Levando o Direito Penal a sério: Reflexões a respeito da (im)possibilidade da execução da pena em segunda instância à luz da fundamentação e discricionariedades judiciais no âmbito do processo constitucional brasileiro

22/11/2019

O presente trabalho, longe de esgotar o tema, tem por escopo, analisar o fenômeno da discricionariedade judicial e a autonomia do direito, a motivação como direito fundamental, os conceitos processuais de sentença e decisão para fins de processo constitucional e o julgamento das ADCs 43, 44 e 54 pelo STF, elementos esses que possibilitarão responder se a Corte Constitucional Brasileira, ao impossibilitar a execução da pena a partir do encerramento da jurisdição da segunda instância, decidiu com fundamentos juridicamente idôneos.

 

1. Discricionariedade judicial e a autonomia do direito

A respeito do tema, uma primeira questão importante sobre a discricionariedade judicial e a autonomia do direito diz respeito ao sentido do primeiro termo, ou seja, discricionariedade judicial deve ser compreendida como a formação de um juízo na esfera jurídica com base em argumentos, premissas ou, até mesmo, valores não jurídicos.

Seria isso possível? Além disso, seria esse o melhor caminho?

Em que pese a possibilidade, em tese, de formação de um juízo na esfera jurídica com base em argumentos não jurídicos, oportuno destacar que a forma inerente ao julgamento judicial deve ter por lastro parâmetros do ordenamento jurídico, ou seja, uma ideia de previsibilidade no caminhar do intérprete.

Nesse sentido, a autonomia do direito, para que seja alcançada, deve estar relacionada à argumentação articulada com base na racionalidade jurídica. É ela (a racionalidade jurídica) o instrumental que garante efetivação da segurança jurídica, instituto importante na atual democracia brasileira.

Sobre o tema, Georges Abboud (2018, item 1.13.8), in verbis:

nos termos deste princípio (autonomia do direito), a decisão deve se pautar por argumentos de princípio (direito), e não de política, moral ou economia. Vale dizer, a decisão adequada deve se assentar em solo jurídico, e não veicular as questões que acabam por fragilizar o caráter de garantia sustentado pelo direito.

O objetivo a ser perseguido pelo intérprete, portanto, é o de evitar a discricionariedade optativa, ou seja, discricionariedade na qual casos difíceis, calcados na “dificuldade/complexidade em tese”, são julgados com inserção, a todo o momento e sem um critério definido, de juízos políticos, maculando a racionalidade jurídica.

A discricionariedade optativa, de acordo com Abboud (2014, cáp.3), gera uma espécie de recepção à brasileira da teoria de Hart conjugada com a de Robert Alexy, conjugação essa que pode gerar graves reflexos sistêmicos.

Outro ponto importante para a reflexão, levando-se em conta a discricionariedade, é a sua (impossibilidade de) relação com a Democracia. Para Lênio Streck (2012, p. 48), a discricionariedade por si mesma é incompatível, ou seja, não é viável que “uma Constituição estabelecesse, por exemplos, “princípios” que autorizassem o juiz a buscar, em outros espaços ou fora dele, as fontes para complementar a lei”.

Observe o leitor que a decisão judicial, para que seja compatível com a democracia, deve estar baseada nos parâmetros e amarras próprios da democracia constitucional, ou seja, na “Constituição, lei, precedentes, doutrina, jurisprudência, etc” (ABBOUD, 2016, p.59).

Não se pode admitir, portanto, questões jurídicas sendo analisadas e julgadas fora do parâmetro democrático, ou seja, fora dos termos da Constituição, lei, precedentes, doutrina, jurisprudência, por exemplo.

Os limites da discricionariedade e a própria crítica à sua existência no âmbito administrativo permitem, a partir de Abboud (2018, item 1.13.5), reflexões importantes, por exemplo, quanto ao mérito do ato administrativo e a (im) possibilidade do controle de constitucionalidade, senão vejamos:

Assim, se no Estado Constitucional a lei deve ser controlada em todos seus aspectos quando contrária à legalidade (CF + leis) qual a racionalidade em ainda se admitir que o mérito do ato administrativo está blindado a qualquer exame de legalidade/constitucionalidade? É exatamente nesse contexto em que se insere a obra, pois, se, atualmente, é possível o controle material de constitucionalidade da lei, com maior razão o ato administrativo não pode ficar imune ao que determina o bloco da legalidade. No Estado Constitucional, não há poder que possa ficar imune ao controle jurisdicional, ou seja, não encontra sustentação jurídica a afirmação de que o mérito do ato administrativo está desde sempre imune ao controle jurisdicional, isso porque tal assertiva represtina a forma de agir do gubernaculum em que um poder pode agir extra legem sem precisar prestar conta de seus atos.

