LGPD e Criminologia zaffaroniana: dificuldades na periferia do poder planetário

28/08/2024

Este texto aborda a LGPD e nossa CF no contexto da sociedade de controle designada por Deleuze e abordada em Pires (2018), à luz da criminologia zaffaroniana (ZAFFARONI, 2009, 2011, 2012, 2013, 2020) desde o materialismo histórico e autores como Anitua (2010) ao registrar o emergir do poder punitivo no planeta, associado ao discurso jurídico e Estado moderno. Sobretudo a partir de Zaffaroni (2011, 2012), que considera em seu realismo marginal, as nossas especificidades enquanto país e continente na periferia do poder planetário (logo, envolve especialmente Criminologia, Sociologia Jurídico-Penal, Filosofia e Direito).

Como problematização, apontamos como assegurar o cumprimento da CF e LGPD acerca da Proteção de Dados, em contexto global de assimetria de poder? Vivemos marcados por desigualdade de poder entre os cidadãos da América Latina e os que controlam os dados internacionalmente, incluindo então, os entes mais atrelados a tecnologias e países estrangeiros, onde a regulamentação, comunicação e diálogo sobre as regras incidentes sobre dados pessoais é intrinsecamente desigual. E ainda, estruturalmente unilateral, dentro da dinâmica da formação econômica e social em questão na qual vivemos e fatalmente nos filiamos de modo a sobreviver, bem como, dentro da qual existe a forma e o discurso jurídico.

Eugenio Raúl Zaffaroni, ao referir-se à América Latina como periferia do poder planetário, destaca a posição subalterna do continente em relação à rede de poder(es) planetária, com subordinação e dependência política, econômica e tecnológica aos países centrais do nosso, hoje, capitalismo digital.

Quando Zaffaroni (2011, 2012) abordou tais temas de modo didático até para leigos, a subordinação tecnológica não era uma característica tão central quanto agora, mas hoje, com o avanço exponencial das novas tecnologias, somadas às novas dependências para com produtos e serviços externos, isso adquire uma centralidade substancial a qual não podemos mais ignorar, apagar, fingir que não existe. Afinal, vivemos em um mundo de autoridades e verticalidades com imposições unilaterais sob a máscara de escolhas livres, o que não é diferente quando falamos do controle real sobre nossos dados pessoais. Em Pires (2023) é explorado o papel dessas verticalidades no comprometimento e corrosão das (supostas) escolhas livres que os sujeitos teriam, em um mundo mais horizontal. Contudo, o real, conforme segue nos remetendo Zaffaroni (2012), indica uma brutal assimetria de poder, em uma região historicamente marcada por saques e massacres, e que preserva a sua própria clivagem de classes incentivada no plano internacional.

Essa condição de periferia nutre implicações específicas acerca dos discursos e saberes, e nesse sentido, Zaffaroni (2012, 2013) explora uma perspectiva marginal, à margem, explorando o funcionamento de um direito penal marginal e o desastre da importação de saberes acerca de funções ligadas direta e indiretamente ao poder punitivo, bem como, a desastrosa importação das perspectivas sistêmicas legitimantes da pena; nessa toada, foge da atribuição das funções da pena e segue numa linha (teoria) agnóstica da pena. Assim como Anitua (2012) também se esforça no sentido de uma teoría de la no pena, ambos representando, cada um do seu modo, o comprometimento dos juristas argentinos para um mundo com menos sofrimento e dor.

Avançando, a condição de periferia do poder planetário bem assentada e explorada na criminologia zaffaroniana envolve um discurso com efeitos de sentido bem singulares; inclusive é nesse cenário, à margem do poder planetário, repleto de violações cristalinas, que Zaffaroni (2012) insiste na Criminologia Cautelar preventiva de massacres (afastando-se dos abolicionismos por questão de prioridade emergencial de conter massacres e violações de direitos absurdas no nosso continente, contudo, sem apoiar-se em alguma boa função ilusória da pena, apenas tratando-se de critério eleito de sobrevivência), para buscar com urgência alguma redução de danos desde o nosso continente acometido por massacres.

