Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
Jogos de videogame não existem mais, ou menos, não são mais o centro da indústria de jogos digitais. Explico: Jogos planejados e lançados, buscando resultado expresso no número de vendas, tal qual filmes ou músicas, não são mais o objeto de consumo desse mercado. A capacidade de produção de valor dessa mercadoria está condicionada à permanência dos jogadores e sua reciprocidade com a plataforma – aqui, esse termo, “plataforma”, é a palavra-chave, os jogos de grande participação do mercado só sobrevivem porque se constituem como plataformas de microvendas, publicidade ou atrelados a outros serviços de assinatura pelos usuários. Portanto, a mercadoria “jogo de videogame” não é mais a simples afirmação de uma mídia física ou conteúdo baixado da internet que se expressa em uma história jogável ou uma mecânica que permita partidas, mas um sistema mercantilizado de acesso e atualização contínua.
Uma das principais ferramentas dessas plataformas chamadas ainda de jogos de videogame são as “loot boxes”, que consistem no produto digital que remunera a plataforma por meio de algum custo estabelecido, recompensando usuários com itens relacionados aos seus jogos. Essas recompensas são aleatórias, podendo dar resultados abaixo do custo fixo de uma “caixa” ou, julgando pela boa sorte do usuário, resultar em valiosos itens – inclusive, capazes de adquirir valorização relevante “fora” dos jogos, sendo trocados pelos usuários em mercados alternativos. Essa prática tem sido colocada em pauta por um problema específico, tal natureza de jogo, baseada no sorteio, caracteriza um jogo de azar, ou seja, ocorre uma transação econômica sob expectativa de um retorno não garantido – pelo contrário, um retorno bastante improvável. Já existem pesquisam que comprovam sua relação direta com a doença da aposta, ludopatia, associando essa prática ao vício em jogos de azar[1]. No Reino Unido, por exemplo, essa prática já é considerada jogo de azar e, consequentemente, vedada para crianças[2]; na Bélgica, já é proibido por lei – alterando a forma como jogos são consumidos por lá, tendo esses mecanismos bloqueados[3]; na China, jogos com “loot boxes” são legalmente obrigados em apresentarem as chances de obter cada item[4]; na França e na Alemanha, de outra forma, essa prática não é considerada ilegal.
No Brasil, não há específico regulamento sobre, aplicando-se a mesma ideia dos Estados Unidos da América de autorregulação das empresas de videogame acerca do tema. Entretanto, tendo em vista a atual legislação brasileira, é possível apresentar um caso consistente acerca da caracterização desse mecanismo como jogo de azar. Primeiramente, desde o decreto-lei 9.215 de 1946, há uma proibição para jogos de azar no Brasil, tendo em vista considerar o jogo como algo degradante – principalmente orientado por princípios moralistas religiosos, mas independentemente, proíbe os jogos de azar. Embora existam projetos de lei em andamento que visem a liberação do jogo, atualmente, qualquer forma desses está proibida – portanto, não há debate sobre a ilegalidade das “loot boxes” se assim a considerarmos, todavia, elas se mantém pela especificidade técnica que foge da determinação do óbvio: “tem cheiro, tem cor e tem forma” de jogo de azar, mas, tecnicamente, não é assim considerado – até mesmo pela defasagem temporal que se estabelece a proibição aos jogos e a ausência de entidades regulatórias dos videogames no Brasil.
Nesse sentido, na dificuldade de classificar, formalmente, as “loot boxes” como práticas de jogo de azar, textos como os de Fantini, Fantini e Garrocho (2019), se apegam à regulação difusa dos direitos constitucionais ligados à preservação da dignidade da pessoa humana e àqueles atrelados aos direitos do consumidor e do Estatuto da Criança e do Adolescente – como o reconhecimento da vulnerabilidade desses, principalmente se tratando de crianças, também, aquelas ligados ao abuso da publicidade. Essa visão é importante, prepara um processo de amadurecimento em relação à massividade do mercado dos videogames e sua importância na sociedade do consumo – forjando mercadorias em tempo-real e condicionando necessidades –, assim, se espera uma regulação eficiente e esclarecida acerca do que são esses jogos digitais contemporâneos e quais são os limites de suas transações internas. Entretanto, é preciso dar um passo além e reconhecer uma questão estrutural que sustenta esse mercado e promove essas práticas de monetização predatórias dos videogames: o estabelecimento de uma economia política de plataforma, ou o capitalismo de plataforma.
