Kafka e a cultura processual penal – preparos... (Parte 1)

24/08/2015

Por Augusto Jobim - 24/08/2015

Ele é como um homem que esquia no cascalho, para provar, com cambalhotas e arranhões, àqueles que pretendem que o cascalho é neve, que não se trata, realmente de outra coisa senão cascalho.

Como um homem que fica sentado diante de um prato vazio e maneja obstinadamente a colher, para provar, àqueles que consideram o prato cheio, que ele está realmente vazio.

Como um homem que traduz os sulcos nas rochas como se fossem hieróglifos, para, àqueles que costumam, com base nisso, dizer que as pedras do mundo têm sentido, que os sulcos, na verdade, são apenas sulcos.

Günther Anders

Os encontros e as apropriações da obra kafkiana com o direito, ainda mais com Der Prozeß, podem levantar bibliotecas. Infinitas conbinações já foram feitas, talvez sintoma do ruído ou do desencaixe que a obra provoca com sua normalidade assustadora, estranheza de um realismo radical que prontamente parece merecer a docilização das letras jurídicas.

Porém, um encontro com Kafka por certo sempre deverá ser um local traumático, muito mais quando, como é o caso desta sequência de textos, propõe-se refeletir sobre este livro (inacabado) já tão comentado. A quantidade de tinta já gasta ressalta a briga pelo discurso de Kafka, por sua correta interpretação e pela busca de monopólio de sentido. Correto Foucault[1] quando não se espantava em ver o discurso não apenas como aquilo que manifesta o desejo, mas o objeto do próprio; não apenas aquilo que traduz as lutas e contradições, mas aquilo pelo que se luta, poder do qual queremos nos apoderar. Nada a toa o campo jurídico ter destaque nesta cena.

Só há uma maneira, dizia Heller, de não assumir a posição de intérprete d´O Processo: não lê-lo[2]. O que não significa que devemos produzir um texto com ares policiais à cata de significado, bem ao gosto de algum inquisidor que suplicia o texto em busca da verdade. Interessante seria não cair num mero comentário ou recitação, colocados na insolúvel situação de dizer pela primeira vez aquilo que já fora dito ou repetir incansavelmente aquilo que não havia jamais sido dito.[3]

Arriscar algumas palavras sobre Kafka é trazê-lo consigo, não imaginando o que ao final possa ocorrer; lançar-se num permanente ensaio, mais afeito ao aspecto fragmentário de sua escrita, para além das bordas da letra. Perceber que o texto da arte é o próprio texto da vida, e é por isso que não há necessidade de se recorrer às intenções declaradas do autor para decifrar o enigma e compreender o que quisera dizer. Assim se dá a postura com o que de Kafka importa, ou seja, o desejo de transitar pelos interstícios – no lugar crítico, de crise, da crítica, da construção e do critério – que a leitura permite. É o colocar-se para além puramente da consagrada função-autor, alertada por Foucault,[4] onde não se fique preso, controlado, organizado por mecanismos/procedimentos que podam e têm a função de abortar o caráter de acontecimento aleatório do discurso, de inconstante, de arredio e indomável que o faz uma temível materialidade.

Historicamente, a escritura fora sempre carregada de acontecimentos (im)possíveis antes de ser presa nalgum circuito de propriedade e classificação; como se pudesse resumi-la numa unidade de escrita, num certo modo de ser que imputa ao discurso um foco de coerência – um modo de existência de funcionamento do discurso no interior de uma sociedade.

Lembremos que, alertados por Agamben,[5] o lugar da poesia não está nem no texto nem no autor (ou no leitor mesmo), mas simplesmente no gesto, em que o autor e leitor se põem em jogo no texto, irrevogavelmente e sem reservas – encontro ético! Enfim, o desafio permanente estará em tentar pairar no inexpresso nos atos de expressão. Ver a escrita como lugar de abertura, um ter lugar que sujeito e objeto se (trans)formem um através do outro e em função um do outro. Falar em Kafka, de Kafka, sobre Kafka, ainda mais desde o Processo, enfim, parece retratar certa ousadia sempre a se insinuar de forma sub-reptícia, a se pensar com o texto de maneira transversal e permanentemente envolvido por ele.


Notas e Referências:

[1] FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de Dezembro de 1970. 14ª ed.. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 10.

[2] HELLER, Erich. Kafka. Tradução de James Machado. São Paulo: Editora Cultrix/Editora da USP, s.d., p.73.

[3] FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso…,  p. 25.

[4] FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 6ª ed.. Tradução de António Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro. Águeda: Veja, 2002, pp. 46 e 47.

[5] AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução de Luísa Feijó. Lisboa: Edições Cotovia, 2006, p. 91.

* Reflexões ampliadas do texto publicado em BOMBASSARO, Luiz Carlos; VIDAL, Silvina Paula (orgs.). Latinidades da América Latina: enfoques filosóficos e culturais. São Paulo: Hucitec, 2010, pp. 511-530.


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Augusto Jobim do Amaral é Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e Estudos Internacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra (Portugal); Doutor, Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS; Professor da Faculdade de Direito da PUCRS.

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Imagem Ilustrativa do Post: Franz Kafka // Foto de: Crhistiaan Tonnis // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/christiaan_tonnis/3588150103 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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