LIBRAS E A COMPLEXA RELAÇÃO SUJEITO-SENTIDO

07/06/2024

Introdução

A língua brasileira de sinais (LIBRAS) e a língua portuguesa, possuem singularidades que produzem tensões na construção dos sentidos. Dito isso, versando sobre o tema da constituição do sujeito surdo, objetiva-se analisar as especificidades e dificuldades do sujeito surdo na produção de sentidos, tendo em vista que existem complexos obstáculos que tornam mais difícil essa relação sujeito-sentido no caso do sujeito surdo, e que merecem atenção da comunidade científica de modo a viabilizar uma maior acessibilidade e inclusão.

Explica-se que o corpus do presente artigo é composto por uma entrevista em LIBRAS de Tais Sena (2017), bem como composto pelo vídeo intitulado “O Impacto do Silêncio #01 - A Comunidade Surda e a Libras” (2017), sendo essa a materialidade analisada, à luz do marco teórico da Análise de Discurso de Michel Pêcheux (2014), também chamada de Análise de Discurso Francesa.

Embora o artigo também considere os aspectos legais da Lei n° 10.098/2000, conhecida como Lei da acessibilidade (apresentando uma reflexão sobre os impactos da Lei quanto ao que ela enuncia: políticas públicas de abolição das barreiras e dificuldades), destaca-se que essa não é propriamente a materialidade analisada, que conforme explicado, é composta pelos referidos vídeos abarcando as dificuldades do sujeito surdo, de modo a possibilitar, após a análise da materialidade analisada, uma melhor compreensão das tensões e dificuldades ainda existentes na vida desse sujeito (apesar da referida Lei da acessibilidade).

Na perspectiva teórica de Michel Pêcheux (2014), uma teoria materialista do discurso, funciona uma triangulação abarcando materialismo histórico, linguística e psicanálise, que considera a língua como não transparente, não cristalina. Nessa teoria, não existe uma semântica universal, os sentidos não são fixos, e estão sempre aquém e além das palavras, conforme explica Orlandi (2015), que ressalta como a questão da produção do sentido está diretamente ligada à constituição do sujeito (em outras palavras, o sentido não existe em si, dependendo do sujeito para existir).

Isso dito, no caso do sujeito surdo deparando-se com a língua portuguesa, intensificam-se ainda mais as dificuldades quanto a essa característica da língua (sua opacidade), criando tensões ainda mais complexas, de modo que, muitas vezes, o sujeito surdo sente que a língua portuguesa não “faz sentido”.  Essa situação envolve uma maior dificuldade do sujeito surdo (mais visual) comparado aos ouvintes, quanto à produção dos efeitos de sentido do discurso com palavras da língua portuguesa, que, vale frisar, é muito diferente da comunicação por LIBRAS, e muitas vezes é confusa para o sujeito surdo, criando problemas para ele.

 

1. Análise de discurso e a complexa relação língua-discurso-ideologia-sujeito-sentido

Dentro da Análise de Discurso, Macherey (2014) explora a complexa relação língua-discurso-ideologia-sujeito-sentido, envolvendo a ligação entre constituição do sujeito e do sentido, de modo que uma coisa se relaciona com a outra, em amarração que depende da filiação a uma formação discursiva dominante (em relação com outras formações discursivas), existindo além da ideologia como abordada em Althusser (1970), a questão do inconsciente na relação sujeito-sentido: inconsciente que é o objeto da psicanálise.

O efeito de evidência a respeito de um sentido produzido (como se só pudesse ser aquele, sendo então tomado como óbvio, cristalino), dentro da perspectiva discursiva, remete a uma ilusão criada com o apagamento dos processos complexos que envolvem ideologia e inconsciente, dissimulados, tornados invisíveis ao sujeito, assim engendrando o efeito ilusório de transparência do efeito produzido, que também possibilita a crença idealista no sujeito da consciência, que controlaria seu dizer, supostamente dominando discurso e sentido, quando, em verdade, encontra-se determinado pela formação discursiva em que se filia e por processos complexos envolvendo inconsciente e ideologia, em conjunto.