Em interessante caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, trecho do voto do Des. Alexandre Freitas Câmara é esclarecedor no sentido de inexistir discricionariedade para implementação de medidas de satisfação no processo executivo, tornando possível concluir que aquela deve ser afastada, inclusive, em situações concretas aparentemente permissivas de tal conduta, senão vejamos:

Direito processual civil. Execução. 'Penhora on-line'. Decisão que a indeferiu sob o fundamento de que sua realização seria uma faculdade do juiz. Inexistência de faculdades do juiz no processo, bem como de discricionariedade judicial. Poder-dever do juiz de realizar a apreensão eletrônica de dinheiro sempre que haja meios para tanto. Garantia constitucionalmente assegurada ao exequente de que receberá tutela jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva. Inexistência de um 'direito constitucionalmente assegurado de não adimplir' em favor do devedor. Recurso provido para determinar ao juízo de primeiro grau que proceda à apreensão eletrônica de dinheiro do executado. (TJRJ, Ag 0001610 - 18.2011.8.19.0000, j. 30.03.2011, v.u., rel. Des. Alexandre Freitas Câmara).

Para a compreensão total do tema, importante tecer (ainda que breves) comentários a respeito da modulação dos efeitos em sede de controle abstrato de constitucionalidade.

Aqui, a decisão que analisa a constitucionalidade da lei ou do próprio ato administrativo e modula os respectivos efeitos, seja por parte do Supremo Tribunal Federal, seja por órgãos jurisdicionais, não comporta a atribuição de aspecto discricionário, sob pena de violação, não apenas do sistema no qual está calcada a própria modulação como, e principalmente, a diversos princípios, senão vejamos:

Portanto, não coadunamos com a atribuição de nenhum aspecto discricionário à modulação de efeitos pelo Supremo, ou pelos demais órgãos jurisdicionais, seja examinando a constitucionalidade da lei ou do próprio ato administrativo, uma vez que essa decisão precisará sempre estar fundamentada em regra ou no princípio da segurança jurídica, confiança legítima ou da boa-fé objetiva – bem como deverá evidenciar quais os direitos fundamentais que a aplicação da modulação de efeitos prestigiará. Vale dizer, é vedado ao Judiciário realizar a modulação de efeitos com base em argumentos vagos e imprecisos ou com o intuito de privilegiar o Poder Público. (ABBOUD, 2014, item 3.4.5).

Há uma própria construção dentro da esfera do Direito Administrativo no sentido de autorizar o controle da Administração Pública, com o fito de preservar os direitos fundamentais e os princípios constitucionais.

Nesse aspecto, analisar a motivação como direito fundamental ganha relevância para a total reflexão a respeito do tema.

 

2. Motivação como direito fundamental

De acordo com o dicionário Michaelis - online motivar significa: “dar motivos; causar”. Motivar significa que o juiz deve explicar as razões de sua decisão; ou seja, o percurso elaborado para se chegar a determinada conclusão.

Abboud (2014, online) demonstra que a Revolução Francesa trouxe em seu bojo a obrigatoriedade de motivar as decisões judiciais. No Brasil, a atual Constituição e também a anterior incorporaram a exigência que as decisões necessitassem de motivação.

A motivação das decisões judiciais é tratada como garantia fundamental do Estado democrático de direito e o juiz deve apontar quais motivos o levaram a julgar daquela maneira para que a parte, analisando o conteúdo da decisão, resolva se pretende recorrer ou impugnar a referida a decisão. 

Conforme já advertiu Gustavo Tepedino (online):

O reconhecimento do papel criativo dos magistrados (...) não importa em decisionismo, ou voluntarismo judiciário. A própria noção de segurança jurídica há de ser reconstruída a partir do compromisso axiológico estabelecido pela Constituição da República, com a elaboração de dogmática sólida, capaz de enfrentar a complexidade dos novos fenômenos sociais e de suas mudanças. Nessa esteira, torna-se imperioso fortalecer e difundir a teoria da argumentação, associada à interpretação unitária do ordenamento, não já à valoração individual de cada juiz, a fim de legitimar o discurso jurídico e a decisão judicial.

