Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi
A delimitação da competência dos órgãos jurisdicionais é questão imprescindível para que os direitos dos cidadãos sejam adequadamente tutelados, eis que a organização do processo judiciário demanda que as causas dotadas de pontos em comum sejam agrupadas em um mesmo juízo e maneira legal, abstrata, prévia e coerente,[1] tanto para a efetivação de um ideal de segurança jurídica, quanto para a condução célere e sistemática do processo.
Em se tratando de discussões ligadas à seara do direito previdenciário, faz-se necessário que os estudos em torno da competência jurisdicional sejam amoldados às peculiaridades do “conflito previdenciário”[2] firmado entre o segurado do sistema previdenciário e o INSS, tais como: (i) a assimetria entre os litigantes, uma vez que, usualmente, o indivíduo que recorre à seguridade social se encontra em posição de vulnerabilidade social, econômica ou informacional, ao passo que a autarquia previdenciária possui ampla autonomia financeira e administrativa para formular as suas pretensões em juízo;[3] (ii) o caráter fundamental do direito de acesso à previdência social, porquanto o benefício previdenciário é “intimamente ligado às noções de mínimo existencial e dignidade da pessoa humana”, razão pela qual dizer que o sujeito não detém o benefício vindicado é o mesmo que “recusar-lhe o gozo de direito fundamental aos meios de subsistência em situação de adversidade”;[4] e (iii) a necessária celeridade que deve ser conferida ao trâmite processual, mormente porque o litigante que busca a tutela previdenciária encontra-se presumidamente acometido por alguns dos riscos sociais definidos no ordenamento jurídico (v.g.: idade avançada, doença, invalidez), de modo que a tardança na implantação do benefício na via judicial poderá implicar severos danos existenciais ao pleiteante do benefício.[5]
Com efeito, as regras de competência afetas à matéria previdenciária estão disciplinadas principalmente no artigo 109, inciso I e § 3º, da Constituição Federal. De acordo com o referido dispositivo, compete aos juízes federais julgar todas as causas em que “a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes”. Levando em consideração que os benefícios previdenciários são demandados perante o Instituto Nacional do Seguro Social – autarquia constituída pela União –, aduz-se que a presença desta pessoa jurídica em específico necessariamente atrai a competência da Justiça Federal para o julgamento do feito.
Nada obstante, forçoso reconhecer que a regra supramencionada comporta específicas exceções, em virtude de expressas ressalvas propostas pelo legislador constituinte, como a descrita no art. 109, § 3º da Constituição, o qual, em sua atual redação, autoriza o julgamento de lides previdenciárias pela Justiça Estadual, nos seguintes termos:
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
[...]
§3º Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual.
Como bem pondera Gonçalves de Castro Mendes, na proposição supracitada, o constituinte permitiu a transferência interina de competência originária a Justiça Federal ao magistrado estadual,[6] o qual passaria a exercer atividade cognitiva de maneira delegada. Noutros termos, em situações nas quais o segurado não detém acesso direto às instâncias federais, é-lhe facultada à possibilidade de ajuizar o pedido de concessão judicial do benefício previdenciário perante a Justiça Estadual localizada em seu próprio domicílio.
Entretanto, nos meandros da Reforma Previdenciária (PEC 06/2019), em tramitação no Senado, despontou a possibilidade de modificação dos contornos da competência delegada acima citada, condicionando o seu exercício mediante critérios territoriais.
O art. 3º da novel Lei no 13.876/2019 se antecipou ao movimento constitucional e realizou alterações no inciso III do art. 15 da Lei no 5.010/1966, trazendo a seguinte disposição:
Art. 3º. O art. 15 da Lei no 5.010, de 30 de maio de 1966, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 15. Quando a Comarca não for sede de Vara Federal, poderão ser processadas e julgadas na Justiça Estadual:
............................................................