Pois bem, vamos ao que interessa acerca da LGPD: essa condição continental periférica, inevitavelmente repercute no tema da Proteção de Dados, na aplicação e eficácia da lei citada e outras legislações similares na América Latina, na atuação cotidiana dos cidadãos, das empresas e dos órgãos nacionais incumbidos de regulamentar, evitar e prevenir violações com dados pessoais. No caso do Brasil, existe a ANPD.

Mesmo o Brasil, um vasto país de proporções continentais, experimenta essa dependência tecnológica e econômica latino-americana, na medida em que depende de tecnologias e serviços de empresas estrangeiras, muitas do centro dessa rede de poder planetário. Dessa forma, nosso país caminha no século XXI submetendo-se à decisão verticalizada sobre dados vinda de países e grandes empresas estrangeiras (diga-se de passagem, muitos de seus vizinhos do próprio continente são ainda orgulhosos da subordinação, o que agrava muito mais o problema, criando tensão e conflito no continente, ao invés de união).

Essa dependência naturalizada como algo positivo ou ainda como um dado inescapável da vida, dificulta não apenas a manifestação das regras nacionais de proteção de dados (caso brasileiro).

Lembre-se que as infraestruturas tecnológicas e as políticas empresariais são muitas vezes determinadas externamente, fomentando uma comunicação desigual entre países, e mesmo no âmbito corporativo, dado que quem faz as regras (e no final domina os compartilhamentos e tratamentos de dados) são organizações externas ao país. Incluindo as que não respeitam nem sequer as diretrizes do Supremo Tribunal Federal (STF), quanto mais, de respeitarem um sujeito empírico aleatório que hipoteticamente cobra o fim de algum uso ou compartilhamento de dados considerado inapropriado, ou que exige algo acerca do tratamento de dados em geral. Que chances esse sujeito tem? Inclusive, de negociar regras diferenciadas para si com as grandes plataformas? Praticamente nenhuma chance, senão as opções que lhes são oferecidas (e se é que são oferecidas, e com transparência, e dentro da legalidade).

Se nem o Supremo Tribunal Federal (STF) consegue ser ouvido e respeitado externamente pelas grandes plataformas e gigantes de tecnologia (e de certa forma também não é tão respeitado internamente, como evidenciado na última década), imagine-se o quadro geral de um sujeito marcado por desigualdade e exclusão no Brasil, buscando fazer valer seus direitos prometidos nacionalmente pela sua Constituição Federal, frente a empresas estrangeiras com domínio técnico e informacional sobre os produtos e serviços usados por eles, (sub)cidadãos consumidores diante dos países centrais.

Por exclusão e desigualdade, bem como subordinação e dependência tecnológica, longe de coisas mirabolantes, temos especificidades, bem típicas da nossa realidade subordinada e dependente, desde as margens da rede desse poder planetário inclusive e especialmente hoje, no âmbito tecnológico.

A sociedade de controle na América Latina está frequentemente marcada por desigualdades profundas. A vigilância e o controle tendem a escapar da transparência e do respeito aos direitos e garantias fundamentais, sobretudo quando se lida com populações mais vulneráveis (tecnologicamente, economicamente, inclusive juridicamente etc.), como comunidades pobres de bairros periféricos. Na América Latina como grande instituição de sequestro também explorada por Anitua (2010) na periferia do poder planetário ilustrado por Zaffaroni (2013), estamos falando em regra de periferias dentro de periferias, e dentro de periferias, e assim novamente, sequencialmente[1].

A criminologia zaffaroniana já recebeu críticas de que atribui no caso pouca importância ao protagonismo nacional de cada país do continente, mas a isso, combate justamente com seu realismo (marginal) jurídico-penal, que explicita não só a criminalização da pobreza, mas o controle e a vigilância de massas, grande monitoramento de estruturação arbitrária, obscura, abusiva, seletiva e discricionária, reforçando exclusões e marginalizações no funcionamento real existente, ampliando e recriando inclusive o Racismo de Estado abordado por Resende (2017, 2018), valendo-se de autores como Michel Foucault.

