LIBERDADE ECONÔMICA E RESPONSABILIDADE DAS EMPRESAS INTEGRANTES DO GRUPO: O QUE MUDOU?

01/10/2019

Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini

Há pouco mais de dois anos da promulgação da Lei 13.467/2017, o Direito do Trabalho é alvo de mais um processo de alteração legislativa com o advento da Lei 13.874/19, conhecida como Lei da Liberdade Econômica. Aumenta-se, sobremaneira, a atmosfera de instabilidade e insegurança jurídicas das partes envolvidas na relação de emprego.

Foram pontos alterados, dentre outros, em prol da liberdade e desenvolvimento econômicos: registro de ponto obrigatório para empresas com mais de 20 empregados, possibilidade de adoção do chamado controle de ponto por exceção e a Carteira de Trabalho e Previdência Social emitida eletronicamente.

Foi alterada, ainda, a regra sobre Desconsideração da Personalidade Jurídica previstas nos artigos 49-A e 50, do CC/2002, que constitui ponto central de análise deste artigo.

 

A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA SOB A PERSPECTIVA CIVILISTA

A Lei 13.874/19 acentua o princípio constitucional da livre iniciativa previsto no art. 1o, da CR/88 e define, em seu art. 2o, os princípios essenciais para incentivo à liberdade econômica e a adoção de políticas de valorização da autonomia, quais sejam: liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas; boa-fé do particular perante o poder público; a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício das atividades econômicas; e o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado.

Antes da promulgação da Lei da Liberdade Econômica, a chamada Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica estava prevista, expressamente, no art. 50, que vigorava com a seguinte redação:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Assim, para que o patrimônio dos sócios ou administradores da pessoa jurídica fosse atingido, era necessário caracterizar o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. Porém, não havia, no mesmo dispositivo, conceitos expressos para configuração destes critérios, ficando a cargo da doutrinaria e jurisprudência fazê-los.

Como mecanismo de incentivo ao empreendedorismo brasileiro, a Lei 13.874/19 acrescentou o art. 49-A e alterou o artigo 50, ambos do Código Civil. Com o artigo 49-A, houve o acirramento da demarcação de personalidade entre sócios, associados, instituidores ou administradores e pessoa jurídica, na medida em que assim prevê:

Art. 49-A.  A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores.

Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos.

Pela intepretação do dispositivo supracitado, afirma-se que ao bem delimitar as personalidades jurídica e física das pessoas envolvidas no mesmo polo de um determinado contrato, haverá maior estímulo para geração de empregados, tributo, renda e inovação em benefício de todos.

Afirma-se, ainda, que os critérios de afetação patrimonial das pessoas físicas se tornaram mais rigorosos, uma vez que foram definidos, no art. 50, alterado pela Lei 13.874/19, os conceitos de desvio de finalidade e confusão patrimonial:

Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

§1º  Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

§2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:

I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;

II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e

III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

§3º  O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.

§4º  A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.

§5º  Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.” (NR)

De forma sistematizada e considerando as recentes mudanças legislativas, para a Desconsideração da Personalidade Jurídica civil foram mantidos os critérios da necessária demonstração de desvio de finalidade e confusão patrimonial (Teoria Maior), ambos conceituados:

  • desvio de finalidade: utilização da pessoa jurídica com o objetivo de prejudicar credores ou cometer ato ilícito de qualquer natureza. A mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica da pessoa jurídica não será considerado desvio de finalidade;
  • confusão patrimonial: ausência de separação de fato dos patrimônios das pessoas físicas e jurídicas, conforme circunstâncias definidas no próprio artigo 50, parágrafo 2o, incisos I a III, do CC/02.

Ainda, nos termos do art. 50, caput, do CC/02, a desconsideração da personalidade jurídica afetará apenas os bens particulares dos sócios ou administradores que, direta ou indiretamente, tenham se beneficiado do abuso, restrição antes não prevista no CC/02.