Conforme Orandi (2015), como os sentidos não estão nas palavras elas mesmas, esse efeito de evidência dos sentidos produzidos (que é o efeito ideológico) é possível graças ao mecanismo imaginário entendido por Althusser (1970) como ideologia, que possibilita interpretações (sempre atravessadas ideologicamente, uma vez que o real não é acessível), de modo que a certeza que um sujeito possui sobre um determinado sentido, como se natural fosse, é fruto do esquecimento e apagamento de processos complexos que envolvem esse mecanismo imaginário, necessário à significação.

Note-se que, mesmo na Análise de Discurso, considerar simultaneamente ideologia e inconsciente é uma tarefa complexa. O inconsciente é o objeto da psicanálise, mas a psicanálise não trabalha com a noção de ideologia, que é explorada na Análise de Discurso na acepção de Althusser (1970).

Como a Análise de Discurso não remete a uma soma da triangulação já mencionada, nutrindo uma singularização que lhe é própria, cada analista deve lidar com as tensões existentes (e sem resolução), que envolvem o sujeito da Análise de Discurso e o sujeito da psicanálise, que tanto se aproximam (a exemplo do descentramento do sujeito e crítica ao idealismo) como se distanciam (a exemplo da diferente abordagem da historicidade), inclusive na medida em que o dispositivo psicanalítico é clínico, e o da Análise de Discurso é analítico, sem o aspecto clínico destinado singularmente às partes.

Mas o que interessa aqui frisar, é que tanto a Análise de Discurso de Pêcheux (2014), quanto a psicanálise lacaniana, privilegiam o tema da constituição do sujeito e dos sentidos, trazendo grandes contribuições, e com elas uma grande complexidade.

Aqui, especificamente no presente artigo, complexidade relevante à compreensão das dificuldades extras verificadas pelos sujeitos surdos no Brasil (inclusive considerando aspectos legais da Lei n° 10.098/2000, conhecida como Lei da acessibilidade, e como repercutiu na vida do sujeito surdo no Brasil), cabendo analisar a materialidade selecionada para melhor explorar as dificuldades do sujeito surdo na produção de sentidos.

Retrocedendo à crítica na ilusão de controle do sujeito sobre os sentidos, Garcia-Roza (2018) demonstra como funciona a ilusão idealista do sujeito consciente, cartesiano, pleno, centrado, capaz de decifrar e controlar os sentidos, acessando o sentido verdadeiro (ilusão do teatro da consciência e sua transparência, e ilusão de uma semântica universal). Contudo, por detrás dessas ilusões, tem-se que inexiste um sentido fixo: o sentido é um efeito, é movente, e depende da constituição do sujeito (sua relação com a ideologia e com a formação discursiva a que está filiado). 

Dessa forma, embora na Análise de Discurso o sentido não seja único, sempre podendo ser outro (de modo que inexiste um grau zero de ambiguidade e confusão), a falta de acessibilidade para o sujeito surdo intensifica a questão da não transparência da língua, de tal modo que, acerca do língua portuguesa, a dificuldade do sujeito surdo frequentemente inviabiliza mesmo operações básicas, como a navegação em sites de internet.

Essa navegação em sites constitui prática comum na sociedade contemporânea, e que poderia contar, na atualidade, com acessibilidade em LIBRAS, de modo a transformar positivamente uma realidade em que milhões de surdos ainda não conseguem entender os sites de internet. Isso propicia uma realidade com maior acolhimento à multiplicidade, valorizando as especificidades do sujeito surdo no país, atenuando suas dificuldades concretas no cotidiano.

Frise-se que, no caso do sujeito surdo ao deparar-se com o língua portuguesa, a opacidade inescapável da língua adquire contornos específicos que intensificam as dificuldades (identificadas na perspectiva discursiva na relação língua-discurso-ideologia-sujeito-sentido), inviabilizando práticas bastante comuns para os ouvintes (como a navegação em sites) que afetam o sujeito surdo, sem que de modo geral seja verificada uma acessibilidade que permita nem mesmo a navegação na internet com segurança e autonomia, para realizar pesquisas e até compras com independência e qualidade de vida, sem requisição a todo tempo de ajuda de terceiros.