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) do Brasil é uma legislação que visa regular o tratamento de dados pessoais, estabelecendo direitos dos titulares de dados, responsabilidades e mesmo sanções administrativas (da própria lei). A lei se insere em um contexto global de crescente preocupação com a privacidade e proteção de dados, especialmente em face das práticas de vigilância e controle, seja controle personalizado ou controle em massa, que se intensificaram muito com o avanço das tecnologias digitais.

Mas, como assegurar esses direitos de verdade, como é isso na prática, no interior da sociedade de controle regida por dados, em um país na periferia do poder planetário?[2].

No contexto da sociedade de controle, conforme descrita por Deleuze, se a LGPD representa uma tentativa de estabelecer limites e regulamentações para mitigar os potenciais abusos de poder que podem surgir da vigilância em massa e do uso indiscriminado de dados pessoais, isso deve incluir o obrigatório reconhecimento das dificuldades desse cenário.

Antes da transformação, é preciso acertar na descrição (sem estacionar nela, é claro). Isso, aprendemos também desde a Análise de Discurso Francesa, com autores como Pêcheux (2014), dentre outros. Em diálogo dessa base teórica (uma teoria materialista do discurso) com a crítica criminológica latino-americana.

A existência de direitos dos titulares expressos em legislação nacional (LGPD) confere ancoragem legal diante de potenciais violações, contudo, efetivar tais proteções é uma outra coisa, mais difícil. Os direitos da LGPD atrelados ainda às garantias fundamentais da Constituição Federal (CF) oferecem uma forma constitucional de controle sobre dados pessoais, essencial em uma sociedade onde a vigilância é invasiva e a subordinação interna e externa é intrinsecamente estruturada em cima de violações de direitos, rasgando-se a Garantia Fundamental de Proteção de Dados[3].

Prosseguindo, no Brasil, o tratamento de dados dentro da legalidade e respeito à LGPD requer alguma simetria de infraestrutura tecnológica, recursos humanos capacitados e instituições fortes na defesa dos direitos, do contrário, o controle e a garantia constitucional da Proteção de Dados é rebaixada e reduzida a um papel simbólico-formal, limitando a capacidade de proteção efetiva de dados pessoais, inclusive porque o próprio Estado - e conforme Althusser (1970), Aparelho Ideológico de Estado (AIE) - é um grande violador doméstico de direitos no nosso continente, sendo ainda mais frágil na evitação de violações externas. E dado que funciona ainda como Aparelho Repressivo de Estado (ARE) com violações de direitos a partir de violações com dados. Dito de outro modo, nas discussões

sobre soberania informacional e digital, somos negativamente atravessados tanto de modo doméstico, internamente, quanto também extremamente[4].

Afinal, podemos falar em soberania digital acerca de países da periferia da rede planetária, caso América Latina? Que independência livre de subordinações é essa que alguns acreditam ter? O quão real isso é? Que transparência existe no final? Que horizontalidade, simetria e igualdade temos, inclusive para discutir cláusulas?

É preciso assumir que enfrentamos desafios em afirmar a própria capacidade nacional, informacional e digital, de evitar e fiscalizar violações com dados, seja porque naturalizadas internamente no âmbito macro de Estado, seja pelo desigual posicionamento perante uma estrutura global dominada por gigantes tecnológicos estrangeiros.

Isso inclui dificuldades em regular o uso de dados pessoais por empresas multinacionais, bem como todo o tratamento de dados em geral (para quais fins, que usos, como, questões de coleta, armazenamento, acessos indevidos, cruzamentos, compartilhamentos, comercialização e vazamentos).

Muito embora a ANPD tenha aprovado regulamento sobre transferências internacionais de dados de modo a oficialmente buscar viabilizar a inserção de empresas nacionais nos fluxos globais de dados pessoais, o quão longe nessa leitura aprofundada da nossa posição periférica de fato considerou a Autoridade? Com quais juristas especialistas?

Enquanto a LGPD e legislações similares sobre dados pessoais representam um avanço importante na proteção de dados e nas garantias dos sujeitos, a implementação e eficácia na América Latina é marcada por desafios específicos de subordinações devido à posição periférica frente à rede de poder planetário e seu centro tecnológico.

