Kafka e a cultura processual penal (parte 3) – o (necessário) choque inquisitivo...

07/09/2015

Por Augusto Jobim - 07/09/2015

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Um escritório de informação sobre a condição humana (Adorno), com seus personagens que permanecem modelos no anonimato de uma existência vazia (Arendt); ou o poder superior inalcançável de um mundo mecânico, onde tudo funcionalmente se conecta alheio em princípio ao entendimento humano; toda uma imensa capilaridade de exercícios de poder que tão bem faz a paródia do ridículo e do sem sentido. A sentença é já é de antemão proferida, seja de forma explícita como na Colônia Penal ou implicitamente como no Processo. É a mais pura tematização da lei que perdeu todo o seu sentido de proteção do débil da relação (investigado-réu-condenado).

A questão do poder é aqui fundamental – Foucault ressonância de Kafka? Tal entendido como instância não localizável num domínio estrito abarcável por simples hierarquia, mas como estrutura com imagens de um sistema ramificado múltiplo. Ele circula, não se possui e não se localiza meramente num sujeito ou coisa, mas atravessa os corpos sujeitando-os, disciplinando-os, como um feixe de relações dinâmicas, necessariamente instáveis, sempre em movimento.[1]

Dirá em certa altura o pintor Titorelli à K.: “Tudo pertence ao tribunal”,[2] denotando que destas relações de poder, para além da instituição, nada escapa. E se temos na Colônia Penal uma justiça pré-panóptica, como assevera Lima,[3] e n´O Processo um viés pós-panóptico, é porque não temos mais (em tese) o espetáculo do suplício; não obstante, presente já a economia política sobre os corpos – uma nova tecnologia da punição – que se transmuta e “vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal, provocando várias conseqüências: deixa o campo da percepção quase diária e entra no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade (…); a mecânica exemplar da punição muda as engrenagens (…), a justiça não mais assume publicamente a parte da violência que está ligada a seu exercício.[4]

Em ambas as histórias, a lógica do Estado Policial é a mesma – novelas irmãs escritas no mesmo ano de 1914[5] –, nas duas existe uma máquina autônoma, “um aparelho singular”, de caráter totêmico poder-se-á dizer, “tão fechada em si mesmo, que o seu sucessor [o próximo comandante da Colônia] (…) não poderia mudar nada. (…) além disso a máquina ainda funciona e produz sozinha seus efeitos. Funciona mesmo quando está a sós neste vale”, sentencia no conto o oficial ao explorador.[6] De certa forma, o tribunal confunde-se com o devir de um espaço carceral. Terminada a tragédia, inicia-se a comédia.

É o mais puro sentimento de impotência frente a um avassalador sistema inquisidor que K. se debate; melhor, quiçá consegue insinuar uma desaprovação, tamanha a docilidade que tomou conta de seu corpo. Inútil menos a espera do que a própria ação, numa situação que vem em avalanche desde a primeira linha, em que não há qualquer dúvida sobre a realidade, não há o menor vestígio de confusão, tudo é chocante e (in)acreditavelmente normal.

Futilidade do resistir. Sob um enfadonho esquema extremamente complicado do tribunal, para além da estrutura podre, corrupta, em que a promiscuidade impera; onde, afinal, o que prepondera é aquilo que acontece ao lado, personagens extrajurídicos são integrados pouco a pouco ao poder de punir evitando que o processo seja uma simples punição legal. Aí os ajudantes, sempre presentes no universo de Kafka, que compõem um aparelho eficiente e se combinam como peças elementares de burocracia.

Vejam-se os duos e os trios frequentes n`O Processo e nas demais obras, que tendem a disseminação de séries e engrenagens disciplinares. Desta forma, o processo surge de todos os lados, esgueira-se sem ponto de convergência. Max Brod confirma: “tornar-se-ia impossível acabar o romance; poderia prolongar-se até o infinito.”[7] Assim caracterizam-se os pensamentos totalitários, não só os nazismos, fascismos ou stalinismos que Kafka já via bater à porta, mas quaisquer mentalidades que suprima o Outro em razão do Mesmo. O processo, suma, como expressão de um espaço serializado, vazio de densidade vital.