A Constituição de 1988, em seu art. 93, IX, estabelece que as decisões precisam ser fundamentadas, senão vejamos:

IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. (BRASIL, 1988, online).  

O artigo 93 preleciona que a atividade jurisdicional, salvo os casos previstos em lei, é realizada publicamente. Esta publicidade é uma importante garantia que o juiz não agirá arbitrariamente, tomando decisões baseadas em ideologias, interesses pessoais etc., pois, além das partes e terceiros litigantes, a população pode fiscalizar suas decisões.

Ainda segundo Abboud (2009, p. 68), as sentenças constitucionais devem conter uma completa fundamentação; “um déficit de fundamentação é na realidade um déficit de legitimação da atividade da corte”. Dessa maneira, “a motivação é constitucionalmente obrigatória porque é nela que o balanceamento e a evolução histórica da interpretação constitucional pode ser compreendida.”

Por fim, as decisões judiciais precisam sem motivadas. Essa exigência alcança todo o sistema jurídico e caso a mesma não seja seguida, estaremos diante de nulidade, ou seja, no modelo atual toda decisão deve estar motivada, fundamentada, ainda que de forma incipiente.

O modo pelo qual as decisões judiciais estão sendo motivadas (como) é o ponto nevrálgico da questão.

 

3. Conceito processual de decisão e sentença

Inicialmente, importante destacar que a sentença, dentro do processo constitucional contemporâneo deve ser visualizada como ato concretizador, ou seja, deve ser superado o conceito clássico de sentença como ato representativo de mero silogismo.

Nesse sentido, a interpretação, parte integrante do fenômeno jurídico, deve ser compreendida como uma experiência, muitas vezes complexa, ao invés de um conhecimento meramente conceitual.

A compreensão textual passa, portanto, pela mediação entre passado e presente, sendo possível concluir, preliminarmente, que há, para o intérprete, a influência da historicidade no processo interpretativo.

Diante do reconhecimento da historicidade como aspecto inerente a compreensão textual, cada caso, portanto, é único e irrepetível. Nesse aspecto, José Lamego ao citar Gadamer destaca que “cada época tem de entender um texto transmitido de uma maneira peculiar, pois o texto forma parte do todo da tradição, na qual cada época tem um interesse pautado na coisa e onde também ela procura compreender a si mesma”. (LARGO, 1992, p.110).

Nesse sentido, para o referido autor, Gadamer destacaria que “em toda leitura tem lugar uma aplicação, e aquele que lê um texto se encontra, também ele, dentro do sentido que percebe. Ele mesmo pertence ao texto que entende”. ( LARGO, 1998, p.503).

Esclarecidos os principais pontos a respeito da interpretação, os principiais equívocos cometidos pelo pensamento fechado a um acesso hermenêutico, de acordo com Abboud, seriam in verbis:

1)  confusão entre texto e norma.

2) interpretação como ato revelador de vontade “ora do legislador ora da própria lei” (p.22).

3) sentença judicial como processo interpretativo meramente silogístico em que “por simples subsunção o suporte fático é normatizado, dando origem assim à decisão judicial”.

Em especial sobre a confusão entre texto e norma, à luz de Friedrich Müller[1] e a teoria estruturante da norma, importante consignar que a prescrição juspositiva diz respeito, tão somente, ao ponto de partida na estruturação do objetivo a ser perseguido pelo Operador do direito (norma), ou seja, para a elaboração do programa de norma.

Nesse aspecto, deve existir correlação entre a norma produzida a partir da realidade, não consistindo o texto da norma na própria norma jurídica, e sim como um dado de entrada mais importante ao lado do caso a ser analisado no processo de sua concretização e através de critérios jurídicos.

Passando para análise do conceito de sentença no direito processual, mais especificamente direcionado ao estudo do processo constitucional, o conceito processual de sentença é o mesmo do direito processual civil.

Tanto antes como após o advento do novo Código de Processo Civil (lei 11232 de 2005), é possível concluir que a teleologia é o critério norteador do ato, devendo ser considerada sentença o “pronunciamento do juiz que contém uma das matérias do CPC 267 ou 269 e que ao mesmo tempo extingue o processo ou a fase de conhecimento no primeiro grau de jurisdição” (ABBOUD, 2009).

