Kelsen, Lyra e a bunda estatal

13/03/2015

 

Por Aramis Nassif -  12/03/2015

A inspiração para escrever sobre o tema não foi despertada apenas pelo desconforto ideológico que aflige o advogado criminalista no momento de conhecer a sentença (aqui está a contaminação do ideólogo), mormente quando ela poderia tornar-se a consagração de uma injustiça, mas inspirado, sim, pelo desabafo de Lyra Filho:

“Nos compêndios tradicionais, o boi jurídico vira carne de vaca metafísica (o jusnaturalismo) ou aparece na rabada (positivista), que só aproveita o seu apêndice posterior e inferior. O positivismo só vê, no direito, a bunda estatal!”. [2]

A imagem irreverente, mas sempre interessante do sociólogo, e pela experiência pessoal do autor estimula uma busca inicial na teoria kelseniana para tentar identificar a posição do magistrado no grave momento de sentenciar.

As normas jurídicas, na conhecida afirmação de Hans Kelsen[3], postam-se em posição de subordinação e de coordenação, integrando a chamada hierarquia das normas jurídicas:  as superiores fundamentam e dão o suporte de legalidade às demais, que, no mesmo nível, cumprem revelar harmonia no sentido de que se integram, formando a unidade. Obviamente que, para o presente estudo, interessa a interpretação eleita para a decisão final.

A interpretação é universal, e não simples reserva dos operadores jurídicos, especialmente do magistrado que, na assunção decisória, deve lembrar que qualquer indivíduo, para ter uma conduta de acordo com a lei, também precisaria interpretá-la e entender seu significado, do que se poderia apreender a existência de duas modalidades de interpretação, ou seja, a técnica (realizada na atuação jurídica), e a privada (como condição jurídica do cidadão).

A autonomização do sistema normativo jurídico surge a partir das lições de Kelsen, sempre defendendo que a aplicação do Direito é o progresso do escalão hierarquicamente superior.

A relação entre os escalões de ordem jurídica é de vinculação e determinação. Porém não é completa, no sentido de que a norma do superior não pode vincular tudo o que diz respeito à sentença através da qual é aplicada. Esta determina os limites e define a moldura da norma, ou melhor, a do escalão inferior.

O Direito é o conhecimento administrado pelos seus operadores, os mesmos que ficaram encarregados de estabelecer um discurso original: o da neutralidade. Estava concebida a idéia e a ilusão de que juristas agiam vinculados e iluminados pelos códigos, e, assim, postavam-se neutros na produção de atos jurídicos, mormente quando era entre todos, o mais importante: a sentença.

Veja-se a conclusão:

"Se a decisão jurisdicional já obteve força de Direito, se tornou impossível substituir tal decisão por uma outra, porque já existe o Estado de - o que significa que a controvérsia foi resolvida definitivamente por um Tribunal de última instância - então a opinião de que o condenado era inocente não tem nenhum significado jurídico, pois, como já assinalamos, a formulação correta da regra de Direito não é ”se um sujeito cometeu um ilícito, um órgão deve aplicar uma sanção ao culpado”,  mas, se o órgão competente apurou na devida forma que um sujeito cometeu um ilícito, um órgão deve aplicar uma sanção a tal sujeito. (Kelsen, 1952, p. 138).

As formas de aplicação jurídica deveriam estar emolduradas no sistema jurídico, que é o limite da ´vontade´ do legislador. Não há apenas uma opção de sua aplicação individual no caso concreto, mas várias, ainda dentro da moldura, que se poderia dizer ´interpretação´.

Kelsen conduzia à necessidade de uma terceira via hermenêutica, que não envolvesse os tradicionais meios de interpretação e de argumentação, pois elas estavam destituídas de valor, vez que poderiam conduzir a soluções opostas, bem assim afastava como meio de solucionar problemas a apreciação de interesses.

No seu entendimento, a interpretação resulta das várias possibilidades que a norma autoriza, sem definir qual dos interesses seria o mais valioso.

A necessidade de conhecimento destoante do molde legal, não há propriamente Direito positivado, mas a incidência de normas de outro caráter, como as morais, juízos sociais de valores como o interesse público, interesse comum, etc, que seriam - no máximo - normas metajurídicas.

A interpretação realizada pelo aplicador jurídico modifica Direito no sentido geral (de lege ferenda), por isto é chamada interpretação autêntica quando assume forma de lei ou de um futuro tratado jurídico, o que significa dizer que ela (a interpretação autêntica), é a realizada pelo órgão aplicador do Direito, mesmo quando utilizada para um único caso ou quando é aplicada apenas uma sanção. De ver que, conforme ensina Lenio Luis Streck, chamando Eros Grau, “...o texto, preceito ou enunciado normativo é alográfico. Não se completa com o sentido que lhe imprime o legislador. Somente estará completo quando o sentido que ele expressa é produzido pelo intérprete, como nova forma de expressão. Assim, o sentido expressado pelo texto já é algo novo, diferente do texto. É a norma. A interpretação do direito faz a conexão entre o aspecto geral do texto normativo e a sua aplicação particular: ou seja, opera a sua inserção no mundo da vida. As normas resultam sempre da interpretação. E a ordem jurídica, em seu valor histórico concreto, é um conjunto de interpretações, ou seja, um conjunto de normas. O conjunto das disposições, (textos, enunciados), é uma ordem jurídica apenas potencialmente, é um conjunto de possibilidades, um conjunto de normas potenciais. O significado (ou seja, a norma) é o resultado da tarefa interpretativa...“ [4]

Vinculado à tipologia legal, é inevitável que o magistrado desempenhe o papel de intérprete da lei penal como corolário lógico do exercício jurisdicional, para sua concreta aplicação. É sua função primordial e, neste mister, ensinava Ruggiero que “interpretar significa procurar o sentido e o valor da norma para medir a sua extensão precisa e avaliar sua eficiência concreta sobre as relações jurídicas, não apenas no que respeita às normas de direito consuetudinário e às que são claras e não ambíguas”[5].

