Lavoura colérica: a crise de legitimidade da autoridade e o surgimento de “heróis” engravatados

09/02/2017

Por André De Marco – 09/02/2017

A VIDA QUE IMITA A ARTE

No conto “A biblioteca de Babel”, Jorge Luis Borges descreve uma biblioteca de tamanho indefinido, talvez infinito, onde todas suas prateleiras registram todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos ortográficos, contendo todas as informações e a história do mundo em todos os idiomas, conhecidos ou secretos. É muito presente, na obra de Borges, a ideia de que a literatura antecipa a vida – o escritor portenho afirmava que sempre chegava às coisas depois de tê-las lido.

Consideração semelhante fez Oscar Wilde: “a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”.

Fazendo um amálgama da hipótese da biblioteca de Borges e do aforismo de Wilde, é possível dizer, sem atavios, que o Direito imita a Literatura muito mais do que a Literatura imita o Direito.

Com efeito, a proposição que atravessa o presente artigo é oferecer um ponto de vista não-tradicional – no sentido da tradição dogmático-jurídica – a fim de enfatizar que o Direito, para além dos compêndios, manuais e da cultura jurídica massificada que constitui o “senso comum teórico dos juristas” (Warat), pode ser tematizado a partir de textos literários.

A VIDA

No começo deste mês, atendi a uma cerimônia (ou liturgia?) de entrega de carteiras da OAB, em São Paulo, para prestigiar alguns amigos. A solenidade teve início com a apresentação dos membros da mesa e a execução do hino nacional. Após o ritual patriótico, algumas surpresas:

- há mais cargos na OAB e em suas subseções e comissões do que sonha(va) a minha filosofia;

- aparentemente, há alguma relação entre o exercício da advocacia e religião, note-se a presença de um reverendo da cadetral anglicana na mesa;

- a advocacia é a profissão mais antiga da humanidade, haja vista que Jesus advogou para Maria (palavras da presidente da mesa).

Nenhuma delas, porém, aos pés do que disse o reverendo: “O progresso que estamos vendo agora no Brasil existe graças ao Direito. E vocês, advogados, é que vão fazer a diferença... afinal, Sergio Moro começou como advogado”.

Reverendo, progresso, Sergio Moro – pergunto-me se a Biblioteca de Babel foi de fato capaz de prever essa mixórdia.

Estou convencido – não confundir com “livre convencimento” – de que, por trás da produção e cultivo de “heróis” nacionais engravatados – caso da maior celebridade justiceirista dos últimos tempos, elo de coesão da República, o juiz de piso Sergio Moro – empana-se o fenômeno da crise da legitimidade da autoridade, não apenas do Direito, mas da lei simbólica, como um todo.

A ARTE 

Para refletir sobre o tema, evocarei duas obras máximas da literatura brasileira contemporânea, ambas escritas pelo ex-agricultor comercial Raduan Nassar: o romance Lavoura arcaica (1975) e a novela Um copo de cólera (1978).

Lavoura arcaica narra a história de André, um jovem do meio rural que abandona a lavoura para viver em uma pequena cidade e, com isso, livrar-se do aguaceiro pesado simbolizado por sua família, tanto pelo jugo do pai, quanto pela pulsão incestuosa que sente pela irmã Ana. Seu irmão mais velho, Pedro, consegue persuadi-lo a retornar ao lar, numa reedição da parábola do filho pródigo, o que desencadeará um final trágico (no sentido dos gregos).

“O corpo antes da roupa”, afirma o chacareiro, protagonista de Um copo de cólera, ao narrar o começo de um dia após uma noite de sexo com sua mulher. A partir de um pretexto banal – a destruição de uma cerca viva em seu quintal por formigas –, nada consegue impedir o protagonista de entornar o copo de cólera que lhe é servido.

Os protagonistas das duas obras, cada qual a seu modo, pretendem sujeitar seus interlocutores à sua potencialidade humana em colapso, na intenção de restaurá-la a partir de uma regressão a um paraíso infantil onde a sexualidade possa ser vivida irrestritamente – um tempo anterior aos interditos, “um tempo sem áreas de penumbra – à zona escura dos pecados, sim-sim, não-não, vindo da parte do demônio toda mancha de imprecisão”.

Essa tentativa de regresso, descobrir-se-á, está destinada à ruína, e viceja tão-só na retórica dos narradores, a partir da manipulação da linguagem, afetada por elipses, circunlóquios, ambiguidades, dissimulações e artifícios característicos de uma pulsão transgressora sem limites.

