Nos últimos tempos todos os avanços ocasionados pelas diversas formas de tecnologias criadas, causaram um grande impacto social na vida das crianças e adolescentes. As crianças e os adolescentes estão ativamente conectados. Estima-se que globalmente uma em cada três crianças utilizam a internet.[1] Importante destacar que os impactos tecnológicos se tornam cada mais um desafio ao Direito, o que exige um novo tipo de compreensão deste fenômeno.
Na atualidade as crianças não só gostam de utilizar a internet para a prática de jogos, mas também auto expressar e utilizar tais ferramentas para trabalhar e comunicar. Estas adesões têm seus desdobramentos e são dimensionadas de diversas formas, frutos da complexidade social e do rápido avanço das tecnologias, exigindo melhor compreensão dos fenômenos, também por parte do Direito.
A quantidade crescente de dados pessoais de crianças e adolescentes expostos na internet, é o motivo da presente reflexão, e o núcleo central das preocupações sobre os riscos de privacidade on-line, como exploração comercial e uso indevido de dados pessoais, perfil, roubo de identidade, perda de reputação e discriminação em relação aos menores de idade.
Absorver esses novos fenômenos e conflitos que advêm, inclusive, da lei geral de proteção de dados no Brasil é tarefa árdua. A aplicação a qualquer serviço que envolva o processamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, responsabilidades e o consentimento dos pais para os operadores de serviços ainda é pouco discutido e merece ampliação das discussões, ou seja, a imprescindibilidade da aplicação do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, que tem todos os seus direitos resguardados constitucionalmente também é aplicável aos serviços da sociedade da informação.
Há uma revolução tecnológica no Direito, centrada em torno da tecnologia da informação, a qual preocupa porque está mudando a base material da sociedade e da própria ciência jurídica em ritmo acelerado. Nesse sentido, uma sociedade do conhecimento e da informação[2], surgida na metade da década de setenta[3], abriu as portas a um tipo de sociedade caracterizada por um modo de ser comunicacional [4], que se projeta em todas as atividades e áreas. Por tudo isso, a informação ocupa um lugar relevante e favorece o desenvolvimento da tecnologia da informação e comunicação também relacionada às crianças e adolescentes e própria da ciência jurídica[5]. Será que se vive em uma época de mudança, ou uma mudança de época? Como caracterizar as profundas mudanças que acompanham a introdução acelerada na sociedade da inteligência artificial, por exemplo[6], e as novas tecnologias de informação e a comunicação no Direito das crianças e adolescentes (TIC)? Trata-se de uma nova etapa da sociedade industrial, ou se está entrando em uma nova era? Crianças e adolescentes estão em uma perigosa travessia na era da tecnologia, em uma era tecnotrônica, sociedade pós-industrial, era da sociedade da informação e era da sociedade do conhecimento. Por esta razão, (FARIAS; ROSENVALD, 2014. p.36) entendem que:
A arquitetura da sociedade moderna impõe um modelo familiar descentralizado, democrático, igualitário e despatrimonializado. O escopo precípuo da família passa a ser a solidariedade social e demais condições necessárias ao aperfeiçoamento e progresso humano, regido o núcleo familiar pelo afeto, como mola propulsora.
Existe uma infinidade de serviços online e a disposição das pessoas e uma preocupação sobre quais os serviços on-line são oferecidos diretamente às crianças e de que modo o consentimento pode permanecer à revelia dos pais. De acordo com a lei nº 13.709/2018, ou seja, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) a ideia de consentimento é a manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada.[7]
No entanto, crianças estão menos conscientes dos riscos e consequências do compartilhamento de dados e de seus direitos e qualquer informação endereçada de maneira especifica a uma criança ou adolescente deve ser adaptada para ser facilmente acessível e com transparência de informações. Para o estudioso Tim Wu (BURCH, 2018): um dos maiores problemas é que o Facebook deu a impressão que era possível controlar a própria privacidade, definindo suas configurações de certas maneiras – no entanto, essas configurações não modificaram nada. (Tradução nossa).