À luz da Análise de Discurso, tem-se que os ouvintes não acessam o sentido único e verdadeiro das palavras ao atravessarem um texto: o que existem são efeitos de sentido produzidos. A “evidência” de que um sentido só pode ser um determinado efeito de sentido produzido, é então um efeito produzido, um ilusório efeito de obviedade que tem relação com o funcionamento ideológico e com a filiação à formação discursiva dominante que tangencia cada sujeito.

Pontua-se isso, pois a questão não é anunciar que o sujeito surdo não consegue acessar algo que os ouvintes conseguem acessar de modo transparente e límpido, livre de ambiguidade, posto que essa transparência inexiste de todo modo (sendo ainda o real da língua a falha, como considerado na Análise de Discurso).

Não se trata, então, de propor que o sujeito surdo possa acessar o real e alcançar uma transparência do sentido ligada a uma semântica universal (e com isso abordar a necessidade de políticas públicas), posto que isso não existe na perspectiva discursiva de Pêcheux (2014), sendo impossível mesmo no caso dos ouvintes o acesso ao real e ao “sentido verdadeiro”.

A interpretação é complexa para todos, de modo que o sentido é fabricado na história, não é único, e depende do mecanismo imaginário de cada sujeito afetado pela língua, mecanismo que Althusser (1970) descreve como funcionamento ideológico, propiciando uma ilusão que apaga como o sentido foi determinado.

Contudo, é inegável que no caso do sujeito surdo e sua constituição (com foco nos aspectos visuais), existem especificidades que se tornam dificuldades frente ao grande distanciamento da sinalização em LIBRAS em relação ao língua portuguesa, e que inviabilizam, por conseguinte, um suficiente sentimento de pertencimento do sujeito surdo, na medida em que as dificuldades são imensas na compreensão e superação dessa barreira, envolvendo grandes tensões com o língua portuguesa.

Assim, o sujeito surdo experimenta com maior intensidade as complexas dificuldades da relação sujeito-sentido, posto que, mais que ambiguidade, a materialidade analisada aponta que os sujeitos nessa posição frequentemente não conseguem produzir um efeito de sentido, a ponto de reiterarem que a língua portuguesa não faz sentido. Como sabe-se que o sentido não está contido nas palavras elas mesmo, dependendo da relação com o sujeito, destaca-se que esses sujeitos (mais visuais) se encontram desamparados, a ponto de não identificarem acessibilidade, ensejando um sentimento de não pertencimento frente às palavras, o que é mais do que uma mera sensação de ambiguidade, inviabilizando coisas comuns como uso de computador e outras tecnologias presentes no dia-a-dia de grande parcela da população, para estudo, trabalho, lazer, interação social, realizar compras etc.

No caso do sujeito surdo, existem barreiras mesmo para essas atividades comuns do cotidiano, criando-se uma significativa dependência do sujeito surdo, obstáculo cuja superação é importante para a acessibilidade real deles.

Pontua-se que a Lei de acessibilidade, em tese, destina-se à dissolução/mitigação dessas barreiras, referindo-se inclusive à comunicação (e ainda que na Análise de Discurso essa palavra tenha suas críticas, pode-se aqui substituir a questão da “comunicação” pela relação discursiva que envolve a constituição dos sentidos), de modo que devem existir políticas públicas que tornem possível o acesso do sujeito surdo.

Acesso, por exemplo, à situação da navegação em sites já mencionada, com segurança e autonomia que tornem possível o real pertencimento desses sujeitos, de forma que não vivam à margem da sociedade, dependentes de terceiros para atividades comuns que poderiam perfeitamente realizar por conta própria, não fossem as barreiras quanto à acessibilidade, insatisfatoriamente enfrentadas, mesmo após cerca de 10 (dez) anos da aludida Lei de acessibilidade.

Nesse cenário de barreiras, a língua portuguesa é frequentemente tomada como confuso, “inacessível” e “sem sentido” para o sujeito surdo. Intensificando o problema dessa tensão com a língua portuguesa, só uma minoria da sociedade consegue se comunicar por LIBRAS, de modo que o sujeito surdo muitas vezes não consegue se comunicar dessa forma nem mesmo com sua própria família e amigos. Dessa forma, a heterogeneidade do dizer adquire ainda especificidades, que envolvem as barreiras experimentadas pelo sujeito surdo, barreiras que prejudicam sua compreensão acerca da língua majoritária no Brasil.