Já o conceito processual de decisão, a partir do que foi visto acima, consiste no pronunciamento do juiz que, ainda que contenha as matérias do CPC destinadas ao exame de mérito, não extinguem o processo ou a fase de conhecimento no primeiro grau de jurisdição.

Além disso, deve englobar o conceito processual de decisão o pronunciamento do juiz a respeito de questões cautelares e incidentais ao longo da marcha processual.

Parte da doutrina[2], entretanto, compreende que sentença deve ser vista, tão somente, a partir de seu conteúdo, independentemente da teleologia em tese, ou seja, da finalidade em si do provimento jurisdicional.

O Código de Processo Civil Brasileiro, ao contrário do ZPO (CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ALEMÃO), não estabelece a classificação “dos atos recorríveis em sentença definitiva, parcial e incidental, e sim em sentença sempre definitiva e decisões interlocutórias independentemente de seu conteúdo, mas que não encerram processo, ainda que julguem extinta por exemplo determinada ação” (ABBOUD, 2009, p. 61).

Para Edgar Corzo e María Mercedes Serra Rad, baseado o primeiro doutrinador no art. 86.1 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional Espanhol, sentença é a resolução processual “mediante a qual se resolve o mérito da controvérsia objeto da questão de constitucionalidade”. (ABBOUD, 2009, p. 61).

Sentença constitucional deve ser entendida, portanto, como provimento que, além de examinar o mérito acerca da (in) constitucionalidade, extingue o processo iniciado pela ADIn, ADC, ou ADPF, cabendo efeito vinculante apenas a esse provimento que extingue o processo.

Daqui surge o interesse (e respectiva correlação) com o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, após 5 (cinco) sessões de julgamento, das ações diretas de constitucionalidade n. 43 e 44 e 54, cuja análise será verificada no tópico seguinte.

Voltando ao eixo da presente reflexão, considerar que sentença se resume ao seu conteúdo, desconsiderando a sua teleologia, gera percalço em relação ao processo constitucional, uma vez que, com base no art. 102, parágrafo segundo da CF, “apenas as sentenças definitivas de mérito poderão ter efeito vinculante” (ABBOUD, 2009, p.62).

Portanto, apenas pronunciamentos que encerram o processo poderão ter efeito vinculante. Conferir efeito vinculante a provimentos cautelares ou incidentais violaria o teor literal do art. 102, parágrafo segundo, da CF. (ABBOUD, 2009, p.62).

 

4. Execução provisória da pena após a segunda instância: STF e o julgamento das ADCs 43, 44 e 54

Por 6 votos a 5, o Supremo Tribunal Federal, nos autos das ADCs 43 e 44 decidiu que o cumprimento da pena somente poderá ter início com o esgotamento de todos os recursos, devendo ser considerada, portanto, vedada e execução provisória da pena.

Vale ressaltar, dado o caráter informativo (e, por que não dizer, pedagógico do presente texto), que o acórdão proferido pelo STF não impossibilitou que réus sejam presos antes do trânsito em julgado, ou seja, antes do esgotamento de todos os recursos, no entanto, para que isso ocorra, é necessário que seja proferida uma decisão judicial individualmente fundamentada, na qual o magistrado demonstre concretamente que estão presentes os requisitos para a prisão preventiva previstos no art. 312 do CPP.

Nesse aspecto, continua sendo possível que o acusado possa ficar preso cautelarmente antes do trânsito em julgado, e não como execução provisória da pena.

A historicidade do direito e, em especial, dos provimentos jurisdicionais relativos ao tema analisado, pode ser dividida em quatro períodos, senão vejamos.

Compreendido até fevereiro de 2009, o STF, no aqui denominado primeiro período, compreendia que era possível a execução provisória da pena[3].

Em 05.02.2009, o STF, no segundo período, ao julgar processo da relatoria do Ministro Eros Grau (HC 84.078[4]), alterou a posição originária e estabeleceu que a não era possível a execução provisória da pena, tendo perdurado até fevereiro de 2016.

No dia 17.02.2016, o STF, no terceiro período, ao julgar o HC 126.292[5], relatado pelo Ministro Teori Zavascki, retornou para a sua primeira posição, ou seja, a execução provisória da pena não ofenderia a Constituição Federal de 1988.

No 4º período, relativo ao julgamento das ADCs 43, 44 e 54, relatadas pelo Ministro Marco Aurélio, o STF modificou novamente a jurisprudência concluindo que não é possível a execução da pena em segunda instância, estabelecendo que, como regra, o cumprimento da pena apenas pode ter início com o esgotamento de todos os recursos.

