Liebman e o STJ: uma necessária reconstrução histórica acerca das condições da ação – Por Denarcy Souza e Silva Júnior

25/07/2016

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, talvez com o objetivo de contribuir com a solução para a divergência que grassa na doutrina processual acerca do fim da categoria das condições da ação no Novo Código de Processo Civil, proferiu decisão afirmando que “o CPC de 2015 não mais previu as condições da ação como categoria processual autônoma, diversa dos pressupostos processuais e do mérito”.[1] Para os limites destas reflexões, faz-se necessária a transcrição de trecho do voto do relator, ipsis verbis:

Ocorre, entretanto, que o CPC de 2015 não mais previu as condições da ação como categoria processual autônoma, diversa dos pressupostos processuais e do mérito. Com efeito, no regime do atual CPC, há unicamente questões de mérito e questões de admissibilidade, de sorte que as questões anteriormente analisadas sob a égide das condições da ação passariam a ser tratadas como questões de admissibilidade, juntamente com os demais pressupostos de constituição e desenvolvimento válidos do processo. Essa opção do legislador fica evidente pela leitura do art. 485, VI do CPC, segundo o qual “juiz não apreciará o mérito quando” [...] “verificar ausência de legitimidade ou de interesse processual”.

Explicitamente, o Superior Tribunal de Justiça endossou o entendimento perfilhado por Fredie Didier Jr.[2] e Leonardo Carneiro da Cunha[3], acerca do fim da categoria das condições da ação e sua mutação para pressupostos processuais no Novo Código de Processo Civil. Na visão dos referidos autores, a legitimidade ad causam, mais precisamente a extraordinária, seria um pressuposto processual subjetivo em relação às partes e o interesse processual um pressuposto processual objetivo extrínseco[4]. A legitimidade ordinária e a possibilidade jurídica do pedido seriam questões de mérito[5].

Não tenho intenção, neste curto espaço, de debater acerca do fim da categoria das condições da ação, mesmo porque nunca concordei com a teoria eclética, tampouco com a existência desta categoria intermediária inserida entre os pressupostos processuais e o mérito. Entendo, de há muito, que aquilo que sempre se denominou de “condições da ação” não passa de questões de mérito, não dizendo respeito à admissibilidade do processo, o que sempre encontrou óbice no texto do CPC-73 e, ainda que com temperamentos, encontra resistência no CPC-2015.

Em verdade, o que mais me chamou a atenção no acórdão do Superior Tribunal de Justiça foi a afirmação de que a possibilidade jurídica do pedido passou, no novo diploma, a ser considerada como matéria de mérito. Não pela conclusão em si mesma, até porque já deixei claro que sempre entendi que a possibilidade jurídica do pedido diz respeito ao mérito da causa, mas pela afirmação, que me pareceu estranha, de que Liebman, notório percussor da Teoria Eclética entre nós, teria posteriormente aderido a esse entendimento. Ausculte-se referida passagem do voto, in litteris:

De se notar, ainda, que a terceira das tradicionais condições da ação, a possibilidade jurídica do pedido, deixou de ser prevista como requisito de admissibilidade da demanda, o que denota o acolhimento pelo legislador da corrente doutrinária que há muito contestava a possibilidade jurídica do pedido como categoria válida, pois que na verdade se trataria de matéria de mérito (posição que posteriormente chegou a ser adotada por Liebman). Com efeito, verifica-se que, no novo CPC, a possibilidade jurídica do pedido passou a integrar o mérito da causa. Tal posição foi expressamente defendida em manifestação da Comissão de Juristas responsável pela reforma da Lei Processual: [...]

Não se desconhece, como pode parecer, que Liebman, a partir da terceira edição do seu Manual de Direito Processual Civil, editado na Itália no ano de 1973, excluiu a possibilidade jurídica do pedido como uma das condições da ação autônoma. Entretanto, quando assim o fez, não me parece que tenha aderido a corrente que defende que a possibilidade jurídica do pedido diria respeito ao mérito da causa, mas sim que ela estaria inserida no interesse processual, como, aliás, já advertiu Alexandre Freitas Câmara em resposta ao posicionamento adotado pelos ilustres processualistas referidos[6].

Comentando a opção levada a efeito pelo NCPC, Cassio Scarpinella Bueno, a um só tempo lamenta a extinção da possibilidade jurídica do pedido como categoria autônoma, como adverte que o novo diploma foi muito além de Liebman quando a considerou questão integrante do mérito da causa.

Com relação à extinção da possibilidade jurídica do pedido como categoria autônoma, lamento, particularmente, a opção do CPC de 2015. É típico exemplo de involução, porque o CPC de 2015 não soube (na verdade, não quis) aproveitar a evolução que a maior parte da doutrina brasileira alcançou acerca daquela categoria, indo muito além do que Liebman, seu formulador original, conseguiu ir. Deixamos nos levar pela lição repetida acriticamente um sem-número de vezes de que o próprio Liebman alterou seu posicionamento quando seu único exemplo, o do divórcio, foi constitucionalmente autorizado na Itália. Uma pena.[7]

É bom que se diga, a bem da verdade, não se está afirmando que o Superior Tribunal de Justiça errou quando aderiu ao posicionamento de que a possibilidade jurídica do pedido quer dizer com o mérito e não com requisitos de admissibilidade, quer sejam eles tidos como pressupostos processuais ou como condições de ação. Ao contrário, já ficou assente no presente texto que me filio aos que entendem, ainda sob a vigência do CPC-73, que a possibilidade jurídica do pedido tem a ver com a pretensão deduzida em juízo, e sua ausência leva ao julgamento de improcedência do pedido do autor e não apenas à extinção do processo sem resolução do seu mérito.

