Lei de Improbidade Administrativa e Lei Anticorrupção: o diálogo das fontes após a Lei 14.230/2021  

23/02/2022

A Lei 8.429/1992, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa (LIA), mostrou-se fundamental no controle jurisdicional das condutas dos agentes públicos no Brasil, de todos os Poderes e entes da Federação e de variados escalões, tendo vindo regular o disposto no art. 37, § 4º, da CF/1988. Ela descreveu os atos ímprobos, distribuindo-os em três categorias, previu seus sujeitos ativos e passivos e fixou as respectivas sanções e seus prazos prescricionais, assim como instituiu regras referentes à investigação e ao processo judicial de persecução desses ilícitos, entre outras disposições.[1]

O rol de atos de improbidade foi depois estendido pelas Leis 11.107/2005, 13.019/2014, 13.146/2015 e 13.650/2018, bem como pela Lei Complementar 157/2016, passando a contemplar, além dos que importam em enriquecimento ilícito (art. 9º), dos que causam prejuízo ao erário (art. 10) e dos que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11) – existentes desde a edição da LIA –, os atos ímprobos decorrentes de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário (art. 10-A).

Recentemente, a Lei 14.230/2021 reformou profundamente a LIA, nos seus aspectos materiais e processuais. Dentre as muitas modificações operadas, convém aqui destacar as alterações redacionais promovidas nos arts. 9º, 10 e 11, com enormes repercussões na tipificação dos atos de improbidade administrativa, a revogação do art. 10-A – cujo conteúdo passou para o novel inc. XXII do art. 10 – e de alguns incisos dos arts. 10 (inc. XXI) e 11 (incs. I, II, IX e X) e a inclusão de novas figuras ímprobas no art. 11 (incs. XI e XII).

A LIA alcança, além dos agentes públicos (art. 2º), as pessoas naturais ou jurídicas que concorram para o ato de improbidade administrativa ou dele se beneficiem (art. 3º). É indispensável, para a caracterização de conduta punível sob a égide do diploma, a ação ou omissão de agente público que se enquadre em um dos tipos legais, cometida por ele em proveito próprio ou alheio, de sorte que, faltando este sujeito, simplesmente não há improbidade administrativa. A conduta de particular concorrente ou beneficiário, portanto, é sempre adesiva a uma conduta principal do agente público.[2]

Os atos de improbidade administrativa exigem o dolo do agente e do concorrente ou beneficiário, legalmente definido pelo art. 1º, § 2º, da LIA como a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado em alguma das hipóteses dos arts. 9º, 10 e 11 do texto normativo, sendo portanto ilícitos de responsabilidade subjetiva.[3]

Prosseguindo no desenvolvimento de ferramentas preventivas e repressivas da corrupção, sobreveio a Lei 12.846/2013, que ficou conhecida como Lei Anticorrupção (LAC), cujo escopo principal é a responsabilização de pessoas jurídicas pela prática de atos lesivos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira. Ela estabelece a responsabilidade objetiva daqueles entes, nas esferas administrativa e civil, pelas condutas cometidas em seu interesse ou benefício, mesmo que não exclusivo, conforme os arts. 1º, caput, e 2º.[4]

Trata-se, portanto, de responsabilidade que prescinde da culpa lato sensu, bastando à sua configuração a existência de um ato ilícito – entre os tipificados extrapenalmente na lei – atribuível ao ente coletivo e apto a lhe trazer proveito, de uma lesão a interesse material ou imaterial da Administração Pública nacional ou estrangeira e do nexo de causalidade entre ambos.

O diploma, em princípio, visa as pessoas jurídicas, na linha do que enuncia o art. 1º, caput. Todavia, o parágrafo único do dispositivo, além de especificar quais são elas, estende o alcance também às sociedades de fato ou irregulares, aludindo à desnecessidade de personificação jurídica ou de constituição idônea perante as leis nacionais para a incidência de suas normas.

Há que se notar, ainda, que não é somente o ente coletivo ao qual se imputa o ato ilícito que se sujeita às consequências sancionatórias. No seu art. 4º, a LAC disciplina situações de responsabilidade solidária (§ 2º) e de responsabilidade por sucessão (§ 1º).