Para ser justo, a criminologia zaffaroniana também já foi criticada por mesclar diferentes países em uma unidade prejudicada, contudo, o fato é que demonstrou denominadores comuns que justificam tal movimento metodológico, teórico e analítico, muito embora existam especificidades em cada país, obviamente. Mas o território explorado de sequestros e massacres segue nesse desenho do denominador comum, assim como a subordinação explicada até aqui.

Nesse sentido, os desafios enfrentados abarcam desigualdades estruturais, dependência tecnológica e sérias limitações institucionais, que devem ser consideradas para que a garantia fundamental da proteção de dados seja efetivamente garantida dentro de uma dimensão de dignidade levada a sério, posto que no final, dados pessoais versam sobre pessoas, não apenas informações.

Logo, não se pode apagar a discussão sobre a necessária evitação de ações e omissões que comprometam a dignidade de todos. Regras sobre dados envolvem dignidade (não só privacidade). E cada vez mais.

A dependência tecnológica e econômica de países periféricos em relação ao poder planetário, mais que refletir as desigualdades estruturais entre o centro e a periferia, restringem radicalmente o controle e proteção dos dados dos cidadãos.

Afinal, se países possuem dificuldades, a tarefa pode tornar-se hercúlea para um cidadão comum, distante dos núcleos de poder exercidos e das práticas técnicas sobre dados, que manifestam, em sua reprodução, as marcas dessa subordinação e dependência econômica e tecnológica internacionais, que ensejam em sua reprodução a ampliação de características principais dessa dependência.

Como a falta de infraestrutura local, subserviência política de países periféricos e suas lideranças frente ao centro, necessidade de importação de tecnologias de países estrangeiros, tudo redimensionando uma relação de dependência direta desses países para atender a necessidades básicas de tecnologia. Exemplo disso a nível macro, é o uso no sistema de justiça criminal brasileiro, de tecnologias e empresas de Israel com potenciais violações de direitos humanos, sem que isso desperte maiores alertas.

As multinacionais que operam em países periféricos raramente nutrem respeito pelas regras domésticas sobre dados, mesmo porque, observam que o próprio Estado viola a lei. Como as tecnologias mais avançadas são mantidas nos centros de desenvolvimento nas potências centrais ou suas aliadas, resta à periferia importar seus restos e versões desatualizadas, assim como um aeroporto de cidade pequena passa a contar com aeronaves velhas abandonadas pelas capitais, por já serem obsoletas.

A dependência impede o desenvolvimento autônomo, pois quanto mais se mergulha na subordinação, mais os gastos são vinculados e direcionados para fora, resultando em baixo investimento na pesquisa nacional. Seria como um time de futebol escolher apenas comprar estrelas no lugar de formar bons jogadores, mas com um detalhe: o time em questão não tem recursos para comprar estrelas, e recebe na compra candidatos que já renderam e esgotaram o limite de suas capacidades, estando em declínio e fim de carreira. Tudo limitando a capacidade de inovação ética com controle constitucional interno, voltando ao caso real da subordinação tecnológica abrangente do tratamento de dados fora das fronteiras nacionais.

É preciso considerar variáveis como a nossa dependência de plataformas e serviços digitais em contexto de monopólio de empresas estrangeiras: plataformas digitais como Google, Meta, Amazon e Microsoft dominam mercados globais, incluindo os países periféricos consumidores. Esses monopólios criam uma situação em que a infraestrutura digital nacional é controlada por empresas estrangeiras, que também tratam grandes volumes de dados pessoais desses países de maneira obscura e sem garantias mínimas de proteção desses dados contra acessos indevidos, coletas excessivas, usos inapropriados e tratamentos abusivos.

Então, existe ainda a resistência desse monopólio tecnológico à regulação dos países periféricos. Resistência ao controle constitucional. Lembremos que a governança corporativa e as normas de operação dessas plataformas, em seus funcionamentos reais, são determinadas pelas práticas reais dos países centrais, responsáveis pelo redimensionamento do neocolonialismo digital, que não opera de modo a refletir as necessidades e realidades dos países periféricos e seus sujeitos, muito menos em caráter de igualdade.

