LGPD: Apertem os cintos, o roteirista enlouqueceu!

29/08/2020

Pense na sua obra favorita. Qualquer uma. O único requisito é que ela tenha muitos volumes e que eles tenham sido lançados de maneira espaçada. Tente lembrar da angústia que cada término representava, e ao mesmo tempo da felicidade ao observar que um novo volume havia sido lançado. Você não sabe o que será do personagem principal: será que ele vai vencer aquela batalha? Irá retribuir os olhares e sorrisos recebidos daquela outra personagem? Como irão reagir os pais do personagem, diante daquele evento proibido? E o vilão? Qual será a próxima tentativa dele de atrapalhar os planos do herói?

Se você compreende essa mistura de sentimentos, continue a leitura. Do contrário, pare por aqui: não há nada de muito interessante na sequência. Certeza que parou de ler? Bom, iremos contar uma história. Essa história não tem heróis ou vilões, ao menos não com facetas assim tão óbvias. No mundo real, você certamente sabe, ninguém é 100% herói e tampouco 100% vilão.

Essa é a história de uma sociedade ainda jovem. De uma democracia muito frágil e vilipendiada. Nosso personagem principal, PD, tem um sonho: ser aquilo que ele não pode ser. Como assim? Esquecemos de comentar. Nessa sociedade, as pessoas nascem e são organizadas em castas pré-estabelecidas, de acordo com as características individuais de cada um. Cada casta possui suas próprias funções a afazeres. PD precisava mudar tudo. Acabar com os sistemas de castas e impedir que as características individuais moldassem o futuro daquela sociedade.

PD lutava pela liberdade. Sua e do povo. Para acabar com o controle estatal e permitir que todos pudessem ter as mesmas escolhas e oportunidades. Não iremos dar spoilers, mas apresentamos um pouco do enredo da obra para que você possa desfrutá-lo da comodidade da sua casa. O primeiro livro conta a história dessa batalha. De como PD angariou mais pessoas para sua causa e conseguiu confrontar o Poder social que ditava as regras de seu país. Ele venceu a batalha e conseguiu fazer com que o Estado reconhecesse que as características individuais das pessoas não poderiam ser determinantes para a atividade que elas desejassem realizar naquela sociedade. Seus problemas, contudo, estavam longe de acabar.

O segundo livro da série apresenta um novo problema. Seria constituído um órgão que passaria a analisar e controlar os atos do Estado. Esse órgão, LG, teria como função principal observar se o Estado obedeceria a aquilo que PD lutou tanto para conseguir: a liberdade individual. Todavia, em um movimento rápido, o Estado conseguiu que o órgão estivesse sob o seu controle, para desespero de PD, que repetidamente dizia: “é como colocar a raposa para tomar conta do galinheiro”. Teria PD perdido?

O terceiro volume mostra outros personagens da obra. Um deles, PEC, teve uma ideia: vamos alterar isso. Precisamos de uma nova lei. Nascia assim a Proposta de Lei nº 17, idealizada por PEC. O legislativo, entretanto, a deixou de escanteio. Paralelamente, nos defrontamos com a história de MP, que havia sido contratado pelo Estado para tentar impedir a criação de LG e a vitória de PD. E no clímax da obra, MP vence finalmente PD, que precisou ser hospitalizado.

O último volume mostra a tradicional reviravolta da história. Mesmo machucado, PD luta até a morte com MP e, quando estava prestes a precisar bater em retirada para tentar um novo movimento em alguns meses, consegue desferir o golpe fatal. Derrotada, MP e Estado nada mais podem fazer a não ser observar a distância a vitória de PD. Temos um novo mundo pela frente. Novas perspectivas. Novos direitos. Novas possibilidades. Não somos mais reféns de nossas características individuais.

O interessante é que a obra acaba sem apresentar respostas para algumas situações. Por exemplo, qual foi o resultado da Proposta de Lei nº 17, proposta por PEC? Será que teremos um novo volume, com ainda mais momentos de alegria, tristeza, nervosismo e euforia? O jeito é aguardar a decisão do Autor. Ele mesmo parece estar bastante na dúvida sobre o que fazer. Aliás, ele confessou que o andamento da história, em muitas passagens, o confundiu, de modo que ele não sabe, exatamente, quem ganhou e quem perdeu.

Caro leitor, se você entendeu o desenrolar dos fatos dessa história, parabéns: você compreendeu um pouco dos recentes debates sobre a LGPD. Se você não entendeu nada, fique tranquilo: você também compreendeu os debates sobre a LGPD.

Tentaremos – e será uma missão hercúlea – esclarecer o que houve essa semana. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018) teve sua vigência divida em 3 (três) partes.

Os artigos referentes à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) estão em vigor desde dezembro/2018. Os artigos referentes às sanções administrativas de competência da ANPD, entrarão em vigor em agosto/2021.

E todo o resto? Agora começa o problema. O Presidente da República havia sancionado a Medida Provisória nº 959 que, dentre outras coisas, postergava a vigência da LGPD para 03 de maio de 2021. Isso aconteceu em abril/2020.

O cenário passou a ser o seguinte: a MP terá vigência máxima de 120 dias, tempo mais do que suficiente para que o Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado) possa analisá-la e decidir pela sua conversão em lei, ou pela perda de sua eficácia. Tudo isso, em tese, deveria ser feito antes de 16 de agosto, data em que a LGPD entraria em vigor.

