"Little boy" e "fissões nucleares" congêneres

14/08/2016

 Por Périsson Otávio Rodrigues – 14/08/2016

Um conceito, assim como uma flor ou um inseto, tem seus ambientes e seus territórios. Toda uma etologia do conceito, por meio da qual não se pode mais separar seus componentes do ambiente concreto em que eles se depositam. O que ocorre, ao contrário, quando certo conceito é levado para um outro ambiente? Quais são os acontecimentos que ocorrem com os conceitos quando estes se desterritorializam? [1]

No dia 06 de agosto de 1945 Hiroshima experimentava a maior fissão nuclear de urânio da história da humanidade, conhecendo o que o pior da crueldade, do distúrbio, da estupidez, gana pelo poder e habilidade humanas é capaz de produzir.

O funesto espetáculo grotesco de insanidade, de autoria estadunidense – e que para muito além de atentado esteve – foi responsável pela morte de centenas de milhares de civis, trazendo à tona os limites da débil razão humana no uso do conhecimento científico. Sua causa imediata: a bomba de Hiroshima, “carinhosamente” chamada de “little boy”; a mediata, a sede de poder (é plenamente aceitável, porém, a inversão causal)!

Hoje, entretanto (e talvez desde todo o sempre), a dizimação de centenas de milhares de pessoas não mais depende de fissões nucleares. A guerra e sua crista de pus que dissemina perversidades é absurdamente silenciosa, maliciosamente muda; e a silenciosa arma de supressão de vidas em massa se chama fome, arma colossal, barata e irretorquivelmente ameaçadora do direito de viver, direito esse, que a práxis historicamente demonstrou não ser plenamente aplicável por meio da edição de constituições, codificações, leis e decretos – ora, quão antigo é o iníquo e o absurdo; quão antiga é a universalidade do erro!

A silenciosa e colossal arma (canhão jamais calado), via de regra, não tem lugar em noticiário envolvente. Não é alegoria midiática. Pelo contrário, pois que intersecciona a cruel realidade de milhões de humanos com o sistema capitalístico vigente, depravado, molestador, assassino e moedor de carne. Para a apropriação de adornos suntuosos e posição no cume social, pois, a continuidade da miséria, a massiva e sistemática destruição humana sem que seja necessário o pretexto guerra, põe-se como imprescindível (Gilles Deleuze), e sua existência, determinante.

Deve-se, nesta esteira, “concluir que esta exploração e esta opressão sejam necessidades absolutamente inerentes à própria existência da sociedade humana?” [2]. É possível uma resposta segura e honesta sem que nos emocionemos?

Pouco, ou quase nada se fala acerca de miserabilidades produtoras de riqueza (não há interesse que disso se saiba, por obviedade), de dominação, de falsas democracias, artificialidades ficcionais, criações imaginárias e delirantes de (inimigos) indesejáveis, enxerto social de admissão de “necessidades” absolutamente desnecessárias ou abolições várias - haja devaneio dos que se submetem à mentira, amando, (in)conscientemente, a fraude. Grande é a estafa. Igualmente grande a farsa! E irretorquivelmente grande é a obstaculização de verdades urgentes.

Esta ausência de cognição não é própria da patuleia ou dos desprovidos de maiores luzes, eis que as frias paredes da academia igualmente operam para colaborar e impulsionar a mentira e perpetuidade de esdrúxulos devaneios, pois que preconceitos hereditários, educação e uma instrução absolutamente falsa nos solidifica em herméticas falácias.

Proudhon [3], debruçando-se sobre a questão atinente à miserabilidade humana e seu enfrentamento pela academia, bem discorre:

É sempre a mesma questão de desigualdade de fortunas, que tanto ruído fez há um século atrás, e por uma estranha fatalidade reproduz-se [sic] sem cessar nos programas acadêmicos, como se fosse um verdadeiro nó dos tempos modernos.

