LIBERDADE DE EXPRESSÃO, CRIMES CONTRA A HONRA E CENSURA

18/04/2019

Vivemos tempos sombrios no Brasil, com a volta da censura prévia, com o cerceamento da liberdade de imprensa, com a intimidação ostensiva aos que ousam pensar e se expressar de maneira diversa e com o uso inescrupuloso do aparato do Estado para fazer calar a voz de uma sociedade que se encontra assombrada com o nível atingido pela corrupção, pelos desmandos, pelo abuso de autoridade e pelo silêncio constrangedor de algumas instituições que deveriam velar pela prevalência do Estado Democrático de Direito.

Nesse contexto, cabe lembrar que a liberdade de expressão exsurge como direito fundamental, corolário da dignidade humana, vindo expresso nos arts. 5º e 220 da Constituição Federal, vedada, inclusive, peremptoriamente, a censura prévia.

Estabelecer os limites da liberdade de expressão constitui, nos dias atuais, uma tarefa um tanto complexa, ainda mais em face da multiplicidade de crimes que tipificam condutas que, muitas vezes, esbarram nesse direito, quando não com ele colidem.

No âmbito dos crimes contra a honra, o Código Penal tipifica a calúnia (art. 138, CP), a difamação (art. 139, CP) e a injúria (art. 140, CP), cada qual com seus contornos legais que os diferenciam.

A calúnia constitui a imputação falsa de fato definido como crime. A difamação consiste na imputação de fato ofensivo à reputação. A injúria, por seu turno, é a ofensa à dignidade ou ao decoro.

Os dois primeiros ofendem a honra objetiva, ou honra externa, que consiste na reputação do indivíduo, que é o conceito de que goza perante a sociedade, a concepção que os demais têm de seus atributos físicos morais e intelectuais. O último ofende a honra subjetiva, ou honra interna, que é a auto-estima do indivíduo, consistente na concepção que ele próprio tem de seus atributos físicos, morais e intelectuais.

Pois bem. Em todos os crimes contra a honra há a necessidade, para a sua configuração, que o agente atue com dolo, consistente em “animus calumniandi”, “animus diffamandi” ou “animus injuriandi”, não se configurando os delitos apontados na presença do “animus jocandi”, do “animus narrandi”, do “animus criticandi”, do “animus defendendi”, do “animus retorquendi” e do “animus corrigendi”.

Especificamente sobre a confluência da liberdade de imprensa com as ofensas contra a honra, em primoroso acórdão da lavra do ilustre e saudoso Ministro Ayres Britto, na ADI 4.451 – MC-REF/DF, publicado no DJE em 01.07.2011, a questão foi enfrentada com ímpar maestria, nos seguintes termos:

“Não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. Dever de omissão que inclui a própria atividade legislativa, pois é vedado à lei dispor sobre o núcleo duro das atividades jornalísticas, assim entendidas as coordenadas de tempo e de conteúdo da

manifestação do pensamento, da informação e da criação ‘lato sensu’. Vale dizer: não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, pouco importando o Poder estatal de que ela provenha.

Isso porque a liberdade de imprensa não é uma bolha normativa ou uma fórmula prescritiva oca. Tem conteúdo, e esse conteúdo é formado pelo rol de liberdades que se lê a partir da cabeça do art. 220 da Constituição Federal: liberdade de ‘manifestação do pensamento’, liberdade de ‘criação’, liberdade de ‘expressão’, liberdade de ‘informação’. Liberdades constitutivas de verdadeiros bens de personalidade, porquanto correspondentes aos seguintes direitos que o art. 5º da nossa Constituição intitula de ‘Fundamentais’: a) ‘livre manifestação do pensamento’ (inciso IV); b) ‘livre [...] expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação’ (inciso IX); c) ‘acesso a informação’ (inciso XIV).

Pelo seu reconhecido condão de vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do papel, a imprensa mantém com a democracia a mais entranhada relação de interdependência ou retroalimentação. A presente ordem constitucional brasileira autoriza a formulação do juízo de que o caminho mais curto entre a verdade sobre a conduta dos detentores do Poder e o conhecimento do público em geral é a liberdade de imprensa. A traduzir, então, a ideia-força de que abrir mão da liberdade de imprensa é renunciar ao conhecimento geral das coisas do Poder, seja ele político, econômico, militar ou religioso.