III – as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado e que se referirem a benefícios de natureza pecuniária, quando a Comarca de domicílio do segurado estiver localizada a mais de 70 km (setenta quilômetros) de Município de sede de Vara Federal;
...........................................................
§1º Sem prejuízo do disposto no art. 42 desta Lei e no parágrafo único do art. 237 da Lei no13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), poderão os Juízes e os auxiliares da Justiça Federal praticar atos e diligências processuais no território de qualquer Município abrangido pela seção, subseção ou circunscrição da respectiva Vara Federal.
§2º Caberá ao respectivo Tribunal Regional Federal indicar as Comarcas que se enquadram no critério de distância previsto no inciso III do caput deste artigo.”
Veja-se que, a partir das modificações empreendidas pela Lei 13.876/2019, é esquadrinhado um cenário no qual a competência material do juízo federal assume natureza absoluta ou relativa a depender da localização do domicílio do potencial litigante.
Em síntese: se o segurado reside em localidade afastada a mais de 70 (setenta) quilômetros de Município de sede de Vara Federal, é-lhe facultado ajuizar demanda previdenciária tanto perante a Justiça Federal, quanto perante a Justiça Estadual pertencente ao seu domicílio, não lhe sendo imposto um único caminho a ser seguido;[7] no entanto, caso o domicílio do segurado seja localizado a menos de 70 (setenta) quilômetros de Município detentor de sede de Vara Federal, obriga-se o segurado a ajuizar o seu pleito perante a instância federal.
A par das intenções carreadas pelo legislador na reforma legislativa, forçoso reconhecer, porém, que parte significativa do arcabouço normativo responsável por ampliar o acesso à previdência social resta comprometida. Isso porque o uso difuso e incondicionado da competência delegada – previsto na atual redação do art. 109, § 3º, da Constituição – possui o claro intuito de ampliar o “acesso à jurisdição”, mediante a aplicação de medidas relacionadas à “descentralização do poder judiciário”.
Ocorre que, ante a amplidão do território pátrio, bem como em face da precariedade socioeconômica de grande parcela da população, são cediças as obstruções materiais que os segurados da previdência social possuem para serem atendidos em instâncias federais – sobretudo aqueles que residem nas regiões interioranas. Bem anotam Rothenburg e Ramos que a distância entre o domicílio do segurado e o juízo competente para o julgamento da sua demanda previdenciária – que, na atual dinâmica legal, pode distar até consideráveis 69 quilômetros de sua residência – é fator insitamente ligado à cláusula do “acesso à justiça”, visto que “a deficiência e o custo do transporte, mais o tempo de deslocamento, bem como a dificuldade de obtenção e compreensão de informações por parte de muitas das pessoas, constituem verdadeiros obstáculos”.[8]
Além disso, é certo que a viabilização do acesso à justiça demanda não apenas a mera descrição formal do direito abstrato de ação em lei;[9] mais do que isso, torna-se necessária a “remoção dos obstáculos econômicos e sociais que impedem o efetivo acesso à jurisdição”.[10]
Nada obstante, em viés oposto às afirmações supramencionadas, as mudanças trazidas pela Lei 13.876/2019 acarretam nítidas obstruções ao acesso à tutela previdenciária. É que o legislador, ao esquadrinhar um possível cenário em que a única comarca competente para o julgamento da demanda poderá distar até 69 quilômetros do seu domicílio, agrava a já intrincada assimetria material e processual costumeiramente vislumbrada entre o INSS e o requerente do benefício previdenciário. De um lado, a autarquia previdenciária está vinculada aos poderes da União, possuindo autonomia administrativa e financeira para realizar todos os atos postulatórios e instrutórios em juízo, bem como para suportar o “ônus do tempo processual”; de outro, o segurado, somado às usuais dificuldades financeiras e sociais que lhe acometem, também terá de arcar com os custos necessários para a locomoção ao juízo federal mais próximo de sua residência, o qual, a rigor, poderá distar até consideráveis 69 (sessenta e nove) quilômetros de sua residência. Perfaz-se um nítido contexto de obstrução do acesso à justiça, bem delineado por Capelletti e Garth:
Pessoas ou organizações que possuam recursos financeiros consideráveis a serem utilizados têm vantagens óbvias ao propor ou defender demandas. Em primeiro lugar, elas podem pagar para litigar. Podem, além disso, suportar as delongas do litígio. Cada uma dessas capacidades, em mãos de uma única das partes, pode ser uma arma poderosa; e a ameaça de litígio torna-se tanto plausível quanto efetiva. De modo similar, uma das partes pode ser capaz de fazer gastos maiores que a outra e, como resultado, apresentar seus argumentos de maneira mais eficiente.[11]
Por tudo isso, necessário asseverar que a novel legislação estabelece óbices materiais e econômicos de acesso à justiça, ocasionando, consequentemente, nítido retrocesso na efetivação dos direitos fundamentais sociais e na construção de uma ordem social pautada pelo ideal de justiça social.