Já sobre a desigualdade nas cadeias de produção, destaca-se que o deslocamento de recursos, esforços e pessoas à periferia (diversas empresas centrais deslocam a produção para países periféricos para aproveitar os custos mais baixos de mão de obra e regulamentações mais frouxas ou sem cunprimento) não são suficientemente funcionais ao desenvolvimento, pois lida-se com restos do centro, um time B mal remunerados, que não contribui para o desenvolvimento de capacidades tecnológicas avançadas nos países periféricos, mesmo porque, caso o faça, as produções são costuradas e realocadas ao centro, com controle sobre a propriedade intelectual e contratos extremamente desbalanceados.

Como as patentes e a propriedade intelectual das inovações tecnológicas permanecem majoritariamente sob rigoroso controle das empresas estabelecidas em países centrais, ainda que espalhadas nos países consumidores como tentáculos-sedes, o contexto perpetua uma divisão ou clivagem onde os países periféricos atuam principalmente como consumidores (inclusive de restos), locais de produção marcados por uma menor remuneração e valor final, bem como, locais de testagem e coleta de dados, de modo a maximizar o lucro, tudo contribuindo para a manutenção da desigualdade e dependência político-econômica com endividamento micro e macro, de sujeitos e Estados da periferia, diante dos grandes representantes estrangeiros empresariais no encaixe Estado-mercado, favorecendo os interesses dos empresários estrangeiros em detrimento das necessidades e pessoas locais.

A estrutura desigual na balança comercial também perpetua a dependência econômica e limita o desenvolvimento industrial e tecnológico autônomo: enquanto compramos IPhones a preço de ouro, carros populares novos com preços de quase uma centena de salários mínimos, nosso continente é varrido e saqueado em seus recursos limitados, prejudicando o sonho de uma vida satisfatória no Brasil, periferia do poder.

E ainda nem adentramos nas mazelas da vulnerabilidade cibernética e de segurança, sobre a qual, não faltam pesquisas apontando o Brasil na mira de ataques, com pouca resposta inteligente do Estado, muito embora seja um consumidor ativo de restos tecnológicos e detentor orgulhoso de supostos serviços de inteligência.

A dependência de infraestrutura digital estrangeira também corrobora para vulnerabilidades e obscuridades, já que não temos o controle necessário nem sequer sobre as nossas redes digitais, suscetíveis não apenas a ataques, mas principalmente monitoramento e espionagem ilegais.

Ademais, políticas de segurança digital em países periféricos são influenciadas por padrões e pressões internacionais para importações de discursos e adesões irreais, que podem não refletir as condições e prioridades locais. Algo como importar a dogmática e o discurso jurídico-penal alemão atrelado à preservação de certas funções sistêmicas, e acreditar que isso faz sentido no Brasil (talvez um mal exemplo, a julgar que o Brasil faz isso, e seus juristas punitivistas acham bonito, até refinado e elegante).

Enfim, para encerrar: a dependência tecnológica não apenas perpetua desigualdades planetárias, como reitera as linhas da periferia (mesmo na sociedade de controle, em tese, marcada pela dissolução de fronteiras e livre fluxo, embora isso não gere a liberdade de movimento prometida acerca dos despossuídos e da miséria superada, apenas seus dados é que viajam).

A dependência tecnológica ainda funciona pressionando e limitando a capacidade dos países periféricos de desenvolver estratégias autônomas para evitar violações de dados, justamente em um mundo regido por dados.

Para romper com esse ciclo de dependência, é essencial que os países periféricos defendam os seus interesses locais, buscando aos poucos redimensionar e transformar suas condições de produção, inscrevendo diferenças, o que ocorre inclusive de modo micro, pela mudança das práticas com dados, questionando os efeitos de obviedade das ideologias importadas.

Exigir o fim das violações com dados é um bom ponto de partida.

 

Notas e referências:

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ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodução. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.

