Lula e a imagem do Cristo barroco: em que consiste o acervo presidencial privado? – Por Ricardo Antonio Andreucci

17/03/2016

Novamente vem à baila, nos meios de comunicação e nas redes sociais, a polêmica envolvendo o encontro, pela Polícia Federal, de 23 caixas lacradas em uma agência do Banco do Brasil na Rua Libero Badaró, no centro de São Paulo, lá depositadas em nome da esposa e de um filho do ex-presidente Lula, desde 21 de janeiro de 2011.

Na oportunidade, segundo relatório da Polícia Federal apresentado ao juiz Sérgio Moro, foram encontrados 186 objetos classificados como “jóias e objetos de arte”, dentre eles o crucifixo barroco entalhado em madeira, datado do século XVI, que guarnecia o gabinete da Presidência da República durante o governo Lula.

Depurando o aspecto político da polêmica instalada, as indagações que restam dizem respeito aos precisos e claros contornos daquilo que pode ou não levar consigo um ex-presidente da República ao término de seu mandato e também do que constitui presente pessoal e do que integra o seu acervo presidencial privado.

Lula, em seus oito anos de governo, recebeu aproximadamente 1,4 milhão de presentes e cartas, que vão desde retratos de família e camisetas de times de futebol, até espadas com pedras preciosas incrustadas.

A Lei nº 8.394, de 30 de dezembro de 1991, regulamentada pelo Decreto nº 4.344, de 26 de agosto de 2002, estabelece, em seu art. 2º, que “os documentos que constituem o acervo presidencial privado são na sua origem, de propriedade do Presidente da República, inclusive para fins de herança, doação ou venda”, integrando o patrimônio cultural brasileiro e sendo declarados de interesse público, tendo a União preferência no caso de venda e não podendo ser alienado para o exterior sem manifestação expressa dela.

De acordo com a lei, os acervos documentais privados dos presidentes da República ficam organizados sob a forma de sistema que compreende o conjunto de medidas e providências a serem levadas a efeito por entidades públicas e privadas, coordenadas entre si, para a preservação, conservação e acesso aos acervos documentais privados dos presidentes da República, mediante expresso consentimento deles ou de seus sucessores. Esse sistema deve atuar de forma integrada aos sistemas nacionais de arquivos, bibliotecas e museus. Inclusive, esse sistema dos acervos documentais privados dos presidentes da República terá participação do Arquivo Nacional, Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC), Museu da República, Biblioteca Nacional, Secretaria de Documentação Histórica do Presidente da República e, mediante acordo, de outras entidades públicas e pessoas físicas ou jurídicas de direito privado que detenham ou tratem de acervos documentais presidenciais.

Ao término do mandato presidencial, os documentos tratados pela Secretaria de Documentação Histórica do Presidente da República serão entregues ao titular, sendo o Departamento de Documentação Histórica responsável pela mudança, já que o art. 17 estabelece textualmente que “as despesas decorrentes desta lei correrão à conta das dotações orçamentárias próprias da Presidência da República e dos órgãos e entidades participantes do sistema de acervos documentais privados dos presidentes da República.”

O art. 3º do referido Decreto nº 4.344/02, por seu turno, é expresso ao dispor que “os acervos documentais privados dos presidentes da República são os conjuntos de documentos, em qualquer suporte, de natureza arquivística, bibliográfica e museológica, produzidos sob as formas textual (manuscrita, datilografada ou impressa), eletromagnética, fotográfica, filmográfica, videográfica, cartográfica, sonora, iconográfica, de livros e periódicos, de obras de arte e de objetos tridimensionais.”

O mesmo dispositivo excepciona os documentos de natureza arquivística produzidos e recebidos pelos presidentes da República, no exercício dos seus mandatos, e os documentos bibliográficos e museológicos recebidos em cerimônias de troca de presentes, nas audiências com chefes de Estado e de Governo por ocasião das "Visitas Oficiais" ou "Viagens de Estado" do presidente da República ao exterior, ou quando das "Visitas Oficiais" ou "Viagens de Estado" de chefes de Estado e de Governo estrangeiros ao Brasil.

Assim, deve-se fazer clara e objetiva distinção entre os presentes e demais objetos recebido pelo Presidente da República no âmbito pessoal (que constituem o seu acervo privado) e os presentes e demais objetos recebidos pelo Presidente da República nas audiências com chefes de Estado e de Governo por ocasião de visitas oficiais ou viagens de chefes de Estado e de Governos estrangeiros ao Brasil.

No que toca ao polêmico crucifixo barroco, cumpre apurar se essa peça de arte e história cultural já fazia parte do acervo do Palácio do Planalto antes de Lula ocupar suas dependências, ou se foi mesmo presente dado ao ex-presidente por um amigo, no início de 2003, que o comprou de Dom Mauro Morelli, então bispo da Diocese de Duque de Caxias (RJ). Também é necessário que se apure a origem das demais jóias e obras de arte localizadas no malfadado depósito no Banco do Brasil.

Caso sejam encontrados, dentre os objetos localizados nas 23 caixas lacradas, obras de arte, jóias e demais valores que não fazem parte do acervo privado do ex-presidente da República, restará configurado, em tese, o crime de peculato-apropriação, previsto no art. 312, “caput”, primeira parte, do Código Penal, apenado com reclusão de 2 a 12 anos e multa.

De todo modo, é direito de qualquer ex-presidente da República ter seu acervo privado, composto de presentes e outros objetos recebidos durante o exercício da presidência, podendo carregá-lo consigo ao cabo de seu mandato, às expensas da Presidência da República, exceção feita, como já ressaltado, aos objetos recebidos em cerimônias de troca de presentes nas audiências com chefes de Estado e de Governo , visitas e viagens oficiais.

Vale mencionar, por derradeiro, que o Decreto nº 4.081, de 11 de janeiro de 2002, que instituiu o Código de Conduta Ética dos Agentes Públicos em exercício na Presidência e Vice-Presidência da República, impõe a todo agente público em exercício na Presidência e Vice-Presidência da República (incluindo o próprio Presidente), o dever de pautar-se pelos princípios da legalidade, impessoalidade, publicidade, eficiência, moralidade e probidade, mantendo clareza de posições e decoro, com vistas a motivar respeito e confiança do público em geral, sendo-lhe vedado receber presentes, salvo os que não tenham valor comercial ou que não ultrapassem o valor de R$ 100,00. Recebendo presente de maior valor e não podendo devolvê-lo ou recusá-lo, estes deverão ser incorporados ao patrimônio da Presidência da República ou destinados a entidades de caráter cultural ou filantrópico.


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