Em situações como esta, assume notória importância a retomada do “princípio da proporcionalidade”, mais especificamente em sua vertente da “proibição da proteção insuficiente”. A par das intenções que carrearam a reforma legislativa em discussão, é necessário consignar que o afastamento da tutela da Justiça Estadual dos segurados que não se enquadram na hipótese do art. 15, III, da Lei 13.876/2019 implica uma omissão do poder público em proteger de forma adequada e suficiente o direito fundamental à previdência social, o que atrairia a incidência do princípio da proporcionalidade para barrar, desta feita, a proteção insuficiente deste magnânimo direito social.[12]
A pretensão da Reforma Previdenciária e da Lei 13.876/2019 esbarra na garantia de amplo acesso à justiça, prevista no art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal, bem como na cláusula do devido processo legal (inciso LV do mesmo dispositivo constitucional), que também assegura um procedimento adequado às vicissitudes cotidianas do segurado – o que pode ser interpretado também pelo aspecto de acesso presencial à jurisdição mais próxima do domicílio do segurado.
Mais, a Lei 13.876/2019 esbarra na atual redação (literal) do art. 109, § 3º, da Constituição Federal, que hoje prevê a possibilidade plena de ajuizamento das ações previdenciárias na Justiça do Estado, no modelo de jurisdição delegada, quando inexistente Vara Federal na Comarca.
O que a Lei 13.876/2019 pretende é uma espécie de antecipação de constitucionalidade, visto que essa regra relativa à competência jurisdicional só será válida a partir da futura redação art. 109, § 3º, da Constituição Federal, que será dada tão somente com a promulgação da Reforma Previdenciária.
Portanto, entende-se que a nova redação conferida ao art. 15, inciso III, da Lei 5.010/66, pela Lei 13.876/2019 é inadequada, sobretudo por restringir o acesso à jurisdição previdenciária.
Notas e Referências
ARENHART, Sérgio Cruz; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. vol. 2. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
CAPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. NORTHFLEET, Ellen Gracie. 1. ed. Porto Alegre: Fabris, 1988.
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. vol. 1. 20. ed. Salvador: Juspodivm, 2018.
MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Competência cível da Justiça Federal; 4. ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012.
ROTHENBURG, Walter Claudius; RAMOS, Cristiane Ferreira Gomes. Varas distritais e competência previdenciária ou assistencial: o direito fundamental de acesso à justiça. Revista de Processo, São Paulo, vol. 252, fev./2016, versão eletrônica.
SAVARIS, José Antônio. Direito Processual Previdenciário. 7. ed. Curitiba, Alteridade, 2018.
SERAU JR., Marco Aurélio. Curso de direito processual previdenciário. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
SERAU JR., Marco Aurélio. Resolução do conflito previdenciário e direitos fundamentais. Doutorado – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014.
