onde estão as veredas para a travessia dos labirintos do sertão linguístico com que constrói a complexa narrativa de sua grandiosa obra-prima.
Esse jeito machadiano, simples e elegante, prima pela concisão e pela precisão no uso das palavras, fixando talvez a máxima expressão da norma culta da língua portuguesa no Brasil. Trata-se de um padrão da mais absoluta pureza e correção, sem nada de hermético ou empolado – no inverso do que ainda hoje se vê em gente que fala ou escreve buscando na pompa insinuar cultura ou conhecimento. Pelo contrário, lê-se Machado de Assis com a mesma facilidade com que se escuta a narrativa oral de uma história.
Sua fluência leva a crer que escrevesse com naturalidade total, de primeira mão ou quase, sem qualquer dificuldade no encadeamento da narrativa ou na escolha das palavras. O fato de suas obras, inclusive os romances – esses na forma de folhetins –, terem sido primeiro publicados em jornais foi determinante para seu estilo objetivo. E sua iniciação na imprensa como aprendiz na tipografia diz muito: ele aprendeu concretamente, como requeria o ofício de tipógrafo, a compor as palavras uma a uma a partir das letras e as sentenças a partir de cada palavra cuidadosamente composta sobre o tabuleiro.
Não cabe classificar nenhum dos dois escritores como pertencentes a escolas literárias específicas, ainda que críticos e historiadores da literatura o façam. Por sua grandeza são únicos. Aos livros que Machado de Assis escreveu na maturidade não se aplicam tais categorizações reducionistas. E Guimarães Rosa, ao romper com as narrativas lineares ou testemunhais do regionalismo, com Grande Sertão: Veredas elevou-se às dimensões maiores da literatura – essas dimensões do simbólico e do universal em que se buscam o sentido da vida e da morte, do destino, do mundo, das coisas... onde o homem mais crente questiona a existência do diabo e, assim, a própria existência de Deus.
Grande Sertão: Veredas é portentoso, um livro extraordinário, de dimensões épicas, e que se inclui entre as grandes obras da literatura universal. Diferentemente da fluência de escrita e de leitura que se encontra em Machado, a linguagem de Rosa é tão agreste quanto o sertão e os personagens que retrata, não sendo fácil no começo penetrar na história. Mesclando o linguajar oral sertanejo com o idioma escrito formal, inventando palavras, pervertendo a sintaxe – fazendo, enfim, gato e sapato da língua portuguesa – a linguagem de Guimarães Rosa causa estranhamento a quem a enfrenta pela primeira vez. Mas é exatamente a linguagem uma das grandes fontes de encantamento da leitura, que passa a fluir naturalmente quando, após as páginas iniciais, nos rendemos à cadência da história e ao ritmo da fala de Riobaldo, o ex-jagunço que em Grande Sertão: Veredas narra sua vida em longo monólogo no qual se entremeiam causos e reflexões, a princípio desencontrados até o ponto em que todas as histórias e personagens passam a convergir, ganhando sentido e unidade.
O estilo de Rosa é uma construção linguística experimental e revolucionária, fruto da imaginação do autor, sua erudição e longas pesquisas de campo, quando em viagens que fez acompanhando vaqueiros que tocavam boiadas, anotou histórias, palavras e modos de falar. O que resulta de sua criação estilística não é a reprodução do modo de falar sertanejo, como se poderia pensar, mas sim uma estilização desta fala, artisticamente construída.
A linguagem do romance é indissociável da história que nele se narra – e vice-versa. Não é possível conceber-se a mesma história contada noutra forma, nem outra história que se conte daquele jeito – prova disto é que não deram certo nenhuma das tentativas de imitação do estilo de Rosa.
Costuma-se sugerir ao leitor que ainda não leu Guimarães Rosa que inicie por Sagarana, seu melhor livro de contos, onde se encontra “A hora e a vez de Augusto Matraga”, por exemplo. Por apresentarem narrativas mais diretas e linguagem mais acessível, os contos são excelente introdução ao universo do autor.
Em Grande Sertão: Veredas, o cenário e o enredo são sertanejos, mas a obra diz respeito a vivências, sentimentos e valores universais do homem. As reflexões de Riobaldo, em especial as de ordem metafísica que surgem a partir dos conflitos psicológicos que o atormentam, são tão importantes quanto os fatos que narra. O romance guarda um segredo que será revelado nas páginas finais. Nas primeiras edições da obra, Guimarães Rosa em nota pedia para que não se contasse tal mistério, que é desconcertante para o personagem e para o leitor, para quem ainda não tivesse lido o livro. Esse segredo custou a Riobaldo insuportável sofrimento e levou-o a conjecturar que dor tão dilacerante somente poderia ter advindo de ele ter certa feita pactuado com o demônio, vendendo-lhe a alma para ter o corpo fechado nas batalhas e tiroteios de que foi invicto vencedor como chefe de bando de jagunços.
Mas ele não sabe se o diabo existe ou não. Não sabe se seu destino foi coisa urdida pelo demônio ou fruto da vida de homem humano. Sua perplexidade diante dessa dúvida existencial é o cerne do romance, o fio condutor de toda a narrativa. Trata-se de um “Fausto sertanejo”, como já se disse, mas Riobaldo é um Fausto inteiramente diferente do Fausto de Goethe. Goethe nos apresenta um personagem que se encontrou com Mefistófoles em carne e osso, pode-se dizer, com ele conversando e pactuando explicitamente. Nada foi assim com Riobaldo, pois ele não tem certeza se porventura pactuou com o demônio certa vez, à noite, num átimo, em pensamento, no meio de um redemoinho de vento ao rés do chão.
Da mesma forma que se pode advogar a favor ou contra a fidelidade de Capitu, a mais enigmática personagem de Machado de Assis (em Dom Casmurro), sem jamais chegar-se a uma conclusão, em Grande Sertão: Veredas não cabe a certeza de que o personagem, afinal, acreditasse ou não no diabo. Até porque Riobaldo pensa de forma ambígua – repare o leitor na sintaxe de uma das mil e uma vezes em que Riobaldo nega a existência do demo: ele diz que o diabo “Não é, mas finge de ser”.
Originalmente publicado na Revista da OAB/CAASP. São Paulo, agosto de 2013.
Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.
Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.
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