DESEJO, FUNÇÃO PATERNA E AUTORIDADE

A figura do Pai constitui a base da teoria psicanalítica e perpassa grande parte da obra de Freud e Lacan, para citar apenas o seu criador e o mais influente autor que o sucedeu. Ao contrário do que se pode intuir, “Pai” em psicanálise não corresponde a noção de genitor e ultrapassa o significado social do termo. É conceito relacionado ao simbolismo, à linguagem e à constituição do funcionamento psíquico – talvez por isso muitos autores prefiram a expressão “função paterna”.

No texto Totem e tabu (1913), Freud elabora o mito do assassinato do pai da horda primeva, narrativa que fundamenta sua teoria acerca do nascimento da cultura. A “morte do pai originário” executada pelos seus filhos, que ao mesmo tempo o temiam e o amavam, é, para Freud, o evento fundante que dá origem ao sujeito e à linguagem, a partir da culpa e de sua decorrência imediata: a Lei. A Lei assoma, portanto, como correlata do Pai, constituindo-se em instância terceira (autoridade) que tem como função demarcar os limites do gozo para cada sujeito (Lacan).

Daí o conceito-chave da psicanálise: o Complexo de Édipo, correspondente ao interdito ao desejo incestuoso inconsciente. Dito de outro modo: o desejo se estrutura a partir da interdição imposta pela Lei, a qual indica para o sujeito que algo lhe falta e, concomitantemente, se lhe proíbe o alcance. Lévi-Strauss afirma, a partir de Freud, que a proibição do incesto é o marco fundador de qualquer cultura, regra sem a qual o ser humano limitar-se-ia a só pertencer à natureza.

Nas palavras do filósofo e psicanalista Mário Fleig:

A relação com o pai, sua função nomeante, é essencial, na perspectiva psicanalítica, para apreendermos que a fisiologia do desejo humano é feita de modo que uma renúncia ao gozo imediato e absoluto é necessária para poder desejar. O sujeito deve consentir em perder o gozo do objeto inteiramente satisfatório, metaforizado pela mãe. É em função da proibição do incesto que se organiza o que Lacan denomina o caráter fundamentalmente decepcionante da ordem simbólica. Deste modo, o pai se apresenta como aquele que ordenará essa renúncia ao gozo desmedido e absoluto, na medida em que ele está em jogo apenas como representante da Lei da linguagem. É a linguagem e suas leis que tornam o incesto impossível. Para habitar o mundo mediatizado pelas palavras, o sujeito teve de consentir em perder o gozo imediato das coisas.

Desse modo, o que conferia solidez ao modelo tradicional de autoridade era a suposição da existência de uma figura (o Pai) que firmava a referência de um ponto fixo exógeno, prescrevendo um lugar de exceção e assegurando uma diferença de lugares (de fala). Esse lugar de exterioridade fundamentava a legitimidade das instâncias que indicavam os limites do gozo. Com a destruição deste lugar, o sujeito passa a crer que é possível desimpedir-se de qualquer diferença de lugares, resistindo com violência a qualquer hegemonia que não seja aquela que se preserva por sua única e exclusiva vontade.

Nesse sentido, a característica da crise de legitimidade da autoridade é a supressão da distância entre o gozo e o desejo, isto é, o ascenso de um ideal de gozar do objeto satisfatório imediata e irrestritamente, semeando uma substituição violenta da autoridade tradicional (o Pai, a “Lei da linguagem”) por uma autoridade individual (o sujeito) fundada em uma linguagem privada (o desejo).

LAVOURA COLÉRICA: O LUGAR DA AUTORIDADE

Essas questões, em maior ou menor grau, desdobram-se tanto no romance como na novela de Raduan Nassar. O que se extrai de ambas as obras é que, à parte a importância da emancipação, da paixão, da “loucura”, a vida sem autoridade, a vida sem restrição, enfim, a vida sem Lei é inconcebível e implica absolutismo e, no limite, obliteração da realidade, a qual passa a ser reduzida a estados de experiência interiores e pessoais do sujeito – e novamente a literatura oferece melhor ilustração, basta pensarmos em personagens como Narciso, Macbeth, Werther, Dorian Gray, Sherlock Holmes, Gaston, Scarlett O’Hara...

... André, de Lavoura arcaica. O jovem protagonista contrapõe à autoridade do patriarca sua violência transgressora, fundada no monopólio da narração, privilégio que tem um papel determinante: referindo seus atos a partir de um fluxo de consciência a posteriori, livre das balizas injungidas pelo pai – o representante da Lei –, manipula a linguagem para incorporar aos enunciados o modo como gostaria que o pretérito tivesse ocorrido, circunstância imprescindível ao gozo, uma vez que este se manifesta a partir da linguagem.

Nesse sentido, a união lúbrica do protagonista com sua irmã Ana é ressonância da ternura excessiva de sua mãe na infância, daí a associação do momento de lassitude pós-coito com o do nascimento (“nu como vim ao mundo”) e com o da “hora em que as mães embalam os filhos, soprando-lhes ternas fantasias”.