Finalmente, nos termos do art. 3º, caput e § 1º, a responsabilização da pessoa jurídica independe da responsabilização individual de seus dirigentes ou administradores ou de pessoa natural autora, coautora ou partícipe do ato ilícito, não a excluindo de qualquer modo. Contudo, e nos moldes do § 2º, a responsabilidade destas pessoas é subjetiva, impondo a indagação da presença de dolo ou culpa em suas condutas.

Os atos lesivos à Administração Pública estão tipificados no art. 5º da LAC e dizem respeito à atuação ilícita, direta ou indireta, do ente coletivo e de seus dirigentes ou colaboradores – como corrupção ativa, financiamento e subvenção ilegais, uso de interposta pessoa, ajuste, fraude ou frustração de licitação e contrato e suas alterações, inclusive por criação fraudulenta de sociedade, e oposição de óbices à investigação e à fiscalização pelos órgãos públicos –, que ataca o patrimônio público, os princípios da Administração Pública e os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil – destacando-se as Convenções de Paris (Decreto 3.678/2000) e de Mérida (Decreto 5.687/2006), que concernem ao combate à corrupção de agentes públicos.[5]

Do exposto nas linhas anteriores, percebe-se que o ordenamento jurídico brasileiro busca coibir a corrupção administrativa – aqui concebida em sentido amplo, como a predagem do patrimônio público e o menoscabo da probidade administrativa para beneficiar interesses privados –, ora enfatizando e sancionando as condutas do agente público corrupto (LIA), ora enfatizando e sancionando as condutas do particular corruptor (LAC).

Como vimos, desde a edição da LIA as pessoas jurídicas já podiam ser responsabilizadas por ato de improbidade administrativa, sempre que atuassem em concurso com agente público ou fossem beneficiadas pelo ilícito. A partir do advento da LAC, mesmo que não haja ato ímprobo de agente público, o ente coletivo passou a poder ser sancionado por sua própria atuação.[6]

Resta saber, portanto, como coordenar sistematicamente esses dois regimes, ante as disposições do art. 30, inc. I, da LAC e dos recém-introduzidos § 2º do art. 3º e § 7º do art. 12 da LIA.

De acordo com o art. 30, inc. I, da LAC, a aplicação das sanções nela previstas não afeta os processos de responsabilização e aplicação de penalidades decorrentes de atos de improbidade administrativa, nos termos da LIA.

Ao seu turno, o art. 3º, § 2º, da LIA preconiza que as sanções nela cominadas não se aplicarão à pessoa jurídica, caso o ato de improbidade administrativa seja também sancionado como ato lesivo à Administração Pública de que trata a LAC.

Por fim, o art. 12, § 7º, da LIA estabelece que as sanções aplicadas a pessoas jurídicas com base nela e na Lei 12.846/2013 “deverão observar o princípio constitucional do non bis in idem.”

Parece-nos que o método do diálogo das fontes, especialmente na forma do diálogo de complementaridade e subsidiariedade, é capaz de orientar a melhor lógica para a aplicação dos diplomas, evitando tanto o bis in idem na punição quanto as lacunas de punibilidade, ambos indesejados.

A expressão diálogo das fontes foi consagrada por Erik Jayme em seu Curso Geral de Haia de 1995, referindo-se à atual aplicação simultânea, coerente e coordenada das variadas fontes normativas vigentes, com campos de incidência convergentes, porém não mais iguais. Trata-se de uma expressão retórica e semiótica, pois dá imediata conta de sua finalidade de impor duas lógicas, de fazer incidir harmonicamente e ao mesmo tempo duas (ou mais) leis. Em síntese, privilegia a denominada coerência derivada ou restaurada, que, em um momento posterior aos períodos da descodificação, do enaltecimento da tópica e da microrrecodificação, busca eficiência não só hierárquica, mas funcional, do sistema plural e complexo do Direito contemporâneo.[7]

Trata-se de um método de interpretação sistemática fundado na coordenação de diferentes fontes normativas, sobremaneira útil ao aplicador quando se depara com a multiplicidade de leis em vigor regulando um determinado tema.[8]

