Introdução.
Dispõe a Constituição Federal de 1988 que a Mata Atlântica constitui patrimônio nacional, sendo que sua utilização far-se-á na forma da lei e dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais (art. 225, §4º). A tutela da Mata Atlântica foi detalhada vinte anos após a edição da Constituição Federal através da Lei Federal n.º 11.428/2006 e do Decreto Federal n.º 6.660/2008.
O Brasil, mesmo com a edição da Lei da Política Nacional de Meio Ambiente (Lei n.º 6.938/81) e com a promulgação da Constituição no ano de 1988, levou muito tempo para avançar satisfatoriamente nas políticas públicas ambientais relacionadas com a biodiversidade; regulando o uso, manejo e exploração de biomas vegetais, por muito tempo, apenas a partir dos processos de licenciamento ambiental, com o estabelecimento de padrões “máximos” toleráveis de degradação (desmatamento), sem atentar para as especificidades biológicas e sociais dos biomas, como suas relações culturais (comunidades tradicionais), agrícolas, turísticas e industriais.
O que é o bioma mata atlântica?
O bioma mata atlântica, amplamente devastado e degradado, é caracterizado pela (a) alta biodiversidade; (b) formada por diversas florestas (reduzida a núcleos isolados e espalhados), sendo (c) representada atualmente por apenas 8% de sua cobertura original. ´
Há, entretanto, um problema legal e ambiental quanto à definição do que seja mata atlântica. Para uma determinada corrente a mata atlântica se limita a floresta ombrófila densa, presente na região litorânea do Brasil. Uma segunda corrente, ligada aos dados do Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, o bioma mata atlântica compreende, além da floresta ombrófila, a floresta ombrófila com araucária, as florestas estacionais deciduais e semidecidual, incluindo ainda ecossistemas ligados as ilhas oceânicas, restingas, manguezais, ilhas costeiras e campos de altitude.
A Lei n.º 11.428/2006, em seu art. 2º, adotou a segunda corrente ao explicar que consideram-se integrantes do bioma mata atlântica as seguintes formações florestais nativas e ecossistemas associados, com as respectivas delimitações estabelecidas em mapa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, conforme regulamento: floresta ombrófila densa; floresta ombrófila mista ou semidecidual, florestal ombrófila aberta, floresta estacional, as vegetações de restingas, campos de altitude, brejos interioranos e encraves florestais do nordeste.
A opção do legislador pela corrente ligada ao mapa do IBGE é valorativa sob o ponto de vista da proteção da biodiversidade, ampliando a cobertura legal às vegetações remanescentes do bioma mata atlântica. Entretanto, por outro lado, há uma questão de validade social (eficácia e efetividade da norma), relacionada com a gestão ambiental e com a educação ambiental. Na gestão ambiental, os municípios possuem dificuldades na compreensão da abrangência do bioma mata atlântica, atingindo de forma direta o processo de exploração vegetal e de recuperação de ambientes, como é caso da poluição em mangues ou da destruição das restingas. Sob o ponto de vista da educação ambiental, há um obstáculo cultural a ser transposto acerca do entendimento do papel e da importância das restingas, dos brejos e dos manguezais para a biodiversidades e o equilíbrio ecológico. O obstáculo cultural e a incompreensão geram um estado permanente de conflito entre o ambiente natural e a população litorânea. A fragilidade do processo de educação ambiental remete toda a população a enxergar o bioma de mata atlântica apenas pela tipologia florestal, desconsiderando as demais formas.
A tutela da mata atlântica a partir da tipologia.
A tutela da mata atlântica, segundo o objetivo da Lei n.º 11.428/2006, é garantir o desenvolvimento sustentável, salvaguardando a biodiversidade, a saúde humana, os valores paisagísticos, estéticos e turísticos, o regime hídrico e a estabilidade social. Para consecução de tais objetivos, diversos instrumentos de natureza legal, econômica e agrícola foram estruturados para viabilizar o desenvolvimento econômico por meio do licenciamento ambiental. Em destaque, a eleição de um sistema de proteção da mata atlântica a partir do estágio da mata ou do estágio de regeneração da floresta, ou seja, da tipologia da mata.
