Liberdade, Autonomia e Religião

08/04/2015

Por Atahualpa Fernandez – 08/04/2015

 “Desconfío de aquellas personas que saben muy bien lo que Dios quiere que ellos hagan,  porque me doy cuenta   que siempre coincide con sus propios deseos”. (Susan B. Anthony)

Qualquer devoto ou fariseu que insista na defesa de que o Estado deve assumir uma política que possa implicar no desprezo da tolerância ou no desconhecimento do pleno e inalienável direito dos indivíduos a assumir por si mesmos crenças e valores diferentes, é um perigo de excepcional perversidade para o exercício pleno da liberdade e autonomia cidadã. Quando uma determinada ideologia religiosa transpõe a esfera do privado e do pessoal e se converte, com o beneplácito do Estado e como manancial de graça santificante, em costume ou tradição obrigatória para todos os cidadãos, está servida a mesa para a incompreensão, o fanatismo, a subjugação e a intromissão arbitrária e despótica em nossa individualidade.

Dito de forma um pouco grossa: se arrancamos o misticismo, as abstrações da intrincada teologia e o dogmatismo religioso, obteremos uma postura humanista fundada na «criatura», no ser humano «desenhado» para a cooperação, o diálogo e a argumentação, na  capacidade de qualquer para buscar o próprio bem e formular os projetos de vida que melhor se adapte ao seu temperamento e caráter, na possibilidade concedida a cada qual de ser dono de seu destino e de melhorar sua existência, na liberdade para fazer o que gostamos sem impedimento por parte de nossos congêneres e sempre que nosso comportamento não lhes cause nenhum dano. Na liberdade, enfim, para sermos felizes ainda que pensem que nossa conduta é “estúpida, perversa ou equivocada.” (J. Stuart Mill).

Nada obstante, a religião, especialmente a católica como produto de uma pomposa e orgulhosa incivilidade que envenena, é algo muito distinto. A única garantia de uma contínua colaboração entre os seres humanos é uma boa disposição para  modificar nossas idéias  (e o comportamento resultante)  por meio e à luz das evidências e das “boas e sólidas razões” (B. Spinoza)[1]. Se eu creio no fatalismo divino e me conformo com a infalibilidade papal, então nada do que diga outra pessoa logrará persuadir-me, porque me encontro entregado a uma fé que me faz imune ao poder do diálogo e da deliberação sobre o bem comum, deixando de lado as diferenças particulares. Em realidade, a sacralização de um conjunto de normas, costumes, ritos e símbolos é uma extraordinária fonte de poder e o modo mais eficaz de cortar pela raiz ou borrar por completo “de bajo los cielos” (Éxodo 17:14) o consenso, a liberdade e a autonomia individual.

E se admitimos como boa a afirmação anterior e nos aprofundamos um pouco mais, chegamos a uma cadeia causal segundo a qual a liberdade consiste precisamente no fato de que o homem é livre quando dispõe da capacidade de tomar em suas mãos seu próprio obrar, suas convicções (filosóficas e religiosas) e seus planos de vida. Somos nós que temos que escolher e decidir nosso destino, partindo já de umas tendências e intuições inatas, baixo a orientação (a virtude e a obrigação moral) do bom conhecimento e o poder da boa razão (e das boas emoções) para superar os prejuízos mais comuns e o sistema de crenças “en el que jamás escogimos creer”[2]. A (pouca e limitada) liberdade de eleger e decidir nos abre um amplo campo de possibilidades e objetivos que cada um de nós deve pôr em prática de acordo com seu modo peculiar de ser e suas circunstâncias.

Eleger e decidir livremente sobre nossos planos de vida implica a liberação de tudo aquilo que nos escraviza: ser livre é ir liberando-se pouco a pouco daquelas amarras que não permitem ter um domínio ou controle pleno sobre si mesmo. O interesse humano pela verdadeira liberdade, como valor prioritário na ordem dos valores, vem a converter-se, desde a idéia da laicidade, em um convite a viver dignamente nossa existência na construção e eleição conjunta de alternativas reais e factíveis que priorizem nossa inalheável e inata capacidade moral para decidir o que é bom e o que é mau.