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DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução Luiz Orlandi, Roberto Machado. São Paulo: Paz e Terra, 2018.

FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El enemigo en el Derecho Penal. Buenos Aires: Ediar, 2009.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Cuestión Criminal. Buenos Aires: Editorial Planeta, 2011.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Palabra de los Muertos: Conferencias de Criminología Cautelar. Prólogo de Juan Gelman. Buenos Aires: Ediar, 2012.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas: Deslegitimación y Dogmática Jurídico-Penal. Buenos Aires: Ediar, 2013.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O nascimento da criminologia crítica: spee e a cautio criminalis. Coordenadores Augusto Jobim do Amaral, Clarice Beatriz da Costa Sohngen, Ricardo Jacobsen Gloeckner. Tradução e revisão técnica Augusto Jobim do Amaral e Eduardo Baldissera Carvalho Salles. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.

[1] E se pensarmos por exemplo em um município brasileiro aleatório de nome desconhecido, isso fica mais evidente. Cada estado brasileiro tem pouco mais de meia dúzia de cidades conhecidas pelos da capital (com exceção, talvez, de alguns poucos estados de maior protagonismo empresarial, como São Paulo e Paraná a título de exemplo). Mas e o restante das cidades, mesmo nesses estados? Os cidadãos da capital até dão risada do nome das cidades, em tom narcisista e prepotente. Jamais iriam para lá. Riem das periferias regionais e locais, sem saber que são também periferia do mundo. Referem-se aos municípios esquecidos como interior qualquer digno de piadas. E assim segue o funcionamento imaginário. Imaginemos ainda um bairro periférico deste local ridicularizado. É uma sequência de periferias, uma dentro da outra. E imersas no quadro maior de um continente periférico subordinado ao centro. Um desastre em termos de violações e mecanismos de enfrentamento de abusos com dados. Um desastre em termos de conscientização da importância da união contra violações com dados, em qualquer lugar. Felizmente, um aspecto positivo da LGPD no Brasil, em seus 6 anos, foi acelerar essa discussão, como se passadas 6 décadas de discussão. Esse é o peso da LGPD no direito. 6 anos correspondentes a muito mais do que isso, se compararmos com outras áreas e campos tradicionais do direito.

[2] Se a LGPD busca limitar o poder real de tratamentos de dados abusivos e sem restrições, inscrevendo algum controle a sujeitos, empresas e mesmo governos, com regras que deveriam repercutir (por exemplo nas finalidades legal, na segurança na transferência de dados etc.), devemos fazer essas, e diversas outras perguntas.

[3] Se antes a segurança dos dados pessoais era rasgada em nome da segurança cidadã ou nacional internamente, agora ainda é rasgada externamente pelos detentores do domínio tecnológico, e seus consumidores de produtos e serviços na periferia do poder, na forma de assinaturas e outras dependências crescentes (assinamos cada vez mais serviços na atualidade). Detalhe importante: quando mostramos a dimensão dos desafios, não queremos dizer que a LGPD é menos importante do que é divulgado, senão que o contrário. Estamos explicitando sua urgência. Bem como, reconhecendo que já ocorreram avanços substanciais (especialmente na Saúde) no país.

[4] A reprodução das violências e violações institucionais tradicionais exploradas por Althusser (1970, 1999) é repaginada na sociedade de controle, de modo que conceitos modernos, e a própria noção de tempo, recebem inscrições de diferenças que amarram distintas temporalidades, em um batimento de descrição cada vez mais complexa acerca da diferença e repetição tensionadas com Deleuze (2018). Adicionalmente a quando Foucault (2008) apontou a polícia como golpe permanente, hoje temos as grandes corporações como as verdadeiras donas dos líderes de territórios subordinados, e logo, uma espécie de polícia empresarial, com poder de polícia, de governo, e de jurista. Assim são as big techs. Capazes de questionar e mesmo ignorar cortes como o STF. Vale insistir na pergunta, o que isso diz sobre a autonomia brasileira? Talvez, justamente o que parece. Que são maiores e mais poderosas, bem como, são elas que ditam as cartas. O resto, consome e obedece.

 

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