Nessas tensões, é imprescindível não apagar: (a) a compreensão da complexidade da questão; (b) e a necessidade de se valorizar a diferença, representada no caso pelo sujeito surdo frente à língua portuguesa. Diferente e diferença, aqui, não com conotações negativas, mas como próprias da multiplicidade da vida.

Infelizmente, a percepção da dificuldade em abarcar essa multiplicidade, e cada tensão dela resultante, tende a ser tomada como justificação estática para a eternização dos entraves e barreiras, recalcando as possibilidades de transformação que podem diluir, ainda que parcialmente, essas barreiras, que para serem dissolvidas, demandam certamente atitudes pontuais, singulares, mas também políticas públicas almejando que a diferença e as minorias não sejam apagadas pelo que é majoritário, afirmação da diferença valorizada na filosofia da diferença[1].

Em vídeo analisado no artigo, uma entrevista em LIBRAS de Tais Sena (2017), são relatadas algumas das dificuldades experimentadas por ela: como é complicado entender a língua portuguesa e viver com o preconceito da sociedade, sendo imprescindível um mundo com menos preconceito.

Ela narra que, em uma ocasião, estava com cólicas e foi ao médico, mas o médico entendia que ela estava grávida. Os exemplos de dificuldades são frequentes no dia-a-dia do sujeito surdo, inclusive na medida em que o preconceito não desapareceu, e nem todos estão comprometidos com o reconhecimento da multiplicidade, em tudo o que ela é e representa.

Sem acessibilidade, não há como se falar em dignidade, sendo incumbência do Estado o exercício de medidas concretas de valorização do sujeito surdo, valorização e respeito às diferenças que esse sujeito surdo carrega frente às línguas majoritárias, sendo imperioso um olhar crítico ciente de que a vida em sociedade não deve atender somente às maiorias, e que há um forte desamparo e não pertencimento do sujeito surdo no Brasil, frente ao grave problema de acessibilidade no país, apesar do surgimento da Lei de acessibilidade há cerca de 10 (dez) anos, conforme atestou a materialidade analisada.

 

2. Aspectos acerca da Lei de acessibilidade (Lei n° 10.098/ 2000) comentados

A Lei de acessibilidade (nº 10.098/2000) inicia, em seu artigo 1º, instituindo normas gerais, bem como critérios basilares, voltados à promoção da acessibilidade dos portadores de deficiência ou dos que apresentem uma redução em termos de mobilidade.

Desde já, observa-se algo que se repete no decorrer de toda a aludida Lei em nome da acessibilidade: a centralidade da palavra “deficiência”, no discurso analisado, abrangente dos surdos (então tomados implicitamente como deficientes auditivos), quando, no entanto, boa parte da comunidade de surdos rejeita essa associação à “deficiência”, encarando a surdez como uma diferença que potencializa acessos outros, uma outra constituição e interação cultural, propiciando um “ganho surdo” na interação com o mundo.

Embora a Lei abarque sem a forte incidência desse dilema pessoas com a capacidade auditiva comprometida, mas que não se identificam como pertencentes à comunidade de surdos, por ainda escutarem um pouco, ou sobretudo por partilharem majoritariamente da cultura dos ouvintes, ocorre que, para significativa parte dos surdos, o termo “deficiência” não é bem recebido, posto que a surdez seria para muitos um modo de se inscrever na diferença, em acepção positiva, com potencialidades que permitem outras experimentações de liberdades, não se tratando, nessa esteira, de uma “deficiência”.

Contudo, para reivindicar efeitos do aludido dispositivo legal, o sujeito surdo se vê obrigado a disputar o espaço abarcado pelo termo “deficiência”, o que já representa uma violência para boa parte da comunidade dos surdos.