Pela legislação, a mata atlântica é classificada como de (a) vegetação primária; (b) vegetação secundária, em estágio avançado de regeneração; (c) vegetação secundária em estágio médio de regeneração e (d) vegetação secundária em estágio inicial de regeneração (art. 4º). A definição técnica da classificação coube às Resoluções do Conselho Nacional de Meio Ambiente - CONAMA n.º 423/2010, 417/2009, 388/2007 e 05/1994.
A partir do regime de proteção da mata atlântica, por meio da tipologia, a Lei n.º 11.428/2006, salvaguardou-se hipóteses em que é permitida a supressão da vegetação de mata atlântica na presença de situação em que ocorra utilidade pública e interesse social (art. 3º). Contudo, a supressão da mata por motivo de utilidade pública e interesse social, sem considerar a devastação da mata atlântica ocorrida ao longo do tempo, não é a maior questão de impacto no sistema de proteção, estando à frente (a) o modelo de segregação das tipologias na federação (Resolução CONAMA 388/2007) e (b) a possibilidade legal de supressão da vegetação secundária em estágio inicial de regeneração.
O modelo de segregação das tipologias da mata atlântica, a partir dos Estados da Federação, conforme resolução CONAMA n.º 388/2007, fragiliza a tutela de um bioma altamente entropizado, permitindo a coexistência de políticas ambientais ambíguas dentro de um mesmo território. Certamente, a constituição de tipologias é uma atribuição cuja competência deve ser exercida pela União, uniformizando o tratamento ecológico a ser dispensado para um bioma. A medida seria razoável caso a hipótese tratasse de biomas distintos, por exemplo, tipologia da mata atlântica e da floresta Amazônica. No limite da ponderação, a formulação normativa resulta na possibilidade de ocorrer proteção excessiva da mata em um determinado Estado, prejudicando o crescimento e desenvolvimento socioambiental da unidade e, de outro lado, o afrouxamento das políticas de desmatamento e intervenção no bioma em outro Estado; gerando um acirramento (geralmente de ordem econômica em face da atração de investimentos industriais) entre unidades da federação e constituindo um cenário de insustentabilidade em diversas regiões do País.
Outra questão técnica que vilipendia o bioma é a possibilidade legal de intervenção e supressão de vegetação de mata atlântica em estágio inicial de regeneração. De forma pueril, a permanecer a perspectiva que autoriza a supressão de vegetação em estágio inicial, sem delimitações objetivas, não haverá possibilidade de ocorrer a regeneração do bioma. Nesse sentido, o art. 11 da Lei n.º 11.428/2006 delimita alguma proteção, porém, apenas para vegetação que esteja em estágio inicial avançado de regeneração, cuja supressão não será permitida para hipóteses em que a vegetação seja necessária para abrigar espécies da flora e da fauna silvestre ameaçadas de extinção; para exercer função de proteção de mananciais ou de prevenção e controle de erosão; para formar corredores ecológicos; para proteger o entorno das unidades de conservação; para garantir a prevalência do valor paisagísticos, desde que seja excepcional, ou seja, reconhecido pelos órgãos executivos do Sistema Nacional de Meio Ambiente.
Entrementes, salvaguardada a questão técnica (difícil de ser transposta) que separa e distingue uma vegetação em estágio inicial de regeneração de uma vegetação que esteja em estágio inicial avançado de regeneração; o fato é que não existe proteção contra o desmatamento para a maior parte do bioma mata atlântica, considerando que o bioma foi devastado e atualmente é constituído apenas por fragmentos isolados, tendo sua maior área em estágio inicial de regeneração, sem qualquer proteção ou assistência pública ou privada.
Conclusão.
O Brasil avançou com a edição da Lei do bioma da mata atlântica, constituindo importante microssistema jurídico na seara do direito ambiental. É inegável, ainda, que a Lei n.º 11.428/2006 trouxe proteção para um bioma, reconhecido mundialmente por sua biodiversidade, porém, com enorme defasagem em termos de políticas públicas.
Atualmente, após treze anos de vigência, a norma precisa ser revista à luz do novo marco regulatório do meio ambiente (o novo “código” florestal) e, sobretudo, a partir das diretrizes mundiais de sustentabilidade do planeta.
As críticas pontuadas no presente artigo sobre a validade social da Lei são pequenas diante do gigantismo de sua edição, porém, o bioma mata atlântica, altamente antropizado, requer uma norma que seja mais efetiva na proteção e menos leniente nas exceções.
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