A monetização incessante desses videogames, transformados em plataformas de negócios constantes, não mais ligados há uma história com começo, meio e fim, está ligado a esse novo padrão de produção de valor no capitalismo informacional. As empresas de videogame passaram a ter outro negócio, nada a ver com o mercado criativo dos videogames, mas de intermediários de transações econômicas – algo que Falcão, Marques e Mussa (2020), ao estudar essa transformação (do mercado criativo dos jogos à agente financeiro) da Blizzard, afirmam ser uma colonização do lúdico, ou seja, uma colonização da lógica dos videogames em nome da plataformização da sociedade, ligado ao intenso movimento de monetização que a alimenta. Segundo o pesquisador sobre a indústria de jogos, Luiz Sakuda (2017), esse cenário como “novo espírito do capitalismo” na indústria de jogos digitais, estabelecendo uma lógica excludente de plataformas que se estabelecem de forma monopolística – tendo em vista que buscam perpetuar seus jogos pela dependência econômica dos seus usuários, para que continuem sendo capazes de jogar a partir de certo investimento, mesclando de forma indissociável as produções criativas da indústria com seus componentes de monetização. O capitalismo que “se desloca”, conforme Dowbor (2020), contempla as plataformas como forma de controle de atividades múltiplas, ou seja, não é acaso que cada vez mais empresas que nada têm a ver com a produção efetiva de videogames e seus enredos sejam a principal controladora da continuidade dos jogos.
As “loot boxes” nada mais são que um mecanismo de monetização radical utilizado por essas plataformas, sua regulação é importante e essencial para a sociedade, todavia, tratá-la como uma especificidade longe da história do capitalismo é recair em um buraco regulatório que evita enxergar a complexidade dessas plataformas, que se utilizam de mecanismos concebidos em tempo real e individualizados, mesmo que continuamente massivos, para captação de usuários – não sendo a mera transação econômica entre gamer e plataforma o único mecanismo de extração, sendo a valorização de seus dados pessoais e de seu comportamento também essencial mecanismo de extração de valor, algo que Zuboff (2019) chama de extração de mais-valor comportamental. Há uma economia política informacional que amplia os lucros capitalistas por meio da assimetria informacional que os usuários possuem em relação aos sistemas dessas plataformas, sendo assim, seja expresso na compra de itens, em sorteios ou na mercantilização dos dados pessoais, há uma estrutura profundamente desigual de produção de valor – na qual a retribuição das plataformas é mínima frente a recíproca dos usuários de jogos de videogame. Esse momento da história da economia política tem sido responsável pela hiperexploração do trabalho, pela violação da privacidade dos dados pessoais e afeta a liberdade de uso da internet, portanto, mais que um ajuste de práticas, é preciso entender que as “loot boxes” não são um acaso histórico, mas o produto dessa, o condicionamento da indústria dos jogos à uma realidade brutal de espetacularização mercantilizada da vida cotidiana. É uma reflexão já iniciada pelo mundo, que complexifica o debate e merece mais atenção.
Notas e Referências:
DOWBOR, Ladislau. O capitalismo se desloca: novas arquiteturas sociais. São Paulo: Edições Sesc, 2020. Disponível em: https://dowbor.org/wp-content/uploads/2020/05/Dowbor-O-capitalismo-se-desloca-Edicoes-SescSP-2020.pdf. Acesso em: 20/10/2020
DRUMMOND, Aaron; SAUER, James. Video game loot boxes are psychologically akin to gambling. Nature Human Behaviour, v. 2, n. 8, p. 530-532, 2018. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41562-018-0360-1.
FALCÃO, Thiago; MARQUES, Daniel; MUSSA, Ivan. #BOYCOTTBLIZZARD: capitalismo de plataforma e a colonização do jogo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 2, p. 59-78, 2020. Disponível em: https://periodicos.uff.br/contracampo/article/download/38578/pdf. Acesso em: 20/10/2020.
FANTINI, Laiane; FANTINI, Eduardo; GARROCHO, Luís Felipe. A regulamentação dos loot boxes no Brasil: considerações éticas e legais acerca das microtransansações e dos jogos de azar. SBC – proceedings of SBGames. 2019. Disponível em: https://www.sbgames.org/sbgames2019/files/papers/IndustriaFull/196985.pdf. Acesso em: 20/10/2020.
SAKUDA, Luiz Ojima. Plataformas digitais e o novo espírito do capitalismo: estudo sobre a indústria de jogos digitais. 2017. Disponível em: http://portal-assets.icnetworks.org/uploads/attachment/file/99769/01_ARTIGO-LUIZ-OJIMA_PT_AF__2_.pdf; Acesso em: 20/10/2020.
ZENDLE, David; CAIRNS, Paul. Video game loot boxes are linked to problem gambling: Results of a large-scale survey. PloS one, v. 13, n. 11, p. e0206767, 2018. Disponível em: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0206767. Acesso em: 20/10/2020.
ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power: Nova Iorque: Profile Books, 2019.
[1] Ver: Zengle e Cairns (2018); e Drummond e Sauer (2018). Lembrando que artigos fechados não devem ser vistos por meio de sites como “sci-hub.se”, jamais.
[2] Notícia disponível em: https://gizmodo.uol.com.br/reino-unido-classificar-loot-boxes-jogo-de-azar/
[3] Notícia disponível em: https://www.bbc.com/news/newsbeat-49674333
[4] Notícia disponível em: https://publications.parliament.uk/pa/cm201719/cmselect/cmcumeds/1846/184606.htm
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