Para existir como indivíduo é, pois, e ao menos, necessária a garantia plena da liberdade; é necessário não ser condicionado, domesticado e/ou perseguido por interesses ou crenças religiosas degeneradas e, principalmente, não ser tratado como um instrumento, uma «ovelha», «cordeiro» ou «servo» do Senhor, senão como um fim em si mesmo. A liberdade é o contrário da servidão: é livre quem não pode ser arbitrariamente interferido por outros em seus planos de vida (não somente por parte do Estado senão também de todos os demais agentes sociais ou espirituais, reais ou imaginários).

Esta não interferência arbitrária, característica de nossas repúblicas (e democracias), é um dos princípios fundamentais e valor incondicional que deve ser utilizado de forma categórica para a garantia dos direitos constitutivos do homem no âmbito de sua vontade soberana (pessoalmente, prefiro falar de «vontade», porque a evidência aponta que o livre-arbítrio é uma ilusão) e que habilitam publicamente sua existência como «in-divíduo»: definitivamente, a liberdade de governar a própria vida é condição necessária da individualidade, de um existir separado e autônomo.

Sobretudo em tema de crenças religiosas, o que realmente conta, no concernente à liberdade de consciência ou pensamento, é a autonomia. E a autonomia é essencialmente uma questão de se somos ativos e não passivos em nossos motivos, eleições e decisões; de se, com independência de qualquer dever ou dogma religioso, são motivos, eleições e decisões que realmente queremos e que, portanto, não nos são alheios (H. Frankfurt). Somente aos indivíduos que abraçam uma existência de cidadãos plenamente livres lhes é dado julgar essas circunstâncias, e não à caterva arrogante de sacerdotes empenhados em decidir por eles. A vida, a liberdade e a formação virtuosa do caráter é algo demasiado importante como para deixá-lo à contingência de uma sinistra, retorcida e perniciosa manipulação eclesiástica de determinadas crenças, imperativos, mitos e símbolos religiosos.[3]

E não olvidemos, dito seja de passagem, que foi o anjo mais altivo do Céu, Lúcifer, o primeiro que lutou pela liberdade. Dominado por uma obscura indignação, se insurgiu e incitou à rebelião em nome da liberdade e a igualdade, negando-se a viver de “rodillas ante Dios”: “Tronos, dominaciones, principados, Virtudes, potestades, si estos títulos Ilustres permanecen todavía Como no meramente nominales Ya que otro se arroga todo el poder Y nos deja eclipsados con su nombre De Rey ungido.”[…] ¿Quién puede, pues, por derecho o por razón, Asumir la monarquía de quienes Viven por derecho como sus iguales, Si no con tanto poder y esplendor, Iguales sí en la libertad? ¿Quién puede Dictarnos leyes e imponer decretos A quienes aún sin leyes nunca yerran?”.

Finalmente expulsado ao inferno junto a todos seus seguidores, ali permaneceu 20.000 anos “sin otra ocupación que la de  rascarse la tripa y estar continuamente angustiado”, segundo Daniel Defoe em seu erudito The Political History of the Devil. Enquanto isso, Deus observava bastantes espaços vazios no Céu depois dessa sublevação de proporções estalinistas, mas considerou que em lugar de criar mais anjos, provaria algo novo, pondo esta vez mais ênfase na obediência de suas criaturas: “(…) Yo sabré Reparar esta pérdida, si tal Puede considerarse al perder A los que se perdieron a sí mismos, Y en un momento crearé otro Mundo, Y de un hombre una raza innumerable De hombres para que vivan allí, No aquí, hasta que elevados gradualmente Según sus propios méritos se abran Hasta aquí con el tiempo su camino Probados por una larga obediencia Y la Tierra sea convertida en Cielo”.  Quer dizer, em última instância, tanto os seres humanos como o mundo que habitamos existem devido a essa rebelião celestial. Graças a Satanás, em suma[4].