Note-se que, consoante o artigo 2º, inciso III, a designação de “pessoa com deficiência” abarca deficiência física, mental, intelectual ou sensorial, precisando o sujeito ser apontado dentro desse recorte, o que é defensável apontar como violência, que apaga os entendimentos de parcela da comunidade de surdos, que descartam a noção de deficiência.

Prosseguindo, o artigo 2º estabelece definições, como as de acessibilidade e barreira, vejamos:

I – acessibilidade: possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida; II - barreiras: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa, bem como o gozo, a fruição e o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, à comunicação, ao acesso à informação, à compreensão, à circulação com segurança, entre outros, classificadas em: [...] d) barreiras nas comunicações e na informação: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de comunicação e de tecnologia da informação;

Como já antecipado na introdução, trata-se da reivindicação de direito, abrangente de termos (como informação e comunicação) que não seriam os mais adequados na Análise de Discurso, mas cujas diferenciações não serão aprofundadas, tendo em vista não ser o foco do artigo. Pontua-se isso, apenas para registrar que a Análise de Discurso não é voltada à noção de comunicação, criando um dispositivo teórico metodológico analítico associado ao objeto discurso.

Destarte, em que pese essa incompatibilidade de termos, nota-se que o exemplo abordado na introdução, da falta de acessibilidade quanto à navegação em sites, colide com o que é assegurado pela Lei, sobretudo quando considerado com artigos adiante abordados, referentes a medidas públicas e utilização de recursos destinados à superação das barreiras suportadas também pelo sujeito surdo (tratado pela Lei como deficiente).

Ademais, ainda dentro do artigo 2º, assim dispõem os incisos VIII, IX e X:

VIII - tecnologia assistiva ou ajuda técnica: produtos, equipamentos, dispositivos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivem promover a funcionalidade, relacionada à atividade e à participação da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, visando à sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social; IX - comunicação: forma de interação dos cidadãos que abrange, entre outras opções, as línguas, inclusive a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), a visualização de textos, o Braille, o sistema de sinalização ou de comunicação tátil, os caracteres ampliados, os dispositivos multimídia, assim como a linguagem simples, escrita e oral, os sistemas auditivos e os meios de voz digitalizados e os modos, meios e formatos aumentativos e alternativos de comunicação, incluindo as tecnologias da informação e das comunicações;  X - desenho universal: concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou de projeto específico, incluindo os recursos de tecnologia assistiva.

Mas a impossibilidade até mesmo de navegar em sites com segurança e autonomia, de forma independente e sem depender de supervisão, explicita como a dissolução das barreiras ainda é tarefa árdua e distante, carente de políticas públicas e comprometimento da sociedade em geral.

Em vídeo intitulado “O Impacto do Silêncio #01 - A Comunidade Surda e a Libras”, é destacado como quase 10 milhões de surdos não conseguem entender os sites na internet, dificuldades relacionadas à compreensão da língua portuguesa; e nesse contexto, reivindica informação visual, com acessibilidade em LIBRAS.

Nessa esteira, há o relato de que a língua portuguesa “não faz muito sentido” para o sujeito, que então enfrenta dificuldades de comunicação, como também relatado na mencionada entrevista em LIBRAS de Tais Sena (2017), conectado ao abordado na introdução.

Prosseguindo com a Lei, no capítulo VII, acerca da acessibilidade nos sistemas de comunicação e sinalização, o dispositivo legal possui três artigos em que persiste a centralidade da palavra deficiência, assegurando que:

Art. 17. O Poder Público promoverá a eliminação de barreiras na comunicação e estabelecerá mecanismos e alternativas técnicas que tornem acessíveis os sistemas de comunicação e sinalização às pessoas portadoras de deficiência sensorial e com dificuldade de comunicação, para garantir-lhes o direito de acesso à informação, à comunicação, ao trabalho, à educação, ao transporte, à cultura, ao esporte e ao lazer. Art. 18. O Poder Público implementará a formação de profissionais intérpretes de escrita em braile, linguagem de sinais e de guias-intérpretes, para facilitar qualquer tipo de comunicação direta à pessoa portadora de deficiência sensorial e com dificuldade de comunicação. Art. 19. Os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens adotarão plano de medidas técnicas com o objetivo de permitir o uso da linguagem de sinais ou outra subtitulação, para garantir o direito de acesso à informação às pessoas portadoras de deficiência auditiva, na forma e no prazo previstos em regulamento.