No capítulo final de Um copo de cólera, por seu turno, o chacareiro parece abrir mão de sua posição privilegiada de narrador, quando, prostrado ao chão em posição fetal e amparado por empregados como um menino choroso, outorga à mulher a voz narrativa, numa espécie de simulacro da condição de criança pré-interdito, que, antes da aquisição da linguagem, só existe no plano do discurso enquanto narração da mãe.

E O QUE TÊM COM ISSO O REVERENDO E SERGIO MORO?

Resposta ao intertítulo: tudo.

O Direito é uma linguagem coletiva (pública) democraticamente produzida pelo Poder Legislativo – a premissa é elementar, porém pornograficamente ignorada nesses tempos sombrios de “morte do Pai”.

A Lei, por assim dizer, desnuda uma Ana a dançar com meneios sugestivos e magnetizantes, mas, ao mesmo tempo, nos proíbe de tocá-la; a Lei serve um copo de cólera, mas, ao mesmo tempo, nos proíbe de entorná-lo. É a regra do jogo: para habitar o mundo mediatizado pelo Direito, temos de consentir em perder o gozo imediato das coisas – isto se chama interdição da Lei.

A falta de inderdição da Lei cultiva uma lavoura colérica e nos arrasta para uma crise – a crise de legitimidade da autoridade – cujas sequelas são nocivas. Com a evaporação do lugar de autoridade, desabrocha uma lacuna, cuja tendência, ao menos no Brasil, é ser preenchida: i) por um desejo de regresso a uma autoridade pretérita (veja-se como se tornaram comuns os brados coléricos pela volta do regime militar); e/ou ii) por “heróis” nacionais engravatados, justiceiros populistas capazes de “fintar” a Lei tal Garrincha fintava o adversário, e alcançar um “bem maior” – ocasião em que a vontade de um sujeito isolado vale mais do que toda uma Constituição.

“Heróis” para os quais não tem a menor relevância a questão relativa à forma de implementação de diligências; “heróis” que divulgam interceptações telefônicas e autorizam conduções coercitivas ao arrepio da lei; “heróis” que fazem uso de despacho para emitir opiniões políticas; “heróis” que perguntam além da denúncia, afinal, “heróis” que não precisam obedecer ao regramento genérico destinado aos casos comuns.

O juiz de primeira instância Sergio Moro é hoje o maior desses “heróis”. Mas não porque é ele Sergio Moro em sua individualidade, e sim porque passa a metaforizar a nova economia psíquica de supressão da autoridade – o Direito democraticamente produzido – e sua decorrente substituição por uma nova: a vontade (desejo) de um sujeito transgressor, que quer gozar livre e imediatamente.

E, como se não bastasse, quer gozar não apenas nos autos, mas também na imprensa, como recentemente, quando fez distribuir uma nota pública elogiando o sorteio do ministro Edson Fachin para a relatoria dos processos relativos à operação “lava jato”. Costuma-se dizer que falta bom senso. Com o perdão do trocadilho, o buraco é mais embaixo: falta interdição.

De “volta” à vida, concluo, portanto, que aquilo que o reverendo chama de “progresso” diz respeito à destruição da autoridade – grande ironia, considere-se que a religião é sabidamente uma das maiores afetadas por essa crise de legitimidade.

Assim, prezado reverendo – e sintam-se importunadas todas as pessoas de bem que com ele concordam –, o que quero dizer é que, sem o perdão da analogia, vossa homenagem ao juiz Sergio Moro, aos ouvidos de quem respeita a autoridade do Direito, não tem muita diferença do que se, durante um culto em sua igreja, eu pedisse a palavra para dizer que Deus não existe. Portanto, é como dizem por aí: menos, reverendo, menos. Menos, pessoas de bem. Menos, Sergio Moro.

Enquanto André que fui nomeado, digo que, se quisermos levar o Direito a sério, é preciso saber esconder a nudez e deixar Ana em paz.

Ps.: E não à toa teve início este artigo com Borges. Muito menos com sua biblioteca babélica. O fato, leitor, é que não sou o primeiro autor deste texto – longe disso –, sou um mero coletor, um importunador do engenho alheio, a quem coube meramente unir os pontos – um Pierre Menard sem calibre, apenas com vontade. Para o argumento original, remeto ao artigo publicado por Estevão Azevedo no Jornal Racunho: http://rascunho.com.br/o-grande-inimigo/.


André Balbo. . André De Marco é graduando em Direito na USP, escritor, redator-chefe e curador da revista Lavoura. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Bookman // Foto de: João Lavinha // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/joaolavinha/12154329826

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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