Linchamentos: as "dimensões ocultas" da justiça e da moralidade

28/07/2015

 Por Pedro Scuro Neto  - 28/07/2015

Barbárie! Barbárie! Barbárie! No entanto, precisamos entender com distância e isenção, não justificando, mas compreendendo esse fenômeno que nos atormenta. Pois não há espaços vazios; a violência ocupa o lugar de uma Justiça que já não satisfaz a ninguém.

Leoberto Brancher, juiz de Direito

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Um homem de 29 anos tentou assaltar um bar em São Luís (MA), mas foi impedido por um grupo de pessoas e espancado até a morte. Na mesma ocasião foi linchado também um adolescente. Segundo a Polícia, as roupas do homem foram rasgadas e as mãos, pernas e tronco presos a um poste de luz. Agredido com socos, chutes, pedradas e garrafadas, não resistiu e, por conta de uma hemorragia, perdeu a vida ainda no local. No relatório das autoridades só deixou de constar que um policial, ao chegar ao local, em vez de socorrer a vítima ou deter os responsáveis, sacou o celular do bolso e passou a filmar a cena.

No Brasil, no ano passado ocorreram pelo menos três episódios semelhantes: em janeiro, um adolescente suspeito de assalto foi amarrado por 14 homens em um poste no Rio de Janeiro e linchado. No mês seguinte, em Teresina, outro suspeito de roubo foi espancado e arremessado sobre um formigueiro com as mãos e os braços amarrados (à época, um jornal estrangeiro referiu-se ao caso como “justiça à brasileira”). Em maio, no Guarujá (SP), uma mulher foi linchada por diversas pessoas por causa de um boato sobre ela sequestrar crianças para a “prática de magia negra”.[1]

Em Matupá (MS), houve um “caso clássico” dessa “justiça à brasileira”, quando três homens invadiram uma casa para roubar e mantiveram reféns duas mulheres e quatro crianças. Policiais militares e civis, e gente até de cidades vizinhas, cercaram a casa. Depois de muita negociação os ladrões saíram, já sob ameaça de linchamento. Foram espancados, baleados e amontoados em um descampado. Alguém jogou gasolina e ateou fogo. Um deles, mesmo depois de queimar por 15 minutos, pediu perdão a Deus, mas os linchadores ironizaram: “tá quente aí?”

Outro caso “clássico” foi o do adolescente e trabalhador rural Jesse Washington, acusado de ter matado a mulher de seu patrão. Julgado e condenado a morte nos Estados Unidos, foi arrancado da sala do tribunal e executado por uma turba defronte ao fórum. Cerca de 10 mil pessoas, incluindo funcionários públicos e policiais, participaram do crime, em atmosfera de celebração, inclusive com a presença de crianças, à saída de escola. Jesse foi castrado, os dedos cortados e, dependurado numa fogueira, foi içado e baixado várias vezes por duas horas, até que o corpo estivesse completamente tostado. O cadáver foi mutilado e os pedaços vendidos; quem não chegou a tempo comprou cartões postais com fotos do linchamento, recordação de Waco (Texas), a cidade onde tudo ocorreu.[2]

Ainda nos Estados Unidos outro caso de linchamento “clássico”, ocorrido no final do século XIX. Nove italianos inocentados da acusação de assassinato de um policial de Nova Orleans (Flórida), foram arrancados da cadeia pública por uma multidão liderada pelo presidente da Câmara de Comércio, que em seguida elegeu-se governador. Os nove foram linchados com outros dois italianos que nada tinham a ver com o caso. Foi a senha para uma onda de linchamentos ao redor do país, de italianos principalmente. Crimes justificados por um governador (“os italianos são, mais que os negros, bandidos asquerosos e traiçoeiros”) e pelo The New York Times, ao afirmar que linchados não haviam sido propriamente italianos, mas “sicilianos descendentes de homicidas e malfeitores”, e que o linchamento fora “a única alternativa disponível para que povo de Nova Orleans fizesse justiça."[3]

Linchamentos são, com efeito, modos de “fazer justiça”, “pura”, rápida, simples e sem formalidades, alternativa ao Direito, que nem sempre oferece soluções “justas” – as do Direito o são porque reconhecem limites previamente definidos pela lei e a moralidade, incompatível esta com a violência, até mesmo quando juridicamente organizada.[4] Diferentemente do comportamento dos linchadores – Zés-Ninguém na sua maioria – contra pessoas, grupos ou mesmo objetos (como o boneco de pano na “malhação do Judas”, ou os símbolos de regimes, ideologias, religiões que se quer execrar). Linchamentos são aéticos, contrários aos padrões da lei e da moralidade, assim como aos da consciência – razão pela qual o linchador vivencia seu “compromisso com o dever” como uma violação abusiva da honra e da justiça, e sofre com sentimento de culpa e remorso.

Malgrado as suas características os linchamentos não deixam de expressar sentimentos genuínos, não o caráter espontâneo ou irracional de “justiça popular” nem de reação retrógada e reprimida da população demonstrar repulsa pela impessoalidade do Direito e a racionalidade da Justiça. Recorrer ao linchamento é possível para autoridades que apoiam, incentivam e até participam, desmentindo um presumido caráter “popular”, ou de justiça “ingênua”. Caso do linchamento acima mencionado, em que policiais participaram ativamente, mas logo em seguida procuraram se eximir de qualquer responsabilidade, de forma pusilânime alegando terem sido coagidos a cometer “crime de multidão”.