Nesse capítulo, há ainda o artigo 19, preconizando “plano de medidas técnicas com o objetivo de permitir o uso da linguagem de sinais [...] para garantir o direito de acesso à informação às pessoas portadoras de deficiência auditiva”. E no capítulo seguinte, das disposições sobre ajudas técnicas, conforme disposto no artigo 20, é incumbência estatal a dissolução de barreiras como as de comunicação, sendo necessário ajudas técnicas nessa direção.

Isso dito, conforme o artigo 21, inciso III, tem-se que o Estado, através de organismos de apoio à pesquisa e agências de financiamento, promoverá programas, no caso do aludido inciso, “destinados à especialização de recursos humanos em acessibilidade”.

E ainda sobre a acessibilidade, no capítulo das disposições gerais, o artigo 24 assegura a promoção pelo Estado, de campanhas informativas e educativas destinadas à sociedade em geral, visando sua transformação, para que se torne mais sensível à questão da acessibilidade e da vida social dos portadores de deficiência (como se refere toda a Lei), abarcando também as pessoas com redução de mobilidade, para que não vivam à margem da sociedade.

E na esteira do artigo 26, é assegurada às organizações que representam os interesses dos portadores de deficiência, legitimidade para verificar se estão mesmo sendo cumpridos os requisitos de acessibilidade situados nessa Lei.

Em que pese os aproximadamente 10 anos de incidência da Lei, nota-se o grande contraste das promessas jurídicas quando confrontadas com os relatos supramencionados, prosseguindo o preconceito e a violência simbólica, não superados nem sequer dentro da própria lei, especificamente acerca do uso da palavra “deficiência”, sem uma escuta do que dizem os integrantes da comunidade de surdos. 

Ainda assim, existem avanços culturais, que são apontados como emocionantes na entrevista de Tais Sena (2017), materializados, por exemplo, quando um ouvinte aprende LIBRAS. Contudo, trata-se de algo ainda sobremaneira raro na sociedade, sem muito incentivo de políticas públicas, tratando-se esse exemplo, mais de uma atitude singular, que do resultado e direcionamento de políticas públicas nesse sentido.

A Lei não logrou êxito na transformação cultural proposta, isto é, na promoção de mudanças efetivas na vida do sujeito surdo, em conformidade com o anunciado em seus artigos[2], inclusive sobre acessibilidade e comunicação, sendo certo, ademais, que o preconceito existente quanto ao sujeito surdo ainda é forte, como experimentado na entrevista de Tais Sena (2017).

E ainda sobre o preconceito, na esteira do que Han (2018) descreve como uma “sociedade do cansaço”, tem-se que há uma forte valorização da produtividade e independência, de modo que, consequentemente, o sujeito que essa sociedade demanda é um sujeito produtivo, proativo, cada vez mais versátil e independente, sofrendo o sujeito surdo por não se encaixar nesse modelo, na medida em que a ausência de acessibilidade lhe torna dependente de terceiros, conforme explicado.

Assim, o sujeito surdo sofre ainda mais preconceito, sendo tratado como um estorvo, um empecilho à produtividade, e como existe socialmente uma grande preocupação com essa produtividade a partir da requisição de sujeitos versáteis que produzam sem apresentarem problemas, resta pouca sensibilidade e paciência com o sujeito surdo que experimenta dificuldades na complexa relação de produção dos sentidos.

A manutenção da competição e da produtividade desmedida (visando o lucro) funciona apagando o outro, alimentando rejeição e preconceito dos sujeitos que não atendem aos requisitos do sujeito padrão demandado pelo mercado, de modo que esse funcionamento produz e amplifica as violências simbólicas suportadas pelo sujeito surdo, excluído duplamente, primeiro experimentando a falta de acesso, e depois rejeitado em razão de suas dificuldades.  

A redução desse preconceito não se resolve apenas juridicamente, ela envolve uma sociedade menos voltada à produção, e mais interessada na valorização da subjetividade humana e sua multiplicidade, com mais tempo destinado à promoção da autonomia do sujeito surdo, conferindo-lhe mais liberdade e dignidade.