Inobstante, ficar assentado na decisão do Superior Tribunal de Justiça, para impingir mais autoridade ao argumento ali exposado, que Liebman teria aderido ao entendimento de que a possibilidade jurídica do pedido seria atinente ao mérito da causa não pode passar indene de críticas. Se se deve pensar o direito como tradição, reconstruindo a história institucional de um direito em particular, evitando-se, assim, discricionariedades judiciais, esse retorno ao passado deve se valer de dados precisos (ou mais precisos), tudo a legitimar a interpretação a ser dada ao texto normativo.

Nem mesmo a afirmação de que o CPC-2015 teria abandonado a categoria das condições da ação é pacífica entre os processualistas atuais, havendo vários que defendem a sua permanência[8], bem como a utilização da controversa Teoria da Asserção para o reconhecimento do seu preenchimento no caso concreto, modificando-se o instituto apenas pelo grau de cognição com que ele é analisado, como se toda decisão judicial, quando proferida, naquele momento, não o seja em juízo de certeza.

Parece que no afã de legitimar ainda mais a sua decisão, o Superior Tribunal de Justiça, ainda que com boas intenções, se deixou influenciar por uma percepção equivocada do posicionamento de Liebman, que mesmo abandonando a possibilidade jurídica do pedido como uma condição da ação autônoma, não passou a entendê-la como uma questão de mérito, mas como integrante do interesse processual. Condição da ação, portanto, ainda que não autônoma.

A observação aqui feita não objetiva, sob nenhuma hipótese, desmerecer o entendimento da Corte Superior, ao contrário, buscou ela se desincumbir de sua função constitucional, interpretando a legislação infraconstitucional, no intuito de contribuir com o debate doutrinário que parece longe de acabar. Se o fez partindo de um dado histórico que não parece correto, incumbe à doutrina apontar essa incorreção e voltar a contribuir com o debate, analisando a questão sob o ponto de vista da reconstrução da história institucional, sem se valer de argumentos de autoridade ou voluntarismos de qualquer ordem.

O debate acerca do fim da categoria das condições da ação continua aberto. Será mesmo que devemos analisá-las como integrantes dos pressupostos processuais, ou se assim agirmos estaremos confundindo os institutos da ação e do processo, tão caros à ciência processual? Haveria um gênero: juízo de admissibilidade do processo, do qual os pressupostos processuais e as condições da ação seriam espécies? Mais que isso, há qualquer lógica em de distinguir pressupostos processuais de “requisitos para apreciação do mérito”[9]?

As respostas a estes questionamentos merecem maiores reflexões da doutrina e de todos aqueles que, como eu, vivem o processo em seu dia a dia. Se as consequências de se adotar uma ou outra corrente são as mesmas, a extinção do processo sem resolução de seu mérito, isso não retira a importância do aprofundamento do tema, tão caro à ciência processual civil desde sua fase imanentista, tudo a fomentar o debate, com o intuito de se solidificar ainda mais o processo civil brasileiro.


Notas e Referências:

[1] Ação Rescisória nº 3667 – DF (2006/0236076-5)

[2] Será o fim da categoria “condição da ação”? Um elogio ao projeto do novo CPC. Disponível em: http://www.frediedidier.com.br/wp-content/uploads/2012/06/Condições-da-ação-e-o-projeto-de-novo-CPC.pdf

[3] Será o fim da categoria condições da ação? Uma intromissão no debate travado entre Fredie Didier Jr. e Alexandre Freitas Câmara. Disponível em: http://www.leonardocarneirodacunha.com.br/artigos/sera-o-fim-da-categoria-condicao-da-acao-uma-resposta-a-fredie-didier-junior/

[4] Curiosamente, Fredie Didier, quando considerou em seu curso de direito processual civil, o interesse processual como um pressuposto processual objetivo extrínseco, alterou seu posicionamento original exposado no artigo já referido, onde tinha considerado o interesse processual um pressuposto processual objetivo intrínseco. Para uma análise mais detida, consultar: DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 17ª ed. V. 1. Salvador: Juspodivum, 2015, p. 306 e Será o fim da categoria “condição da ação”? Um elogio ao projeto do novo CPC, disponível em http://www.frediedidier.com.br/wp-content/uploads/2012/06/Condições-da-ação-e-o-projeto-de-novo-CPC.pdf

[5] Idem. ibidem.

[6] Será o fim da categoria “Condição da Ação”? Uma resposta a Fredie Didier Junior. Disponível em: http://www.leonardocarneirodacunha.com.br/artigos/sera-o-fim-da-categoria-condicao-da-acao-uma-resposta-a-fredie-didier-junior/

[7] BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2015, pp. 101/102.

[8] Por todos: NEVES, Daniel A. Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 8ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016.

[9] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil: Teoria do Processo Civil. V. 1. São Paulo: RT, 2015, p. 204.


 

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