Nos primeiros 118 dias de vigência da MP, nada foi feito pelo Congresso. A situação era crítica. Ela deveria ser analisada e aprovada pela Câmara no dia 25.08. E deveria ser analisada e aprovada pelo Congresso no dia 26.08. Se alguma coisa desse errado, a Medida Provisória perderia sua validade e a LGPD entraria em vigor imediatamente, com efeitos retroativos para 16 de agosto de 2020. Quem foi o autor desse livro? Merece um Oscar (sim, sabemos que Oscar e livro não combinam).

Na tentativa de acalmar a todos, as notícias vindas do Congresso Nacional indicavam que um acordo havia sido feito. A MP seria aprovada nas duas casas, em troca da imediata estruturação da ANPD e da votação da PEC17 (que consagra a proteção de dados como direito fundamental e estabelece a competência exclusiva da União para legislar sobre proteção de dados).

Assim foi feito. No dia 25.08, a Câmara votou e aprovou a conversão da MP em Lei. Bastava o Senado ratificar e pronto: a LGPD entraria em vigor no dia 03 de maio de 2021.

No último dia de vigência da MP, 26.08, o Senado resolve ignorar o suposto acordo e rejeitou o artigo da MP que previa a ampliação da vigência da Lei para maio de 2021. Agora o nosso roteirista merece 2 Oscar. E a gente merece entender alguma coisa, porque tá difícil o negócio.

Com isso, a situação é a seguinte: por força do artigo 62 da Constituição Federal, e considerando que houve a aprovação da MP pelo Congresso (com a rejeição apenas do artigo que ampliava a vigência da LGPD, a MP permanece válida até o veto/sanção presidencial.

A partir do veto/sanção presidencial, que deverá ser apreciado até o dia 17.09.2020, a MP perde a eficácia, fazendo com que a LGPD entre imediatamente em vigor, com efeitos retroativos para 16 de agosto de 2020.

Portanto, se alguém te perguntar se a LGPD está em vigor, o que você deve responder? “Sei não! Pergunta no posto Ipiranga”.

Retomando a questão da vigência, ela foi dividida em 3 partes: (i) artigos referentes à ANPD estão em vigor desde dezembro/2018; (ii) artigos referentes às sanções administrativas de competência da ANPD estarão em vigor a partir de agosto de Deus, ops, agosto de 2021, e (iii) os demais artigos da LGPD entrarão em vigor quando o Presidente vetar/sancionar o projeto de conversão de lei da MP, que deverá ocorrer até a metade de setembro; todavia, os efeitos serão retroativos para 16.08.2020.

Em síntese: a maior parte da LGPD ainda não está em vigor, mas já está em vigor, considerando os efeitos retroativos.

Não satisfeito com esse cenário, nosso diretor foi além. Na tentativa de cravar seu nome de vez na história, ele deu um novo susto em todos. Na madrugada do dia 26.08 para 27.08, foi publicado o tão sonhado/temido Decreto que cria e estrutura a ANPD, figura de suma importância quando se fala em proteção de dados do país.

Muitos são os pontos deixados em aberto pelo roteirista. A ANPD tem estrutura, mas ainda não possui personalidade definida, não se sabe ao certo quem serão todos os personagens a construir a história da Autoridade que direcionará os caminhos da proteção de dados pessoais no país. Espera-se que a ANPD venha a desenvolver um papel muito importante de regulamentação e unificação de entendimentos sobre a temática, no entanto, ainda não há clareza em que linha será este entendimento, sem que os personagens sejam conhecidos.

A unificação e uniformização de entendimentos fora motivo de preocupação da PEC17, a qual traz a competência privativa da União em legislar sobre a temática de proteção de dados pessoais, mas será que esta uniformização não vai de encontro com o artigo 52, § 2º, da LGPD, o qual esclarece que as sanções previstas na lei não substituem sanções aplicadas pelos órgãos de defesa do consumidor? Como uniformizar entendimentos quando temos 798[1] unidades de Procons espalhadas pelo Brasil?

A ANPD conseguirá criar um diálogo consistente com estas 798 unidades e outras agências setoriais? Será que a pulverização dos órgãos de defesa do consumidor contribuirá para este intuito? Ou será que “a união faz a força”?

Todos estes pontos são perguntas não respondidas a uma categoria especial de expectadores, os agentes de tratamento, que antes mesmo da lei ter a sua vigência definida, já passavam por investigações ou mesmo corriam o risco de serem penalizados pelo tratamento de dados que desenvolvem, considerando legislações setoriais que tangenciam o tema da proteção de dados.

Terá sido este o último capítulo? Ou o produtor do filme deseja mexer ainda mais com as nossas emoções? Seja o vier, não pode ser mais confuso do que esse mês de agosto. Ou pode?

Com tantas perguntas, os espectadores torcem ansiosamente por um novo episódio. Mais do que isso, torcem para que este episódio seja capaz de interligar todos os pontos da trama de modo coerente, porque até o melhor dos enredos, precisa de um ponto final.

 

Notas e Referências

[1] https://www.justica.gov.br/seus-direitos/consumidor/sindec/anexos/boletim-sindec-2017.pdf, acessado em 28.08.2020.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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