LGPD e Sociedade de Controle: reflexões sobre a base legal do "legítimo interesse"

07/08/2024

A ilustração de um diagrama de poderes exercidos no palco convencionado como "Sociedade de Controle", tem raízes filosóficas nos arcos históricos analisados por Michel Foucault, sendo um conceito expandido por Gilles Deleuze, no texto Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle. Ambos os autores exploraram o funcionamento das formas de poder, controle e processos de subjetivação, analisando como se transformam ao longo do tempo[i].

Hoje, testemunhamos ainda uma nova transformação, um novo capítulo desse diagrama de poderes da Sociedade de Controle, envolvendo o avanço da Inteligência Artificial (IA), a centralidade crescente dos dados e algoritmos (um mundo regido por dados, com funcionamentos obscuros para a esmagadora maioria das pessoas). Mundo de compartilhamentos e cruzamentos de dados de forma cada vez mais veloz, atravessados por análises cujas regras, resultados e conclusões, cada vez menos passam por filtros humanos, que vão se tornando secundários. Cartões de crédito, dispositivos como smartphones, tablets, redes sociais, viabilizam e potencializam a coleta e tratamento de massivas quantidades de dados pessoais, utilizados para monitorar, prever e influenciar comportamentos e economias.

Na atualidade do século XXI, as tecnologias digitais possibilitaram um nível sem precedentes de monitoramento e controle social. Plataformas de redes sociais, sistemas de vigilância (inclusive em massa) por câmeras, algoritmos de análise de dados e Inteligência Artificial, antes abrangentes de literatura de ficção distópica e mesmo absurdista, migraram para o realismo, sendo usados tanto por governos (abertamente ou não) quanto por empresas, a maioria basicamente para seguir operando / funcionando, e as maiores, com alto poder de impacto para manter a coesão artificial da sociedade (eventualmente para remanejá-la, inclusive em disputas), obviamente refletindo nos desdobramentos que recaem sobre as vidas das pessoas, reféns de abusos de poder, no âmbito público e privado.

No mundo, tecnologias como drones, câmeras e softwares de reconhecimento facial, em escala micro ou macro de vigilância em massa (inclusive, com exemplos imprecisos capazes de perpetuar violências estruturais pré-existentes, como o racismo, bem como, produzir novas violências, fora a questão da ilegalidade em si), são cada vez mais utilizadas para monitorar o espaço público e identificar comportamentos (no final, pessoas) supostamente desviantes ou considerados "suspeitos" (por autoridades e suas tecnologias adotadas).

Esse controle exercido por meio de redes e sistemas de informação compartilhados que o cidadão comum não domina ou acessa legalmente, dificulta a própria reclamação de violação, produzindo uma escalada de abusos invisíveis de efeitos reais. Na Sociedade de Controle, as próprias violações a direitos e garantias fundamentais tornam-se frequentemente menos visíveis e mais rápidas, mais sutis e eficazes, acompanhando o fluxo de controles, e contribuindo para um cenário desenfreado de despreocupação com os titulares de dados.

As regras e limites sobre dados emergem mundialmente como freios para uma "racionalidade mínima" dentro disso tudo, deslocando expressão de Zaffaroni (2013) ao explicar sobre o (limitado) poder dos juristas para conter exercícios de poder sem regras.

Acerca do poder punitivo, no Brasil, exemplo do vale-tudo com dados pode ser experimentado, ou parcialmente relacionado, (ainda) à ausência de uma "LGPD Penal" (como apelidada), de modo a barrar minimamente a farra de dados associados à questão criminal.

E nisso, voltamos propriamente à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) do Brasil e suas bases legais para tratar dados, interessando refletir sobre uma das mais destacadas na atualidade: a base legal do legítimo interesse, ainda confundida no país, meramente como um interesse qualquer da empresa, apagando-se o "legítimo" e a proibição de violar direitos e garantias do titular.

A LGPD estabelece várias bases legais para o tratamento de dados pessoais, sendo uma delas a do legítimo interesse, no entanto, destacamos que pode estar ocorrendo um grande desvirtuamento dessa base legal, tomando-se / confundindo-se como legítimo interesse, o mero interesse empresarial, trazendo-nos um problema que merece ser explorado e desvelado.

Nesse sentido, sabe-se que é necessário um interesse constitucional, não abusivo, apto a justificar o tratamento de dados pessoais, sem sobrepujar os direitos e liberdades fundamentais dos titulares. Esse interesse deve ser real, concreto, balanceado, e não pode contradizer a parte do texto legal de não se sobrepor a direitos e garantias. Obviamente, nem todo interesse empresarial se encaixa nessa base legal, e muito menos de qualquer forma.

A confusão ou desvirtuamento que ressaltamos, ocorre repetidamente quando empresas e profissionais interpretam o legítimo interesse de forma ampla demais, equiparando-o ao mero interesse empresarial, promovendo tratamentos de dados pessoais sem justificativas juridicamente condizentes com o esperado da base legal, de modo inadequado, desproporcional, abusivo, violando direitos, sem avaliação de potenciais impactos, da necessidade e mesmo constitucionalidade.