Por fim, a Lei 13.874/19 ressalvou que a existência de grupo econômico, por si só, não constitui razão para adotar critérios mais flexíveis da desconsideração da personalidade jurídica,  ou seja:  mesmo que as empresas estejam inseridas em um grupo, é necessária a demonstração de desvio de finalidade ou confusão patrimonial. Este tema será melhor analisado no tópico a seguir.

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E GRUPO ECONÔMICO.

Por não haver, na legislação celetista, norma específica sobre desconsideração da personalidade jurídica e considerando a hipossuficiência do trabalhador, adotava-se, até o advento da Lei 13.874/19, de forma irrestrita, a Teoria Menor da Desconsideração  da Personalidade Jurídica, a partir da aplicação subsidiária do Código de Defesa do Consumidor. Neste sentido, prevê o art. 28 do CDC:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§1° (Vetado).

§2ºAs sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§3ºAs sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§4ºAs sociedades coligadas só responderão por culpa.

§5ºTambém poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. (grifado)

Destaca-se, especialmente, o parágrafo 5o, responsável por flexibilizar os critérios de desconsideração da personalidade, constituindo, pois, fundamento para a Teoria Menor. No Direito do Trabalho, o simples inadimplemento da pessoa jurídica de dívida de natureza trabalhista já é critério para afetação dos bens particulares dos sócios.

Porém, com a mudança do art. 50, do CC/02, a Lei da Liberdade Econômica criou uma exceção a esta regra – aplicação da Teoria Menor da Desconsideração da Personalidade Jurídica - ao determinar que a mera organização das empresas em grupo econômico não constitui motivo para a não aplicação do requisito da desconsideração, qual seja: abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.

Portanto, com o advento da Lei 13.874/19, se a empresa fizer parte de grupo econômico, cujos requisitos estão previstos no art. 2o, parágrafos 2o e 3o, da CLT, será aplicada a Teoria Maior da Desconsideração da Personalidade Jurídica, mediante previsão expressa no art. 50, parágrafo 4o, do CC/02. Será necessária a comprovação de abuso da personalidade jurídica para que as pessoas físicas, enquanto sócios ou administradores, sejam condenadas ao pagamento da dívida de natureza trabalhista, mesmo que tenha ela caráter predominantemente alimentar.

Caso não faça parte de grupo econômico, deverá prevalecer a aplicação subsidiária do art. 28, do Código de Defesa do Consumidor, a partir do qual o simples inadimplemento da pessoa jurídica, por si só, justifica a responsabilização direta dos sócios ou administradores. O dispositivo civilista deverá ser, pois, interpretado de forma literal, restringindo a Teoria Maior apenas a empresas integrantes de grupo econômico. Desta forma, haverá plena compatibilidade legislativa à base principiológica trabalhista – princípio da proteção – com os vieses da liberdade econômica.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Direito do Trabalho, prevalece a regra segundo a qual o simples inadimplemento da dívida de natureza trabalhista pela pessoa jurídica autoriza a afetação dos bens particulares dos sócios ou administradores, sem que se tenha a comprovação de abuso da personalidade jurídica (Teoria Menor da Desconsideração).

Porém, caso a empresa faça parte de grupo econômico, a comprovação do abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, torna-se necessária para a desconsideração. Assim, neste caso, ter-se-á a aplicação da Teoria Maior, em conformidade com a nova redação do art. 50, parágrafo 4o, do CC/02.

Vale destacar que as empresas  que integram grupo econômico continuam sendo solidariamente responsáveis por dívidas resultantes da relação de trabalho. Significa dizer que o trabalhador contratado por uma das empresas integrantes do grupo poderá cobrar a integralidade da dívida de qualquer uma das demais empresas, sem que exista uma ordem de cobrança. Porém, ao requerer a desconsideração da personalidade jurídica para que tenha a condenação da pessoa física dos sócios ou administradores, deverá comprovar o abuso de personalidade a que se refere o art. 50, do CC/02.           

 

Imagem Ilustrativa do Post: Figures of Justice// Foto de: Scott Robinson// Sem alterações

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