São essencialmente três os tipos de diálogo possíveis entre as fontes normativas: a) o diálogo sistemático de coerência, mediante o qual uma lei pode servir de base conceitual para outra, mormente se uma delas tem natureza geral e a outra tem natureza especial, ou se uma é a lei central do sistema – por exemplo, um Código – e a outra se trata de um microssistema específico; b) o diálogo de complementaridade e subsidiariedade, mediante o qual uma lei pode complementar a aplicação de outra, a depender de seu campo de incidência, isto é, tanto suas regras quanto seus princípios e cláusulas gerais podem encontrar uso subsidiário ou complementar, evitando uma apressada conclusão pela revogação total ou parcial; e c) o diálogo das influências recíprocas sistemáticas ou diálogo de coordenação e adaptação sistemática, mediante o qual as conquistas positivas em sede de aplicação de uma lei, por obra da interpretação jurisprudencial, são transpostas para a outra, significando uma direta influência da lei especial sobre a lei geral ou desta sobre aquela.[9]

Os critérios fundamentais para a aplicação do diálogo de complementaridade e subsidiariedade entre a LIA e a LAC hão que ser: a) a presença ou não de agente público nacional (de nível federal, estadual, distrital ou municipal) envolvido no fato ou, dito de outro modo, a existência ou não de um ato de improbidade administrativa; e b) o enquadramento ou não da conduta atribuída ao ente coletivo em algum dos tipos do art. 5º da LAC. São eles que devem determinar a incidência das disposições da LIA ou da LAC, conforme o caso.

Assim, havendo ato de improbidade administrativa (arts. 9º, 10 e 11 da LIA), necessariamente praticado dolosamente por agente público nacional (art. 2º da LIA), o ente coletivo extraneus que também dolosamente para ele tenha concorrido ou que dele tenha se beneficiado (art. 3º da LIA) deverá responder juntamente com o intraneus pelo ato ímprobo, no mesmo processo e sob a égide da Lei 8.429/1992, desde que a conduta empresarial não encontre subsunção no art. 5º da LAC.

Já se a conduta empresarial encontrar subsunção no art. 5º da LAC, e por força do art. 3º, § 2º, da LIA, deverão ocorrer a cisão das responsabilizações e a instauração de processos distintos, de modo que o agente público responda pelo ato ímprobo sob a égide da LIA e a pessoa jurídica responda pelo ato lesivo à Administração sob a égide da LAC.

Cotejando os tipos dos arts. 9º, 10 e 11 da LIA com os tipos do art. 5º da LAC, constatam-se algumas superposições ou correspondências que excluem a aplicação do primeiro diploma legal e determinam a incidência do segundo sobre a conduta atribuída ao ente coletivo, tal como aventado na hipótese acima.

Tais superposições ou correspondências se dão notadamente entre o art. 9º, incs. I, II, III, V, VI, VIII, IX e X, da LIA[10] e o art. 5º, inc. I, da LAC[11], bem como entre os arts. 10, inc. VIII, e 11, inc. V, da LIA[12] e o art. 5º, inc. IV, a, b e d, da LAC[13].

De outro lado, havendo ato ilícito lesivo à Administração Pública nacional ou estrangeira (art. 5º da LAC), praticado por pessoa jurídica no interesse ou benefício próprio (arts. 1º, 2º e 4º da LAC) e sem o envolvimento de agente público nacional, aquela deverá responder sob a égide da Lei 12.846/2013.

Vale relembrar que o regime da LAC impõe a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas, nos campos administrativo e civil, dispensando a culpa lato sensu na atuação, e que também admite a responsabilização de pessoa natural particular que tenha agido na qualidade de dirigente ou administrador do ente coletivo, concorrido para o ato lesivo à Administração Pública nacional ou entrangeira ou dele se beneficiado (art. 3º da LAC). Neste caso, a responsabilidade é subjetiva, impondo a averiguação da culpa lato sensu na conduta.

Da maneira ora proposta, e como dito mais acima, promove-se a adequada coordenação sistemática da LIA e da LAC e se evitam tanto o bis in idem na punição quanto as lacunas de punibilidade, ambos indesejados.