O principal negociador do sequestro, hoje coronel e diretor de Ensino no Comando Geral da Polícia Militar, foi promovido três vezes nestes últimos dez anos. Conta que o linchamento de Matupá ocorreu porque “a polícia não tinha estrutura para conter a população”. Chega a dizer que “também fomos vítimas. Foi um crime de multidão e nesses casos não há um responsável”.[5]

Infratores não raro empregam “estratégias de neutralização“ (e.g., recurso a autoridade superior: “foi ele que mandou”, ou reivindicação de relativa aceitabilidade: “sei que é crime, mas não foi roubo nem sequestro”[6]) para dar a entender que são inconscientes ou até mesmo “vítimas”, como no caso. Normalmente, autoridades no Brasil são mais cuidadosas. Ocultam sua proverbial incompetência, por exemplo, amarrando com arame farpado as vítimas, espancando-as e mutilando seus corpos para que tudo pareça “justiça à brasileira, feita pelo povo”. O mesmo no que diz respeito aos traficantes:

Ontem à noite, no loteamento conhecido como Vila Teletubbies, dezenas de moradores retiraram os móveis de uma casa, fizeram uma fogueira e depois destruíram a casa. Para o presidente da associação dos moradores, a ação foi encabeçada pelos traficantes, como demonstração de autoridade e intimidação para desencorajar qualquer outro tipo de atividade criminosa que possa obrigar a presença policial na área. Segundo o secretário da mesma associação, “o tráfico não incomoda, não agride a comunidade de forma direta; se comete crimes o faz longe do loteamento”. Por isso a comunidade prefere “manter diálogo” com o “poder paralelo”, ao passo que os “marginais” (assaltantes e arrombadores) usam a polícia como “poder de barganha” contra os traficantes.[7]

Não se deve afirmar, por outro lado, que linchamentos sejam “fantasias originárias” ativadas na “dimensão mais oculta”, habitada por forças malignas, pelos “componentes irracionais” do comportamento de quem quer apenas punir com espírito sádico e rancoroso.[8] Algo característico do “linchamento brasileiro”, “claramente vingativo”, que obriga gente pacífica, até mesmo devotados pais de família, a se envolverem “na execução de uma pessoa, às vezes do próprio filho”. Diferente dos Estados Unidos, onde os linchamentos seguiriam uma espécie de “pedagogia puritana”, apoiada na “moralidade tradicional”, fácil de ser assimilada pelo homem comum.

Igualmente leviano é imaginar que, na base do comportamento coletivo violento associado ao linchamento, há “um arraigado sistema de valores”, que garante apoio à barbárie e à impunidade,[9] contrário à racionalidade impessoal do Direito. Na realidade, essas práticas correspondem, mesmo no contexto cultural moderno, à tendência de considerar problemas jurídicos exclusivamente do ponto de vista da retaliação – o mal cometido equiparado ao mal sofrido –, em prejuízo da responsabilidade dos envolvidos (infratores, vítimas, comunidades) e dos valores prevalecentes na sociedade.

Do ponto de vista mais geral, estudado desde os primórdios pela Sociologia – linchamentos sinalizam “causas constantes”, cognoscíveis pela investigação científica, determinantes universais das dimensões físicas, intelectuais e morais da ação do “homem médio” do período histórico em que ele se situa.[10] Linchamentos são movimentos sociais – diversos em estrutura, sentido e conteúdo dos movimentos sociais institucionalizados (operário, estudantil, hippie, feminista, ecológico, etc.), expressões de dissidência típicas dos processos de democratização.[11]

Linchamentos não se parecem nada com isso. São movimentos sociais básicos, como as multidões, os tumultos, o pânico, os rumores, e a opinião pública. São uma variedade de comportamento que sobrevém em particular quando os sistemas sociais deixam de funcionar adequadamente, em períodos ou conjunturas de rápidas mudanças, complexas demais para serem assimiladas de imediato, podendo configurar situações de desafio ao ordenamento normativo vigente.[12] Sobre isso vamos discorrer, no entanto, numa próxima oportunidade.


Notas e Referências:

[1] Revista Fórum (2015). Suspeito de assalto é amarrado a poste e espancado até a morte no Maranhão (7 jul.).

[2] Dora Apel (2004). Imagery of Lynching: Black Men, White Women, and the Mob. Rutgers University Press.

[3] Ed Falco (2012). When Italian immigrants were 'the other' (CNN, 10 jul.).

[4] Pedro Scuro Neto (2010). Sociologia Geral e Jurídica. Saraiva, pp. 28. 37, 103; Miguel Reale (1998). Lições Preliminares de Direito. Saraiva, p. 45.

[5] Diário de Cuiabá, 26 nov. 2000. Na verdade, em crime praticado por multidão, todos respondem (s0bre isso veja-se, por exemplo, a “teoria do domínio final do fato”, ou pelo menos o Art. 61 do Código Penal).

[6] Pedro Scuro Neto (2010), p. 49.

[7] Zero Hora, 11 nov. 2003.

[8] José de Souza Martins (1995). As condições do estudo sociológico dos linchamentos no Brasil. Estudos Avançados, 25(9).

[9] Jefferson Puff (2015). Quem lincha sabe que tem respaldo social no Brasil, diz pesquisadora. Folha de S. Paulo (24 jul.).

[10] Santiago Pich (2013). Adolphe Quetelet e a biopolítica como teologia secularizada. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, 20 (3), jul-set.

[11] Charles Tilly (2004). Social Movements, 1768–2004. Paradigm Publishers.

[12] Pedro Scuro Neto (2010). Sociologia Geral e Jurídica. Saraiva, pp. 23-24.


Pedro Scuro Neto é Sociólogo, MSocSc (Praga) e PhD (Leeds) sob a orientação de Zygmunt Bauman. Revisor do programa de segurança e defesa da Transparência Internacional (Londres), membro do conselho de diretores da Sociedade Internacional de Criminologia (Paris). Introduziu no Brasil a justiça restaurativa, implantou e foi o primeiro diretor do centro de pesquisas da Escola Superior da Magistratura (RS).


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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