Isso, de modo que os ouvintes também possam se interessar e efetivamente aprender LIBRAS, o que só seria possível em uma sociedade menos sufocada pela lógica da produtividade (que atravessa as sociedades contemporâneas) e mais inclusiva, destacando-se ainda que esse aprendizado da língua LIBRAS é fundamental e necessário à acessibilidade do sujeito surdo, sendo imprescindível aos avanços nessa questão.

 

Considerações Finais

Na medida em que a Análise de Discurso de Pêcheux (2014) não trabalha com uma semântica universal, livre da diversidade de sentidos possíveis, tem-se que a reivindicação quanto ao sujeito surdo, não deve ser no sentido de que ele alcance uma suposta transparência da linguagem, obtendo uma verdade, um sentido único, que os ouvintes acessariam (e eles não) em relação à língua majoritária, o língua portuguesa.

Para a compreensão do tamanho das dificuldades e barreiras que enfrentam o sujeito surdo, é importante compreender a complexidade das relações de constituição de sujeito e sentido, observando as especificidades e tensões do sujeito surdo ao deparar-se com o língua portuguesa, uma língua oral-auditiva que frequentemente “não faz sentido” para ele, sendo muito diferente da língua visual-espacial LIBRAS da cultura surda, o que pressupõe uma metodologia específica no aprendizado.

Embora em tese o sujeito surdo deva encontrar na Lei uma potencialização de seus direitos (como preconiza o discurso jurídico), essa mesma Lei, além dos tímidos reflexos, conserva uma associação à deficiência passível de caracterização enquanto violência simbólica para o sujeito surdo que rejeita essa classificação. Como são especialmente importantes os posicionamentos da comunidade e cultura surda acerca do sujeito surdo, teria sido importante uma maior atenção no que analisam esses próprios sujeitos, de modo que muitos deles associam a surdez a uma forma de existir com potencialidades que não merecem ser traduzidas como deficiências.

A multiplicidade comporta a diferença, e quanto a essa diferença, as políticas públicas ainda falham na escuta, enquanto a sociedade em geral ainda cultiva preconceito, e não reconhece o discurso do silêncio como discurso, tampouco reconhecendo a importância de uma sociedade mais acolhedora e sensível às barreiras experimentadas pelo sujeito surdo.

Em uma sociedade fortemente atravessada pela necessidade de produtividade, marcada pela constante competição com demandas cada vez maiores, é estruturalmente gerada a exaustação e o cansaço, contexto que o autor Han (2018) aborda como uma “sociedade do cansaço”.

Nela, o sujeito surdo é tomado majoritariamente como um estorvo, um empecilho à produtividade, experimentando ainda menos paciência e sensibilidade da sociedade em geral, que vive em condições que brutalizam, e naturaliza com maior facilidade as dificuldades do outro, o que é socialmente funcional à manutenção da competição e da produtividade, que apagam a importância do outro, ferindo a dignidade do sujeito.

Além disso, o esgotamento inviabiliza para boa parte da sociedade o aprendizado da língua LIBRAS (ainda que exista o interesse pessoal no aprendizado), posto que, frequentemente, os sujeitos relatam que os desafios do cotidiano já lhes esgotam completamente.

Nesse cenário difícil, inevitavelmente, a redução do preconceito e da violência simbólica destinada ao sujeito surdo, passa também significativamente pela criação de uma sociedade menos injusta, menos violenta, com menos tempo destinado à competição e mais tempo destinado à multiplicidade humana em sua diversidade cultural; mais tempo destinado ao acolhimento e promoção da autonomia do outro e sua liberdade e dignidade, que pressupõem acessibilidade.

Isso dito, a Lei é inócua em suas transformações culturais prometidas acerca do sujeito surdo, se a sociedade competitiva que segue sendo produzida não valoriza o outro e suas dificuldades. Assim, para o assentado nessa Lei repercutir positivamente, efetivamente engendrando efeitos concretos na vida do sujeito surdo, é preciso interrogar seus limites, passados 10 (dez) anos de sua incidência, e refletir sobre como realizar campanhas educativas e informativas sobre a importância da acessibilidade em uma sociedade competitiva que naturalizada cada vez mais violência, em que as próprias leis produzem muitas violências.