 

Notas e Referências

[1] Cf. ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 451; e BERTONCINI, Mateus. Ato de improbidade administrativa: 15 anos da Lei 8.429/1992. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 24.

[2] Cf. ROSA, Márcio Fernando Elias; MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Estudo comparativo entre as Leis 8.429/1992 e 12.846/2013. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 947, p. 295-310, set. 2014. n. 5.

[3] A Lei 14.230/2021 aboliu os atos de improbidade administrativa culposos antes previstos no art. 10 da LIA (abolitio improbitatis), tornando todos exclusivamente dolosos, cf. os arts. 1º, §§ 1º a 3º, 9º, caput, 10, caput, e 11, caput, do diploma legal.

[4] Cf. BARROS, Zanon de Paula. Questões atinentes à chamada Lei Anticorrupção. Revista de Direito Empresarial, São Paulo, v. 2, p. 257-265, mar./abr. 2014; e SANTIN, Valter Foleto. Panorama da Lei 12.846/2013 em improbidade empresarial. Consultor Jurídico, São Paulo, 4 ago. 2014. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-ago-04/valter-santin-lei-pune-improbidade-empresarial-varios-aspectos. Acesso em: 30 jan. 2022.

[5] Cf. SANTIN, Valter Foleto. Panorama da Lei 12.846/2013 em improbidade empresarial, cit..

[6] Cf. SANTIN, Valter Foleto. Panorama da Lei 12.846/2013 em improbidade empresarial, cit..

[7] MARQUES, Cláudia Lima. Diálogo das fontes. In: MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman V.; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 122-123.

[8] MARQUES, Cláudia Lima. O “diálogo das fontes” como método da nova teoria geral do direito: um tributo a Erik Jayme. In: MARQUES, Cláudia Lima (Coord.). Diálogo das fontes: do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro. São Paulo: Revista dos  Tribunais, 2012. p. 21-22, 30-31; e MIRAGEM, Bruno. “Eppur si muove”: diálogo das fontes como método de interpretação sistemática no direito brasileiro. In: MARQUES, Cláudia Lima (Coord.). Diálogo das fontes: do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 74-75.

[9] MARQUES, Cláudia Lima. Diálogo das fontes, cit., p. 128.

[10] “Art. 9º. […]

 I - receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel, ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público;

 II - perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a aquisição, permuta ou locação de bem móvel ou imóvel, ou a contratação de serviços pelas entidades referidas no art. 1° por preço superior ao valor de mercado;

 III - perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a alienação, permuta ou locação de bem público ou o fornecimento de serviço por ente estatal por preço inferior ao valor de mercado;

 […]

 V - receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para tolerar a exploração ou a prática de jogos de azar, de lenocínio, de narcotráfico, de contrabando, de usura ou de qualquer outra atividade ilícita, ou aceitar promessa de tal vantagem;

 VI - receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indireta, para fazer declaração falsa sobre qualquer dado técnico que envolva obras públicas ou qualquer outro serviço ou sobre quantidade, peso, medida, qualidade ou característica de mercadorias ou bens fornecidos a qualquer das entidades referidas no art. 1º desta Lei; (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)

 […]

 VIII - aceitar emprego, comissão ou exercer atividade de consultoria ou assessoramento para pessoa física ou jurídica que tenha interesse suscetível de ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público, durante a atividade;

 IX - perceber vantagem econômica para intermediar a liberação ou aplicação de verba pública de qualquer natureza;

 X - receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indiretamente, para omitir ato de ofício, providência ou declaração a que esteja obrigado; […]”

[11] “Art. 5º. […]

 I - prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada; […]”

[12] “Art. 10. […]

 VIII - frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente, acarretando perda patrimonial efetiva; (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021) […]

 Art. 11. […]

 V - frustrar, em ofensa à imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de benefício próprio, direto ou indireto, ou de terceiros; (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021) […]”

[13] “Art. 5º. […]

 IV - no tocante a licitações e contratos:

a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público;

b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público;

 […]

d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente; […]”

 

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