A Magna Carta Republicana destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do Estado e da própria sociedade. A imprensa como a mais avançada sentinela das liberdades públicas, como alternativa à explicação ou versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade e como garantido espaço de

irrupção do pensamento crítico em qualquer situação ou contingência. Os jornalistas, a seu turno, como o mais desanuviado olhar sobre o nosso cotidiano existencial e os recônditos do Poder, enquanto profissionais do comentário crítico. Pensamento crítico que é parte integrante da informação plena e fidedigna.”

Em outra passagem, acerca especificamente dos programas humorísticos, expôs brilhantemente o Ministro Ayres Britto: “Programas humorísticos, charges e modo caricatural de pôr em circulação ideias, opiniões, frases e quadros espirituosos compõem as atividades de ‘imprensa’, sinônimo perfeito de ‘informação jornalística’ (§

1º do art. 220). Nessa medida, gozam da plenitude de liberdade que é assegurada pela Constituição à imprensa. Dando-se que o exercício concreto dessa liberdade em plenitude assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero, contundente, sarcástico, irônico ou irreverente, especialmente contra as autoridades e aparelhos de Estado.”

Entretanto, a liberdade de expressão (incluída a liberdade de imprensa) não é um direito absoluto, prevendo a Constituição Federal, no art. 5º, V, estar “assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.”

Nesse aspecto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em mais de um precedente, a par de rechaçar a censura prévia a qualquer exercício do direito à liberdade de pensamento e de expressão, admitiu haver restrições ao direito à liberdade de expressão, conforme estabelecido no art. 13, parágrafos 4º e 5º, da Convenção Americana, e no art. 13.2, a fim de “assegurar o respeito aos direitos e à reputação das demais pessoas”.

Assim decidiu a CIDH no julgamento do caso Lagos Del Campo “versus” Peru, em sentença de 31 de agosto de 2017:

“La Corte ha reiterado que la libertad de expresión no es un derecho absoluto. El artículo 13.2 de la Convención, que prohíbe la censura previa, también prevé la posibilidad de exigir responsabilidades ulteriores por el ejercicio abusivo de este derecho, inclusive para asegurar ‘El respeto a los derechos o la reputación de los demás’ (literal ‘a’ del artículo 13.2). Estas restricciones tienen carácter excepcional y no deben limitar, más allá de lo estrictamente necesario, el pleno ejercicio de la libertad de expresión y convertirse en un mecanismo directo o indirecto de censura previa. En este sentido, la Corte ha establecido que se pueden imponer tales responsabilidades ulteriores, en tanto se pudiera haber afectado el derecho a la honra y La reputación. El artículo 11 de la Convención establece, en efecto, que toda persona tiene derecho a La protección de su honra y al reconocimiento de su dignidad. La Corte ha señalado que el derecho a la honra ‘reconoce que toda persona tiene derecho al respeto de esta, prohíbe todo ataque ilegal contra la honra o reputación e impone a los Estados el deber de brindar la protección de la ley contra tales ataques. En términos generales, este Tribunal ha indicado que el derecho a la honra se relaciona con la estima y valía propia, mientras que la reputación se refiere a la opinión que otros tienen de una persona’. En este sentido, este Tribunal ha sostenido que, ‘tanto la libertad de expresión como el derecho a la honra, derechos ambos protegidos por la Convención, revisten suma importancia, por lo cual es necesario garantizar ambos derechos, de forma que coexistan de manera armoniosa’. El ejercicio de cada derecho fundamental tiene que hacerse con respeto y salvaguarda de los demás derechos fundamentales. Por ende, la Corte ha señalado que ‘La solución del conflicto que se presenta entre ambos derechos requiere de una ponderación entre los mismos, para lo cual deberá examinarse cada caso, conforme a sus características y circunstancias, a fin de apreciar la existencia e intensidad de los elementos en que se sustenta dicho juicio’.”

Em suma, o grande desafio da atualidade, em um estado democrático de direito, respeitador das garantias e direitos individuais, é se estabelecer limites e compensações entre a liberdade de expressão e o direito à honra e à imagem, limites esses que, em último caso, acabam por desembocar na competência da Corte Superior, da qual se espera e se exige a fiel e imparcial guarda da Constituição.

 

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