Existem termos de nomes para "testar" a classificação dessa base, como o chamado Teste de Necessidade, mas o fundamental para o leigo é desde o início desatar o nó que confunde qualquer interesse pretendido com algo lícito, e nesse ponto, todos devem ter clareza sobre isso, não apenas o departamento ou profissional do campo jurídico.

Vale fechar com um exemplo bem típico da Sociedade de Controle, onde existe uma dificuldade de se separar as coisas, fisicamente e temporalmente, inclusive pela dissolução das fronteiras físicas e mudanças requeridas dentro da formação social, especialmente pós-pandemia, em um mundo mais digital, onde não se sabe mais quando é o fim do trabalho, quando se está descansando etc.

O exemplo a seguir conecta o explicado sobre Sociedade de Controle, LGPD e monitoramentos. Na situação, uma empresa decide monitorar atividades online de seus funcionários, fora do horário e local de trabalho, justificando genericamente com base no legítimo interesse, alegando ser necessário para proteger a empresa, a qualidade do serviço, otimizar as entregas etc. Nesse contexto de monitoramento online com justificativa genérica, temos problemas, a começar, que a escolha não pode justificar uma violação aos direitos e garantias fundamentais dos funcionários, privando-lhes ou sujeitando-lhes a práticas atentatórias contra sua dignidade, que possam minar a paz e sossego minimamente esperadas.

A Sociedade de Controle tem muito esse problema já assinalado por seus autores franceses, a dissolução de fronteiras (físicas e mesmo temporais), embaralhando o que é emprego do que não é, o que é descanso do que não é, desaparecendo com as ordens tradicionais, de início e fim das coisas de modo nítido. Tudo se mistura, torna-se confuso. Isso, o acontecimento discursivo "pandemia" agravou com a digitalização e adaptação forçada, apressada. Seja como for, voltando ao exemplo, monitorar atividades fora do ambiente de trabalho e em horários pessoais dificilmente pode ser considerado proporcional e necessário, salvo situações muito especiais e específicas que sequer vale cogitar nesse curto espaço de texto.

Como efeito de fim: a Sociedade de Controle tem no próprio nome o indicativo da centralidade de violações estruturais[ii], sendo palco de um difícil cenário de luta para juristas, dado que a versatilidade dos controles supera a efetivação e concretude das barreiras, limites e contenções ao poder irrestrito e absoluto, onde entra a LGPD.

A LGPD surge não para simplesmente proibir o uso de dados por empresas, em uma sociedade que obviamente depende de dados, mas para fixar regras e limites básicos, em busca de uma racionalidade mínima, sem a qual, mostrar-se-ia impossível a vida em sociedade. Diga-se de passagem, é disso que se trata a criminologia zaffaroniana, uma racionalidade mínima contra abusos máximos.

Dentro de seus limites, a LGPD funciona como parte dos mecanismos e proteções de um mínimo civilizatório, de modo que onde existem dados pessoais, não pode existir tratamento irrestrito, para qualquer coisa, e de qualquer forma.

 

Notas e referências:

AUGUSTO, Acácio. Política e polícia: Cuidados, controles e penalizações de jovens. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2013.

PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. Florianópolis: Habitus, 2018.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas: Deslegitimación y Dogmática Jurídico-Penal. Buenos Aires: Ediar, 20

[i] E isso, com olhares para objetos de pesquisa um tanto quanto desprezados no questionamento de sua imprescindibilidade e naturalização (com efeitos de obviedade), estendida a diversas instituições, como prisões, escolas, quartéis e fábricas. Tem-se com Foucault e Deleuze, olhares críticos perante objetos de pesquisa desprezados, que anteriormente poderiam tranquilamente ser considerados (por terceiros) como objetos sem prestígio e indignos de intelectuais, como o estudo das prisões e do apontado como a (história da) loucura. O diagrama de poderes da Sociedade de Controle envolve não apenas a chegada de novas tecnologias, mas o cenário ou estágio da formação econômica e social, sua razão de Estado e de governo, sua manifestação do princípio da autoridade e da punição, e principalmente, o que Zaffaroni (2013) destaca como um poder (positivo) configurador da sociedade, que existe paralelamente aos controles, monitoramentos e punições, atuando também como autocontrole. E ainda, um controle do outro, conforme a designação cidadão-polícia de Augusto (2013), que avança na compreensão do sujeito contemporâneo (nomeando e dissertando sobre), moldando comportamentos, (de)marcando deveres e internalizando normas, à luz do sujeito de direito, em que essa própria designação (sujeito) parte essencialmente de uma ficção jurídica (todo sujeito o seria). Zaffaroni (2013) entende que o principal poder exercido relacionado ao poder punitivo é o poder positivo configurador, não restrito à força bruta da prisão. Na verdade, esse poder positivo funciona, justamente porque em conjunto com os demais, em cenário de coerção, constrangimento, policiamento e monitoramentos.

[ii] Em Pires (2018) se sustenta que o controle social se tornou mais sutil e abrangente, sugerindo-se que o sistema penal com a sua seletividade intrínseca não é apenas uma questão de quem é criminalizado, mas também de quem é monitorado, como, e para que funções reais, no diagrama de poderes exercidos. Mesmo que todos sejam monitorados, os efeitos não são os mesmos para todos: o como envolve o funcionamento, a dinâmica, os efeitos.

 

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