O jurista italiano defende que é inviável aceitar passivamente o axioma in claris cessat interpretatio, fazendo o juiz acomodar-se à literalidade do texto, que se lhe desafia a relatividade da norma, vez que, mesmo certa e clara, pode estar carregada de ambiguidade, inclusive quando gerada por força de interesses e motivos de uma exigência política e sociológica de determinado momento histórico, passa, com o decurso do tempo e alteralidade social, ser contraditória pela conduta dos cidadãos. Pode ser exemplo do afirmado, o fato de que contravenção do jogo do bicho não é vista como infração pela comunidade, mas, cuidam os banqueiros e apostadores (a preocupação do estudo é com estes) de manterem-no na clandestinidade, ainda que, hoje, não mais tão discretamente. Este comportamento contraditório (ou ambíguo), do indivíduo tem que ser levado em conta na interpretação da conduta típica.

Ao comentar o brocardo latino (in claris cessat interpretatio), Carrara escreveu que “..é afirmativa que não possui valor científico algum, porque o conceito de clareza é relativo, o que a um parece evidente, antolha-se obscuro e dúbio a outro, por ser este menos atilado e culto, ou por examinar o texto sob um prisma diferente ou diversa orientação”.  A interpretação procura a voluntas legis, não a voluntas legislatoris.

Ensinava o clássico autor, em lição que não perde a atualidade, que a “... procura da vontade atual da lei não a sua vontade no momento da aplicação, não se trata, pois, de uma vontade do passado, mas de uma vontade sempre presente enquanto a lei não cessa de vigorar. É dizer que a lei, uma vez formada, se destaca do legislador ganhando consistência autônoma e, mais do que isso, torna-se ´entidade viva', que não apenas corpo inanimado, ou mero fato histórico fechado e absolutamente rígido no sentido de se evitar que o intérprete se restrinja tão­ só e unicamente ao critério filológico de interpretação”[6].

Santo Contardo Ferrini, adiantou-se no tempo e proclamou que:

“Os autores de uma determinada lei visam prover determinadas necessidades com uma ou mais normas, que deverão se enquadrar no sistema do direito vigente. Nenhuma norma está isolada; deve cada uma adaptar-se ao sistema, modificando-se a si própria e modificando outras. Tudo isso excede qualquer previsão humana ordinária. As necessidades da vida são variadas, mutáveis, complexas, de modo que raramente pode, quem dita a norma, ter delas notícias completas e, portanto, impossível prever as várias modificações que o conteúdo da norma ou do instituto deve sofrer, para adaptar-se ao sistema, pois, além do mais deve recordar-se que, variando as outras panes do sistema pelo contínuo desenvolvimento do direito, é inevitável que, por reflexo, mude também o conteúdo daquelas normas e daqueles institutos, que, entretanto, não são diretamente objeto de variação. As disposições da lei uma vez editadas, são, pois, dentro de certos limites, independentes do legislador; desenvolvem-se, evoluem, ampliam-se e restringem-se, por vias próprias e por força intrínseca"[7]

Mas, para a teoria clássica do Direito, não é possível, através da interpretação, criar Direito novo. Kelsen repudia qualquer juízo de valor, para ele pode-se até utilizar de outros meios para interpretar a normas, mas não são científicas e não geram segurança.

Enfim, o formalismo kelseniano já apresentava uma reflexão sobre o Direito como sistema interno ou intrínseco, cuja logicidade é inerente ao objeto formal, qual seja, residente no ordenamento jurídico, da qual não poderia afastar-se a sentença.

Inafastável a mitificação, ela é a própria consagração secular, cujos argumentos só podem ser enfrentados com uma reação moderna, consciente, culta e corajosa. Exige-se uma operação iconoclasta que é - e será -, quase sempre mal compreendida, ainda mais quando o magistrado colore ideológica e politicamente sua sentença.

Mais se explica de algumas vocações severamente punitivas de juízes, para além do que foi exposto, que Kelsen não tratou objetiva e diretamente da atuação acusatória, vez que envolvida esta na consequência da norma (típica ou processual) quando aplicada concretamente.

Não cansamos da visão despertada por Lyra Filho? Chega de olhar o traseiro horroroso desse boi!


Notas e Referências:

[2] LYRA FILHO, Roberto. Porque estudar direito, hoje? In Direito Achado na Rua. Ed. Universidade de Brasília, 1987, p. 27.

[3] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 6 ed , 1998

[4]   STRECK, Lenio Luis. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 18.

[5]  RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil São Paulo: Bookseller Editora. v. l., 1999.

[6] CARRARA, Francesco. Programa del Curso de Derecho Criminal. Parte General, vol. II, § 845. Buenos Aires: Ed. Depalma, 1944, p. 215.

[7] FERRINI, Contardo. Direito Penal Romano, In: Enciclopedia de Pessina. Roma, 1967, p. 317.

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Nassif 2Aramis Nassif é Desembargador Aposentado (TJRS); Mestre em Direito, professor  nos cursos de Especialização em Ciências Penais (UNIRITTER; UPF), autor de livros e articulista em temas processuais penais e direito penal.

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Imagem ilustrativa do post: Foto por Natália Barroca

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