A igualdade [sic] portanto, seu princípio, seus meios, seus obstáculos, sua teoria, os motivos de seu adiamento, a causa das iniqüidades [sic] sociais e providenciais: eis o que é preciso ensinar ao mundo, apesar dos sarcasmos da incredulidade.

Sei muito bem que os pontos da Academia não são tão profundos e que ela, como um concilio [sic], tem horror às novidades, [...]. [grifos meus].

A insensibilidade acadêmica em relação ao pauperismo humano, bem como a anestesia de educadores em masturbações acadêmicas que de tão abstratas nada são que estéreis e desconstrutivas, não foram, porém, objeto de única crítica:

De resto, desde que os “doutrinários” apareceram, o “gênio” verdadeiro ou pretenso tenta tomar o cetro do mundo, e sabemos o que isto nos custou. Nós vimos esses homens de ciência em ação, tanto mais insensíveis quanto mais estudaram, tanto menos amplos em suas idéias [sic] quanto mais tempo passaram a examinar algum fato isolado sob todas as suas faces, sem nenhuma experiência de vida, porque durante muito tempo não tiveram outro horizonte senão as paredes de seu queijo, pueris em suas paixões e vaidades, por não terem sabido tomar parte nas lutas sérias, e nunca aprenderam a justa proporção das coisas [4]. [grifos meus].

Falta-nos eclodir, oxigenar a realidade, desnudá-la, alterá-la, destroçá-la na direção de um rebanho um tanto quanto menos domesticado e catalogado. Na direção da emancipação humana; do conhecimento de que há, sim, quem tema que o medo acabe; e os que assim pensam (digo, no sentido de alterar a forma de percepção social da realidade), qualquer que seja a lógica que os tenha levado neste direcionamento, são considerados anomalias do organismo social, pois que não automatizados de maneira a externar o pensar “polido” e hegemonicamente admissível – esta filosofia (é importante que se diga) é hostil à economia e à política (e, por que não dizer, à própria religião).

Todavia, o contrário é diuturnamente gestado e naturalizado na biomassa social, impulsionando a dinâmica da vida moderna com idêntica autoridade da havida antes da teoria heliocêntrica de Copérnico, quando se acreditava, ao amparo do geocentrismo aristotélico, que o planeta terra, e não a estrela solar, era o centro do universo – quão incompreendidos são os que proclamam a primazia da realidade!

A história sempre é contada do ponto de vista de quem vence – o sopro de quem vende direcionado para onde ele quiser; o significado de palavras, como “atentado” e “terror”, por exemplo, explicado ao alicerce de dicionário cuja propriedade é de quem as define; e a ótica do vencedor, não raras vezes, é a mais obscura e sórdida, albergada, entretanto, em hermético e falacioso conto de “belas cores” facilmente reverenciado por olhares desatentos – que são tantos que não cabem em um milhão de palmas da mão!

A rosa de Hiroshima (como ironicamente chamada por Vinícius de Moraes), dispõe, hoje, de distintas e requintadas vestes. É multifacetada; e muito embora as vestes sejam pela maioria veneradas (lembremo-nos de que a opinião da maioria não é, e nunca foi, padrão de ética ou Justiça), nada são que engrenagens de mutilação, dilaceração social e aprisionamento:

Tem-se dito coisas muito bonitas sobre a necessidade de repartir o que se possui pelos que não tem nada. Mas se alguém se lembra de por este princípio em prática é logo advertido de que todos estes grandes sentimentos são bons nos livros de poesia, mas não na vida prática. “Mentir é aviltar-se, rebaixar-se”, dizemos nós, e toda a existência civilizada torna-se uma colossal mentira. Hipocrisia e sofisma tornam-se a segunda natureza do homem civilizado. Mas uma sociedade não pode viver assim; precisa voltar à verdade ou desaparecer [5].

Poder-se-ia objetar não ser a fome uma necessidade econômica e o acúmulo de riquezas sinônimo de genocídio?