SILVA, José Afonso da. Acesso à justiça e cidadania. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, vol. 216, abr./1999. Disponível em: http/bibliotecadigitalfgv.br/ojs/índex.php/rda/article/view/47351/45365. Acessado em: 06.10.2019.
SOARES JÚNIOR, Jair. Apontamentos Sobre a Teoria do Custo dos Direitos – Críticas ao argumento da reserva do possível e limites à influência do econômico sobre o jurídico na aplicação dos direitos de proteção social. In: Previdência Social: em busca da Justiça Social. Org: FOLMAN, Melissa; SERAU JR., Marco Aurélio. 1. ed. São Paulo: LTr, 2015.
[1] ARENHART, Sérgio Cruz; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. vol. 2. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 56.
[2] O conceito de “conflito previdenciário” pode ser assim resumido: “O conflito previdenciário se dá com a contraposição de comportamentos opostos em relação ao modo, critérios e exigências para a concessão de benefícios previdenciário e assistencial. De modo mais amplo, trata-se de conflito relativo à divergência quanto à própria concepção de cobertura previdenciária a ser adotada pelo Direito brasileiro” (SERAU JR., Marco Aurélio. Resolução do conflito previdenciário e direitos fundamentais. Doutorado – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014, p. 70).
[3] Nesse sentido, vale conferir: SAVARIS, José Antônio. Direito Processual Previdenciário. 7. ed. Curitiba, Alteridade, 2018, p. 60-62.
[4] Idem. Ibidem, p. 56-57.
[5] “[...] a natureza da relação jurídica discutida nesse específico tipo de demanda (concernente à sobrevivência/subsistência humana), bem como, em muitos casos, a consideração sobre os legitimados a figurar no pólo ativo (pessoas com elevada idade), revelam a necessidade de assegurar-se, ao Processo Judicial Previdenciário, sua específica celeridade, independentemente da garantia real concedida a todos os processos judiciais e administrativos” (SERAU JR., Marco Aurélio. Curso de direito processual previdenciário. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 59).
[6] MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Competência cível da Justiça Federal; 4. ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012.
[7] No escólio da doutrina de Fredie Didier Jr. em: DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. vol. 1. 20. ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 315.
[8] ROTHENBURG, Walter Claudius; RAMOS, Cristiane Ferreira Gomes. Varas distritais e competência previdenciária ou assistencial: o direito fundamental de acesso à justiça. Revista de Processo, São Paulo, vol. 252, fev./2016, versão eletrônica.
[9] Referente à “impossibilidade de exclusão de lesão ou ameaça de lesão da apreciação jurisdicional” (DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Op cit, p. 215).
[10] SILVA, José Afonso da. Acesso à justiça e cidadania. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, vol. 216, abr./1999. Disponível em: http/bibliotecadigitalfgv.br/ojs/índex.php/rda/article/view/47351/45365. Acessado em: 06.10.2019. p. 16.
[11] CAPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. NORTHFLEET, Ellen Gracie. 1. ed. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 21.
[12] É o que entabula Jair Soares Júnior, ao descrever que “o princípio da proporcionalidade pode ser concebido em [...] uma dimensão positiva, relacionado ao cumprimento de um dever de proteção adequado ou para a proibição de proteção insuficiente de algum direito fundamental – aqui entendido como um direito social, embora seja possível aplicar o princípio da proporcionalidade como proibição de proteção insuficiente também em caso de violação a direitos fundamentais de liberdade” (SOARES JÚNIOR, Jair. Apontamentos Sobre a Teoria do Custo dos Direitos – Críticas ao argumento da reserva do possível e limites à influência do econômico sobre o jurídico na aplicação dos direitos de proteção social. In: Previdência Social: em busca da Justiça Social. Org: FOLMAN, Melissa; SERAU JR., Marco Aurélio. 1. ed. São Paulo: LTr, 2015, p. 251).
Marco Aurélio Serau Junior é autor da obra Manual dos Recursos Cíveis - Teoria e Prática, 4ª edição.
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