Quanto ao instrumento processual utilizado para o exame da matéria, a Ação Declaratória de Constitucionalidade mostra-se como meio adequado, gerando uma breve vantagem comparativa entre o último e mais recente período analisado em comparação aos demais períodos, com exceção do primeiro período jurisprudencial.

No primeiro período jurisprudencial, a Emenda Constitucional nº 03/93 ainda não havia sido promulgada, não sendo exigível, portanto, que o STF simplesmente criasse mecanismo processual não previsto expressamente em lei.

Nesse instante, cabe a análise da fundamentação e respectiva discricionariedade relativa aos principais argumentos dos defensores da possibilidade de execução de prisão após a confirmação da condenação em segunda instância.

 

CONCLUSÕES

Para que o Direito Penal, ao menos nesse caso analisado pelo Supremo Tribunal Federal, possa ser levado a sério no sentido de que haja coerência e lógica jurídica no discurso proferido pela Corte Constitucional, a análise dos argumentos contrários à conclusão obtida pelo STF ao julgar as ADCs 43, 44 e 54 mostra-se indispensável.

Inicialmente, no tocante à conclusão de que o início da execução da pena condenatória após a prolação de acórdão condenatório em 2º grau não ofenderia o princípio constitucional da presunção da inocência, é cabível a seguinte reflexão: o que estava em jogo não é a exclusão (ou não) do princípio da presunção de inocência e sim os limites interpretativos que poderiam ser dados ao instituto jurídico do trânsito em julgado.

Até mesmo porque, em tese, a alteração temporal a respeito do juízo de culpa, por proposta de emenda à constituição, não extinguiria o núcleo da cláusula pétrea da presunção de inocência.

Outro argumento existente é o de que o recurso especial e o recurso extraordinário não possuem efeito suspensivo (art. 637 do CPP). Por não possuírem referido efeito, mesmo a parte tendo interposto algum desses recursos, a decisão recorrida continuaria produzindo efeitos. Logo, seria possível a execução provisória da decisão recorrida enquanto se aguarda o julgamento do recurso.

Com o devido respeito aos defensores desse argumento, não se está em jogo a dinâmica de efeito suspensivo dos chamados recurso extraordinários a partir de uma tônica mais assemelhada, por exemplo, ao direito processual civil.

Aqui, no Direito Penal, existe disposição constitucional expressa condicionando a formação da culpa propriamente dita a partir do trânsito em julgado, condição sine qua non para o início do cumprimento da pena.

Nesse aspecto, em relação a outra premissa por vezes utilizadas, não deve-se presumir a inocência do réu tão somente até o término da jurisdição da segunda instância.

Ou seja, não exaure-se o princípio da não culpabilidade, até porque excepcionalmente os recursos cabíveis da decisão de segundo grau ao STJ ou STF, mesmo não se prestando a discutir fatos e provas, e sim matéria de direito podem gerar reflexos importantíssimos quanto a absolvição do acusado, alterações quantitativamente e, principalmente, qualitativas no regime de cumprimento de pena.

Não há dúvidas, quanto a mais um argumento utilizado por aqueles que entendem que a execução provisória da pena após a segunda instância, de que é possível o estabelecimento de determinados limites ao princípio da presunção de não culpabilidade. Entretanto, tais limites devem ser regularmente debatidos pelo Poder Legislativo através de emendas à Constituição Federal de 1988 sob pena de violação ao princípio da independência e harmonia entre, no caso, os Poderes Legislativo e Judiciário.

Assim, caso (e tão somente) aprovada pelo Poder Legislativo, a presunção da inocência não impediria que, mesmo antes do trânsito em julgado, o acórdão condenatório produza efeitos contra o acusado.

Nesse sentido, a execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária vulnera o núcleo essencial do pressuposto da não culpabilidade, bem como o conceito técnico de trânsito em julgado, não devendo ser confundida execução provisória da pena com prisões cautelares.

Sobre o argumento da “efetividade da jurisdição penal”, essa apenas se tornará possível com 1) o aprimoramento administrativo que permita a diminuição dos fluxos de processos nos cartórios judiciais de todo o país, 2) o aprimoramento da legislação a respeito da prescrição e outras causas extintivas da punibilidade por exemplo, 3) o aprimoramento legislativo relativo aos institutos despenalizadores, o que ensejará mais condições para a eficiente prestação jurisdicional relativa a crimes realmente graves, e não com a cosmética redução de direitos e garantias previstas na Constituição Federal de 1988.