E mesmo diante desse estado de coisas, contudo, a mentira exerce horrendo fascínio, pois que muitos são seus adoradores e amantes (é necessário que nela se acredite, pois!).

Assim é que se mostra imperiosa a domesticação do rebanho, tarefa árdua e infinita:“El rebanho desconcentrado nunca acaba de estar debidamente domesticado: es uma batalla permanente” [6].

Bem expõe Delleuze e Guatani ao referirem que:

Isso pode ser percebido nos informes da polícia ou do governo, que pouco se preocupam com a verossimilhança ou com a veracidade, mas que definem muito bem o que deve ser observado e guardado. [7] [grifos meus].

É chegada a hora, portanto, de aceitar a verbalizar com exacerbada força que todos, independentemente da vida pretérita, do local de vida ou aptidões, tem o direito de viver [8]. Esta é a importante pedra de toque! Esta é, com efeito, a anamnese imprescindível e intransponível.

Mostra-se necessária, portanto, uma virada ideológica para que nos apropriemos da ciência de que é o pensamento quem cria a realidade – tarefa prodigiosa!

Dizer-lhes-ia, pois, que a paz não gera lucro, e que é infinitamente mais difícil de geri-la que o conflito – embora o contrário pareça!

Bem, o espetáculo traz sensações e, pode-se afirmar, não é um fim em si mesmo! Já as expressões e significados, resultado do ponto de vista de quem os define.

SAPERE AUDE!


Notas e Referências:

[1] DELLEUS, Guilles e FÉLIX, Guattari. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia. v. 3. Tradução de Aurélio Guerra Neto et alii. Rio de Janeiro. Ed. 34. 1996. (COLEÇÃO TRANS). pg. 3.

[2] BAKUNIN, Mikhail. Deus e o Estado. Tradução: Plínio Augusto Coêlho.  Ano da publicação original: 1882. Ano da digitalização: 2002. pg. 18-19. Disponível em https://pt.scribd.com/doc/217593835/BAKUNIN-Mikhail-Deus-e-o-Estado-pdf.

[3] PROUDHON, Pierre-Joseph. Sistema das Contradições econômicas, ou, Filosofia da Miséria, tomo 1; tradução de J.C. Morel. São Paulo: Ícone. 2003. pg. 75.

[4] CAFIERO, Carlo. RECLUS, Elisée. Apresentação escrita como advertência à primeira edição de “Deus e o Estado”, cujo título não é de autoria de Bakunin. Fragmento da 2ª edição do Império Cnuto-Germânico e a Revolução Social. Genebra. Juraciana. Tradução: COELHO, Plínio Augusto Coêlho. p. 06.

[5] KROPOTKIN. Piotr Alexeyevich. A Conquista do Pão. Organização Simões. Rio de Janeiro. 1953. pg. 07.

[6] CHOMSKY, Noam. RAMONET, Ignácio. Cómo nos venden la moto Informatión, poder y concentración de medios. p. 26.

[7] DELLEUS, Guilles e FÉLIX, Guattari. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia. v. 2. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. Rio de Janeiro. Ed. 34. 1995. (COLEÇÃO TRANS). pg. 8.

[8] Neste sentido KROPOTKIN. Piotr Alexeyevich. A Conquista do Pão. Organização Simões. Rio de Janeiro. 1953. pg. 12.


Périsson Otávio Rodrigues

. Périsson Otávio Rodrigues é Advogado, membro da Comissão de Ciências Criminais e Segurança Pública da OAB/SC, Subseção de Balneário Camboriú/SC. Secretário Geral da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SC, Subseção de Balneário Camboriú/SC. Co-fundador e Secretário Geral da ACAD (Associação Catarinense de Advogados pela Democracia. Abolicionista e anarquista. Graduado em Direito pela UNIVALI – Universidade do Vale do Itajaí.


Imagem Ilustrativa do Post: 49425-Hiroshima // Foto de: xiquinhosilva // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/xiquinho/5105052712/

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura