LEI HENRY BOREL: a revolução normativa em favor da criança e do adolescente continua

31/05/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Apesar das centenas de anos de “evolução” da humanidade, dos avanços tecnológicos, dos progressos no campo da genética, na cura de doenças, no aprimoramento das instituições, na conquista pela igualdade entre os sexos, não conseguimos evoluir suficientemente, no sentido de protegermos nossas crianças e adolescentes de todos os tipos de violência a que são submetidas, em especial a violência doméstica.

A violência que acontece nos lares, espaços primeiros de socialização, ambientes que deveriam ser apropriados para que a criança se desenvolva, sinta-se segura e amada, traz profundas indagações: por que se transforma em um local em que a criança é maltratada, espancada, podendo, inclusive, ser assassinada?

O Direito da Criança e do Adolescente se aprimora quando surgem leis que têm o objetivo de dar um basta à violência. Podemos destacar, neste momento, três importantes normativas:

1º) “Lei Menino Bernardo” - Lei nº 13.010, de 26 de junho de 2014 - como uma forma de homenagem a Bernardo Boldrini, menino de 11 anos, assassinado de forma vil, pela própria madrasta, em Três Passos, Rio Grande do Sul. Com o seguinte destaque:

Art. 1º  A Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 18-A, 18-B e 70-A: 

Art. 18-A. A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los.

Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se:

I - castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em:

a)sofrimento físico; ou

b)lesão;

II - tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente que:

a)humilhe; ou

b)ameace gravemente; ou

c)

Art. 18-B. Os pais, os integrantes da família ampliada, os responsáveis, os agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa encarregada de cuidar de crianças e de adolescentes, tratá-los, educá-los ou protegê-los que utilizarem castigo físico ou tratamento cruel ou degradante como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto estarão sujeitos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, às seguintes medidas, que serão aplicadas de acordo com a gravidade do caso:

I - encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família;

II - encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico;

III - encaminhamento a cursos ou programas de orientação;

IV - obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado;

V - advertência.

Parágrafo único. As medidas previstas neste artigo serão aplicadas pelo Conselho Tutelar, sem prejuízo de outras providências legais.

2º) Em 2017, tivemos outro grande avanço com a Lei da Escuta Especializada e do Depoimento Especial – a Lei n. 13.431/2017, que estabelece o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Importante destacar:

Art. 4º Para os efeitos desta Lei, sem prejuízo da tipificação das condutas criminosas, são formas de violência:

I - violência física, entendida como a ação infligida à criança ou ao adolescente que ofenda sua integridade ou saúde corporal ou que lhe cause sofrimento físico;

II - violência psicológica:

a) qualquer conduta de discriminação, depreciação ou desrespeito em relação à criança ou ao adolescente mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, agressão verbal e xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação sistemática (bullying) que possa comprometer seu desenvolvimento psíquico ou emocional;

b) o ato de alienação parental, assim entendido como a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou por quem os tenha sob sua autoridade, guarda ou vigilância, que leve ao repúdio de genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculo com este;

c) qualquer conduta que exponha a criança ou o adolescente, direta ou indiretamente, a crime violento contra membro de sua família ou de sua rede de apoio, independentemente do ambiente em que cometido, particularmente quando isto a torna testemunha;

III - violência sexual, entendida como qualquer conduta que constranja a criança ou o adolescente a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, que compreenda:

a) abuso sexual, entendido como toda ação que se utiliza da criança ou do adolescente para fins sexuais, seja conjunção carnal ou outro ato libidinoso, realizado de modo presencial ou por meio eletrônico, para estimulação sexual do agente ou de terceiro;

b) exploração sexual comercial, entendida como o uso da criança ou do adolescente em atividade sexual em troca de remuneração ou qualquer outra forma de compensação, de forma independente ou sob patrocínio, apoio ou incentivo de terceiro, seja de modo presencial ou por meio eletrônico;

c) tráfico de pessoas, entendido como o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento da criança ou do adolescente, dentro do território nacional ou para o estrangeiro, com o fim de exploração sexual, mediante ameaça, uso de força ou outra forma de coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade, aproveitamento de situação de vulnerabilidade ou entrega ou aceitação de pagamento, entre os casos previstos na legislação;

IV - violência institucional, entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização.

3º) E, agora, com a Lei nº 14.344, de 24 de maio de 2022[1], batizada como a “Lei Henry Borel”, como uma forma de não esquecimento do menino Henry, de 4 anos, assassinado em 2021, cuja mãe e cujo padrasto são apontados como autores do crime. Esta lei cria mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente. Vejamos:

Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente, nos termos do § 8º do art. 226 e do § 4º do art. 227 da Constituição Federal e das disposições específicas previstas em tratados, convenções e acordos internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil, e altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e as Leis nºs 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), 8.069, de 13 de julho de 1990, (Estatuto da Criança e do Adolescente), 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei de Crimes Hediondos), e 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. 

Art. 2º Configura violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente qualquer ação ou omissão que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico ou dano patrimonial:

I - no âmbito do domicílio ou da residência da criança e do adolescente, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que compõem a família natural, ampliada ou substituta, por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação doméstica e familiar na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a vítima, independentemente de coabitação.

Parágrafo único. Para a caracterização da violência prevista no caput deste artigo, deverão ser observadas as definições estabelecidas na Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017.

A nova lei considera a violência contra criança e adolescente como uma das formas de violação dos direitos humanos. Isso posto, qualquer ação ou omissão que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano patrimonial contra criança e adolescente configura violência doméstica e familiar.

A lei, ao alterar o Código Penal Brasileiro, agravou a pena para o crime de homicídio contra menores de 14 anos, que passa  a ser hediondo, ou seja, inafiançável e insuscetível de anistia, graça e indulto, além de outras consequências previstas na Lei nº 8.072/1990, e qualificado - art. 121, §2º, inciso IX, do Código Penal -, se o autor é ascendente da vítima (por exemplo: pai, mãe, avô, avó), padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se tiver autoridade sobre a vítima menor de 14 anos, bem como, ainda, se a vítima é pessoa com deficiência ou com doença que a torne mais vulnerável, a pena pode ser aumentada de um terço até a metade - art. 121, §2º-B, incisos I e II, do Código Penal.

Contudo, as alterações mais relevantes trazidas pela Lei nº 14.344/2022 não estão no campo do endurecimento das penas.  São aquelas que incidem por uma maior participação do Conselho Tutelar no atendimento da criança e adolescente vítima ou testemunha de violência doméstica e familiar, ou submetido a tratamento cruel ou degradante ou a formas violentas de educação, correção ou disciplina. Estabelece, aos entes federativos, uma responsabilidade pela promoção de campanhas, o que se configura de fundamental importância para a concretização de uma cultura de paz, por meio de campanhas educativas sobre os instrumentos de proteção aos direitos humanos das crianças e dos adolescentes, servindo-se dos canais de denúncia já existentes.

O texto traz medidas protetivas de urgência à vítima, como a inclusão em programas de assistência social ou proteção., bem como medidas como acolhimento institucional ou em família substituta e matrícula da criança ou do adolescente em instituição de educação mais próxima do domicílio ou do local de trabalho do responsável legal.

Mas entendo como de importantíssimo o seguinte destaque no que tange a obrigatoriedade da denúncia, e esta não sendo feita, estamos frente a um novo tipo penal:

Art. 26. Deixar de comunicar à autoridade pública a prática de violência, de tratamento cruel ou degradante ou de formas violentas de educação, correção ou disciplina contra criança ou adolescente ou o abandono de incapaz:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos.

§1º A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta morte.

§2º Aplica-se a pena em dobro se o crime é praticado por ascendente, parente consanguíneo até terceiro grau, responsável legal, tutor, guardião, padrasto ou madrasta da vítima. 

Finalmente, a conduta de deixar de comunicar à autoridade pública a prática de violência, de tratamento cruel ou degradante ou de formas violentas de educação, correção ou disciplina contra criança ou adolescente e, ainda, o abandono de incapaz passou a ser criminalizada.

Até então, defendíamos a tese de que tal obrigação decorria tanto do dever constitucional, atribuído a todos, de proteger a criança e o adolescente e de colocá-los à salvo de qualquer tratamento que possa configurar negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, CF/88), quanto das previsões contidas em Lei.

O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece, de modo genérico, de que caberia a todo cidadão alertar qualquer suspeita, conforme se observa na leitura do seu art. 13:

Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais. (Redação dada pela Lei n. 13.010, de 2014)

O dever estipulado no art. 13 tem estreita relação com a previsão contida no art. 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente: “Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor” - Isso porque a violência cometida contra a criança e o adolescente, sobretudo as de natureza sexual, ferem não apenas o seu corpo, mas afrontam, diretamente, a sua dignidade.

Observe-se que, tanto no art. 13 quanto no art. 18 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o legislador utilizou-se da expressão “é dever de todos”, chamando a sociedade a assumir a sua parcela de responsabilidade para a promoção e a proteção dos direitos da criança e do adolescente.

Agora o cenário é outro:  passarmos a ter de modo claro, objetivo e expresso de que a não comunicação passou a ser, por força da Lei Henry Borel, um crime.

Temos consciência de que a lei, por si só, não altera de forma imediata as práticas de violência, de ódio, para práticas de respeito, de amorosidade, mas ela sinaliza um não à barbárie. Não é compreensível que, em pleno século XXI, ainda existam ações abusivas, violências de toda ordem. Precisamos dar um basta à violência, precisamos evoluir e crescer em humanidade.

 

 

Notas e Referências 

[1] Art. 34. Esta Lei entra em vigor após decorridos 45 (quarenta e cinco) dias de sua publicação oficial (a lei foi publicada no DOU, em 25 de maio de 2022).

 

Imagem Ilustrativa do Post: toddler holding assorted-color Crayola lot // Foto de: Kristin Brown // Sem alterações

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