Em relação à privacidade e à proteção de dados de crianças e adolescentes, a questão é ainda mais polêmica. Os problemas advindos do uso abusivo dos dados pessoais, relacionados à assimetria informacional, são potencializados quando o sujeito está em uma situação de vulnerabilidade (DONEDA, ROSSINI, 2015, p. 38 apud NEGRI; FERNANDES e KORKMAZ, 2019). O grande acúmulo de informações sobre o indivíduo (big data) é capaz de gerar processos como o profiling, isto é, a possibilidade de gerar perfis e, com isso, predições de comportamento. Além da predição, o conhecimento a fundo de cada indivíduo, de suas preferências e de seus dados sensíveis possibilita a manipulação de comportamentos, o que é bastante perigoso à democracia, e a criação de estereótipos, o que pode engessar o desenvolvimento social (RODOTÁ, 2008, p. 37 apud NEGRI; FERNANDES e KORKMAZ, 2019). Por isso (NEGRI; FERNANDES e KORKMAZ, 2019, p. 287) consideram importante discutir a ideia de desenvolvimento de crianças, adolescentes e o estudo aprofundado dos reflexos que advém da bolha dos filtros presente na rede mundial de computadores; ainda, da personalização exagerada do conteúdo por meio de algoritmos com resultados nunca antes inimaginados.[8]
Os serviços on-line, atualmente e na sua grande maioria, exige o consentimento dos pais ou responsáveis para processar os dados pessoais de uma criança com base no consentimento até certa idade, [9] mas ainda existe uma grande dificuldade, mesmo com toda a tecnologia à disposição, sobre a verificação deste consentimento e se ele está realmente em consonância com a lei. De acordo com a lei nº 13.709/2018, o tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes deverá ser realizado em seu melhor interesse. Para corroborar (FACHIN, 1996, P. 98) define esse princípio como um “critério significativo na decisão e na aplicação da lei. Isso revela um modelo que, a partir do reconhecimento da diversidade, tutela os filhos como seres prioritários nas relações paterno-filiais e não mais apenas a instituição familiar em si mesma”.
O requisito de consentimento dos pais, ou seja, o artigo 14.º da LGPD tem um âmbito material específico e é aplicável aos “serviços da sociedade da informação” oferecidos diretamente a uma criança ou adolescente no Brasil. Em comparação a Regulamentação Geral de Proteção de Dados na Europa, o significado no âmbito específico de aplicação do artigo 8.º, o RGPD[10] utiliza a definição de um serviço da sociedade da informação contido na Diretiva (UE) 2015/1535, assim, esses serviços são tidos como "qualquer serviço” normalmente prestado para remuneração, à distância, por meios eletrônicos e a pedido individual de um destinatário dos serviços. Segundo (MACENAITE e KOSTA, 2017):
[...] o artigo 8 do GDPR não tem precedentes na Europa, sua implementação prática levanta muitas questões, como quais serviços o requisito se aplicará, como os serviços direcionados a crianças serão delineados e como o consentimento e a idade devem ser verificados. Estas questões deverão ser abordadas pelos legisladores nacionais.
A dependência do consentimento dos pais para processar os dados pessoais das crianças pode apresentar deficiências. Neste sentido, é possível que o consentimento não tenha validade e possa gerar implicações como informações ou dados incorretos tornando todo e qualquer processamento de dados nulos. [11]
Importante esclarecer que o requisito de consentimento parental de acordo com a lei nº 13.709/2018, sobre o tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes deverá ser realizado em seu melhor interesse, muito embora a intenção “limitada” do legislador brasileiro de criar um regime de proteção específico para serviços de processamento dados pessoais das crianças e adolescentes.
Os serviços aos quais a proteção se aplica é uma questão complexa. A lei nº 13.709/2018, quando aborda acerca do tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes reflete uma nova realidade frente as novas tecnologias da informação e comunicação e por esta razão até que ponto o requisito de consentimento dos pais é verificável e seguro?
O problema que envolve os prestadores de serviços gerais é sobre a não obrigatoriedade sobre a investigação da idade de seus usuários ativos, mas em adquirir conhecimento passivo de crianças que usam o serviço criando obrigações jurídicas. Esse conhecimento passivo poderia ser adquirido, por exemplo, se o operador aprender que a pessoa é uma criança menor de 12 anos, ou mesmo como responder a um e-mail, ver a idade ou a nota em uma opção de feedback.
Então, seria possível considerar que os serviços como o Facebook, WhatsApp ou Instagram, estariam enquadrados no âmbito do artigo 14 da lei nº 13.709/2018? Considerando o uso geral do público infanto-juvenil é difícil imaginar que a LGPD não pudesse estender a proteção às crianças e adolescentes que utilizam tais serviços.
O tratamento de dados pessoais de crianças e de adolescentes deverá ser realizado em seu melhor interesse, nos termos deste artigo e da legislação pertinente. A este respeito, surge uma questão: Poderia o círculo de titulares de responsabilidade parental incluir outros indivíduos que não os pais e representantes legais? Qual o peso e em que condições o mecanismo de autorização de consentimento será concedido pelo legislador pátrio no contexto da lei nº 13.709/2018?
A implementação do artigo 14 da LGPD constitui uma oportunidade para que o Brasil possa explorar os diferentes desafios e oportunidades na adoção de métodos inovadores de verificação de idade de crianças e adolescentes. Mas, a internet está criando novos e atormentadores malefícios para a privacidade, uma vez que deu às pessoas uma possibilidade sem precedentes de disponibilizar e disseminar informações. É preciso repensar a privacidade. A importância crescente dos direitos das crianças na elaboração de políticas de proteção em relação aos riscos para as crianças e as práticas de coleta de dados de crianças excessivas e complexas em linha impulsionaram o reconhecimento no Brasil de que os dados pessoais das crianças e “adolescentes” merecem atenção redobrada.