Tanto a sociedade brasileira como aqueles que respondem por processos penais clamam por instrumentos mais céleres e eficientes para a finalização dos litígios, não podendo ser sufragadas garantias constitucionais com base em premissas, desacompanhadas de textos legais, no sentido de que “Em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa aguardando referendo da Suprema Corte”.

Diante de tais reflexões, além de concluir que nenhum dos aludidos argumentos consegue afastar a constitucionalidade do art. 283 do CPCP, compreender que o Supremo Tribunal Federal equivocou-se no julgamento das ADCs 43, 44 e 54 seria o mesmo que confundir texto e norma e interpretar dispositivos de lei com base na vontade momentânea do legislador e da própria lei, algo perigoso para a manutenção da Democracia na qual (concordemos ou não) vivemos.

 

Notas e Referências

ABBOUD, Georges.  Sentença interpretativas, coisa julgada e súmula vinculante: alcance e limites dos efeitos vinculante e erga omnes na jurisdição constitucional. 2009. 309f. Dissertação (Mestrado em Direito). Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

________________. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a decisão judicial. [livro eletrônico]. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.Z.

________________. Onde a discricionariedade começa, o direito termina: comentário ao voto proferido por Alexandre Freitas Câmara sobre penhora on-line. REPRO, v. 251, p. 59, 2016.

__________. Processo Constitucional Brasileiro, 2.ª ed., SP: RT, 2018, item Capítulo 1, 1.13.8.

BRASIL. Constituição da República Federativa do. 1988. Brasília. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 05 nov. 2019.

BRASIL. TJRJ, Ag 0001610 - 18.2011.8.19.0000, j. 30.03.2011, v.u., rel. Des. Alexandre Freitas Câmara.

BRASIL STF. Plenário. HC 68726, Rel. Min. Néri da Silveira, julgado em 28/06/1991.

BRASIL. STF. HC 84078 MG. Relator: Ministro EROS GRAU. Data de julgamento: 05.02.2009. Tribunal Pleno. Data de Publicação: DJE-035 DIVULG 25.02.2010. PUBLC-26-02-2010.

BRASIL STF. Plenário. HC 126.292, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 17/02/2016.

FERNÁNDEZ-LARGO, Antonio Osuna. La hermenêutica jurídica de Hans-Georg Gadamer.Valladolid: Secretariado de Publicaciones Universidad de Valladoolid, 1992, p. 110. 

STRECK, Lenio Luis, O que é isto – decido conforme minha consciência, 2.ª, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 48).

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias

Discursivas da Possibilidade à necessidade de respostas corretas em Direito.

3.ed., Rio de Janeiro: Lumen juris, 2009.

TEPEDINO, Gustavo. Itinerário para um imprescindível debate metodológico. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro: Padma, v. 35, jul-set. 2008. Disponível em: <http://www.tepedino.adv.br/wpp/wp-content/uploads/2012/09/RTDC.Editorial.v.035.pdf>. Acesso em: 05 nov. 2019.

 

[1] Friedrich MÜLLER. O novo paradigma do direito, p. 119.

[2] V. Teresa Arruda ALVIM WAMBIER. O conteúdo das decisões judiciais como fator determinante para sua classificação e para a indicação dos recursos cabíveis, in: Revista de Processo, n. 162, pp. 273/296 especialmente p. 283. Jorge de Oliveira VARGAS. O novo conceito de sentença e o recurso daquela que não extingue o processo: apelação ou agravo de instrumento?, in: Nelson Nery Junior; Teresa Arruda Alvim Wambier (orgs.). Aspectos polêmicos e atuais dos Recursos Cíveis, v. 11., São Paulo: RT, 2007.

[3] BRASIL STF. Plenário. HC 68726, Rel. Min. Néri da Silveira, julgado em 28/06/1991.

[4] BRASIL. STF. HC 84078 MG. Relator: Ministro EROS GRAU. Data de julgamento: 05.02.2009. Tribunal Pleno. Data de Publicação: DJE-035 DIVULG 25.02.2010. PUBLC-26-02-2010.

[5] BRASIL STF. Plenário. HC 126.292, Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 17/02/2016.

 

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