Para ultimar de alguma maneira mais desafetada, direi que nenhum livro sagrado, nenhum deus (es), mandado, imagem ou ideologia religiosa, nenhum, pode valer mais que a vida e a liberdade de um só ser humano, do indivíduo de carne e osso, da «criatura» com seu nome e sua firma, com sua estrutura genética singular, sua personalidade e caráter, sua forma particular de caminhar pelo mundo, de sorrir, amar, mirar e sofrer.

É absoluta a antítese entre liberdade e servilismo religioso.


Notas e Referências:

[1] Michael Martin, em The Case Against Christianity: ¿“Bajo qué condiciones deberíamos creer en las doctrinas cristianas? No hay duda de que la respuesta razonable y de sentido común es la siguiente: en igualdad de condiciones, sólo deberíamos creer en ellas si existen buenos motivos para hacerlo.[…] Según la interpretación estricta, deberíamos evitar creer en algo que contradiga la evidencia y entender que las únicas buenas razones para creer que las doctrinas son verdaderas son las razones epistemológicas. Si tenemos en cuenta esos puntos, podemos decir que existe un deber tanto moral como epistemológico para no creer en las doctrinas cristianas, a menos que haya buenas razones epistemológicas para creer en ellas…Y no las hay. […] Se trata, sin duda, de creencias aprendidas y que difícilmente pueden ser provocadas por unas condiciones ampliamente comprobables, como la de contemplar los cielos estrellados.”

[2] O ideal de vida elegida não se corresponde com o modo em que vivemos. Não somos os autores plenipotenciários de nossas vidas; não somos sequer artífices parciais dos fatos que nos marcam (ou nos marcaram) mais profundamente. Não pudemos eleger quase nada do que tem maior importância em nossa existência: o momento e o lugar em que nascemos, nossos pais e irmãos, a primeira língua que falamos ou a religião que professamos são resultados da casualidade e do que nos ensinaram, não da “livre” eleição (nunca tivemos a oportunidade de eleger o que crer e o que não crer, nem sequer escolhemos nosso próprio nome). Aprendemos a viver segundo os pontos de vista e crenças dos demais por medo a não ser aceitado ou de não ser o suficientemente “bom” para satisfazer as expectivas e as exigências de outras pessoas. A vida de cada um de nós é um capítulo de acidentes e sabemos que nada pode fazer-nos invulneráveis à fortuna e à casualidade. (J. Gray)

[3] “Esto es: tomad la resolución de no servir y seréis libres” (La Boétie). Há que ser moralmente autônomo, dono de tua vida em igualdade com os demais: “De lo que se rechaza y de lo que se elige nace el futuro; de lo más banal a lo más importante” (Sócrates). Este o imenso socavão na ética da obediência e da conformidade que herdamos do velho filósofo grego: não refugiar-se na absoluta certeza de alguma «verdade revelada», lutar a diário por nossa independência e buscar a liberdade em nós mesmos, exatamente igual que a alegria, a autoestima e a felicidade (e isso não é fácil; não pode ser fácil). Porque a liberdade nada tem de bíblica maldição, senão de ditoso direito que se «desapareciese por completo de la tierra, muchas personas la inventarían» (La Boétie); e não cabe democracia madura e apresentável em «sociedades indecentes» nem entre gentes moralmente infantis.

[4]Nota bene: O Apocalipse de São João já menciona os convulsos acontecimentos que levaram ao Diabo a habitar o Inferno. Mas foi uma das obras chave da literatura universal, El paraíso perdido de John Milton, a que nos deu a conhecer em detalhe o falido golpe de Estado celestial, liderado por um anjo singularmente majestoso e audaz que quis arrebatar o trono do Céu ao mesmíssimo Deus (J.Bilboa).


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