Devido à incapacidade de utilizar justificações e provas fundamentadas durante o processo e a falta contínua de diretrizes, o requisito de consentimento da LGPD já enfrenta desafios práticos relacionados à interpretação e implementação de novas tecnologias, bem como a exigência aplicável aos serviços da sociedade da informação oferecidos diretamente a uma criança ou adolescente.
Numa leitura mais aprofundada, a LGPD exige explicitamente a verificação da idade de crianças ou adolescentes, portanto, necessária a especificação sobre a relação entre consentimento e verificação de idade. E, as soluções para a verificação de idade proporcionadas e que se dizem “confiáveis”, ainda estão longe de se tornarem mecanismos efetivos de proteção.
Notas e Referências
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BUCHANAN AE, BROCK DW. Deciding for others: the ethics of surrogate decision-making. Nova York: Cambridge University Press; 1990. BURCH, Sean. Facebook Is, Rotten, ‟Privacy Is Its, Kryptonite” Says Ex-FTC Advisor: Social network‘s business model is at odds with protecting its users, according to one expert. 2018. Disponível em: <https://www.thewrap.com/facebook-privacy-kryptonite-ftc/>. Acesso em: 25 nov. 2019.
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FACHIN apud FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Famílias 6ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2014.
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RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. 1. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
[1] LIVINGSTONE, Sonia. CARR, John and BYRNE, Jasmina. “One in Three: Internet Governance and Children’s Rights” (2015) Global Commission on Internet Governance Paper Series No. 22.
[2] Vid. CASTELLS, M. La era de la información: Economía, sociedad y cultura. México: Siglo XXI, 2000. v. 1: La sociedad red.
[3] Quando na década de 1970, se constituiu um novo paradigma tecnológico organizado em torno da tecnologia da informação, sobretudo nos Estados Unidos, foi um segmento específico da sociedade, em interação com a economia global e geopolítica mundial, que se materializou uma nova forma de produzir, comunicar, gerir e viver. CASTELLS, Manuel. La era de la información: economía, sociedad y cultura. Madrid: Alianza Editorial, 1999. v. 1: La sociedad red, p. 31.
[4] […]. As nossas sociedades estão cada vez mais estruturadas em torno de uma oposição bipolar entre a rede e eu. CASTELLS, Manuel. La era de la información: economía, sociedad y cultura. Madrid: Alianza Editorial, 1999. v. 1: La sociedad red, p. 29.
[5] BELLOSO MARTÍN, Nuria. Algumas reflexões sobre a informação jurídica de decisão. In: BAEZ, Narciso Leandro Xavier ... [et al.]. O impacto das novas tecnologias nos direitos fundamentais. Joaçaba: Ed. Unoesc, 2015. p. 119.
[6] “Inteligencia Artificial es el conjunto de actividades informáticas que si fueran realizadas por el hombre se considerarían producto de su inteligencia. Los Sistemas Expertos, son derivaciones de la Inteligencia Artificial, se basan en una cualidad típica del ser humano, la experiencia, por lo que los Sistemas Expertos pueden ser definidos como aquellos programas informáticos que reproducen las actuaciones que ha previsto aquel que los diseña. Esto, aplicado el derecho, significa la creación de programas jurídicos que ante una situación jurídica va a dar una respuesta y una solución al problema de acuerdo a la ley”. LANCHO PEDRERA, F. Sistemas expertos en el derecho. Anuario de la Facultad de Derecho, Cáceres, n. 21, p. 629-636, 2003. Disponível em <http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=854374>. Acesso em 16 out. 2015.
[7] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm> Acesso em 30 set. 2019.
[8] NEGRI, Sergio Marcos Carvalho de Ávila, Fernandes, Elora Raad, e KORKMAZ. Maria Regina Detoni Cavalcanti Rigolon. A proteção integral de crianças e adolescentes: desafios jurídicos de uma sociedade hiperconectada. Ciência Tecnologia e Inovação: Políticas e Leis, 2018. P. 287.
[9] Isso se aplica a sites de redes sociais e plataformas para baixar músicas e comprar jogos online.
[10] Disponível em <https://ico.org.uk/for-organisations/guide-to-data-protection/guide-to-the-general-data-protection-regulation-gdpr/children-and-the-gdpr/what-are-the-rules-about-an-iss-and-consent/> Acesso em 21 nov. 2019.
[11] Christopher Kuner, European Data Protection Law: Corporate Compliance and Regulation. OXFORD. 2ª Ed. 2007. P. 211
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