Um pequeno, mas importante passo, pode ser intensificar o olhar sobre o que explica a própria comunidade surda e sua cultura, que, para começar, abarca a rejeição da associação da Lei entre surdez e deficiência, sendo que em nenhum artigo da Lei há elementos que indiquem/sugiram uma valorização das potencialidades do sujeito surdo, o que faz sentido, posto que o discurso jurídico enquanto formação discursiva determinando o que pode e deve ser dito mostra-se sobremaneira distante da cultura surda, de modo que a representação jurídica do real jamais se confunde com ele.

Paira um grande desafio nos próximos anos, sendo imprescindível a valorização da autonomia e das potencialidades do sujeito surdo, para além do rótulo de deficiente empregado na Lei. 

 

Notas e referências

AGORA, Mais. Entrevista em LIBRAS: Tais Sena fala sobre falta de acessibilidade para surdos. 2017. (4m58s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YnlmKPgQkYg&app=desktop>. Acesso em: 31 dez. 2023.

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Tradução de Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa; São Paulo: Presença; Martins Fontes, 1970.

BRASIL. Lei Nº 10.098/2000. Estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. Consulta em: 26/02/2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L10098.htm>

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka - por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

GALLO, Silvio Donizetti de Oliveira. Em torno de uma educação menor. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 27, n.02, p. 169-178, 2002.

GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo (1984). Freud e o inconsciente. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

HAN, Byung-chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.

MACHEREY, Pierre. Língua, discurso, ideologia, sujeito e sentido: de Thomas Herbert a Michel Pêcheux. Décalages: Vol. 1: Iss. 4, 2014.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: Princípios e procedimentos. 15. ed. Campinas-SP: Pontes, 2015.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução de Eni Puccinelli Orlandi. 5. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2014.

TALK, Hand. O Impacto do Silêncio #01 - A Comunidade Surda e a LIBRAS. 2017. (1m37s). Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=dUjkPCV_SqI&app=desktop>. Acesso em: 31 dez. 2023.

[1] Na filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1977), uma filosofia da diferença, valoriza-se a questão da resistência associada ao devir minoritário, à singularidade pertencente à multiplicidade. Deleuze e Guattari (1977) inclusive criam o conceito de “literatura menor”, dispositivo para analisar a obra de Kafka, referindo-se ao trabalho/percurso de resistência que uma minoria faz em uma língua maior, sendo certo que o majoritário não é superior ao minoritário. Retornando à questão do sujeito surdo, sua situação não pode ser tomada como de inferioridade ante as línguas majoritárias, atrelando-se a um devir-minoritário que é produção de diferença. O apagamento do sujeito surdo, majoritariamente esquecido pelos ouvintes, não deve ser naturalizado nas línguas majoritárias como algo inevitável, cabendo uma maior consideração das particularidades e necessidades desse sujeito, sensível às dificuldades suportadas nos processos de subjetivação.

[2] Aqui vale considerar a noção de “educação menor” de Gallo (2002), em contraste com a educação maior, vinculada às políticas públicas. A educação menor seria um ato de resistência aos fluxos instituídos, uma atitude que transborda o sedimentado na educação maior e seus direcionamentos. Ocorre, que, na atualidade, como ainda existe mais reprodução do preconceito que propriamente transformação da sociedade de modo a assegurar a acessibilidade do sujeito surdo, que ainda conta com dificuldades no cotidiano mesmo em coisas simples para os ouvintes, como a navegação em sites de internet, atos emocionantes como os descritos na aludida entrevista, tendem a ser frutos não da educação maior, isto é, dos direcionamentos da Lei, mas de atitudes singulares em situações específicas, como alguém que aprende por ter um parente surdo ou mesmo por interesse particular. Dessa forma, cumpre destacar que, em termos gerais, a Lei não entrega, não realiza o que enuncia, existindo uma grande distância entre a transformação preconizada na Lei quando confrontada com as condições reais de existência do sujeito surdo no Brasil.

 

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