A máquina nebulosa d´O Processomáquina de influenciar, máquina de contaminação”,[8] é uma aceleração do real, cômica a certo ponto, exatamente por solapar a construção sistemática de uma lógica levada ao extremo e justificada em si: lógica autoritária. O Processo esgarça a linguagem punitiva, multiplica um labirinto vertiginoso, no qual nos põe mareados, precisamente para, segundo Oliveira, “esgotá-la [a linguagem punitiva] estancando fragmentos de sua lógica para transformá-la no absurdo cotidiano da lógica do próprio julgamento.”[9]

Processo-infame. Infâmia tal qual outro fragmento da filosofia menor que Foucault realiza num texto chamado “La Vie des Hommes Infâmes”. Aqui dá-se, como em Kafka, a tomada do poder pelo ordinário da vida, afinal K., em sua comum existência, é permeado por algo que “incita, suscita, produz; não é apenas olho e ouvido, faz agir e faz falar.”[10] Esta rede fina, disseminada nas instituições de justiça, no que se refere ao processo penal, carrega uma referência: a mentalidade inquisitorial. Racionalidade persecutória que, fundada no medo e na apropriação do diferente, permeia o senso comum inclusive do jurista mais atento.

Processo penal brasileiro, infame este, surpreendido num código de processo penal de 41, épocas ditatoriais nem um pouco saudosas (salvo para alguns); reprodução desleixada do Codice Rocco (Código Rocco-Manzini da Itália fascista de 1930), em que não será simplismo atrelá-lo às forças ordenadoras do Code d´instruction criminelle (Código Napoleônico) de 1808 (em vigor em 1811).

Por fim, nunca será demais voltar ao radical. Já o fizeram vários e inúmeras vezes.[11] Nem por isso perde importância perceber o modelo inquisitivo como “maior engenho jurídico que o mundo conheceu e conhece.[12] Em linhas esquemáticas, nem por isso menos rigorosas, segundo Cordero, paulatinamente erguem-se os mastodontes, mas é com o Concílio de Latrão (1215) que a revolução se anuncia organicamente. Antes houve o Concílio de Verona (1184) e a união de Lúcio III com o Imperador Frederico Barbaroxa; a Bula Vergentis in Senium (1199) de Inocêncio III (a qual preparava o terreno para a repressão canônica e as modificações processuais equiparando heresia e crime de lesa majestade). Ainda o estabelecimento das bases jurídicas efetivas realizadas pelo Constitutio Excomuniamus (1231) do Papa Gregório IX (ano em que se institui o Tribunal da Inquisição); entretanto é com a Bula Ad extirpanda de Inocêncio IV (1252) que a tortura é institucionalizada como meio de prova e o aparato assume figuras definitivas.[13]

O que conta a partir daí é o resultado. De espectador o magistrado torna-se amplo protagonista e o investigado, culpado ou não, sabe algo importante (nesta semiótica, tudo se torna importante) e está obrigado a dizê-lo. De um elemento impassível na contenda, torna-se um ilimitado órgão ativo na alimentação do aparato, que se move a partir do estímulo de fluxos verbais, “onde concebida uma hipótese decorrem-se cabalas indutivas, a ausência de contraditório abre um vazio ao pensamento paranóico, tramas rebuscadas a eclipsar os fatos”[14] Desta forma, como um rito fatigante e ausente de qualquer formalidade, é que o catedrático italiano trilha a identificação deste estilo: privilegia-se as imputações em razão da prova num explícito exercício de “psicoscopia”.[15]

O imputado torna-se um mero objeto da investigação, daí a desnecessidade, desde esta construção “pura”, de partes processuais. Tudo se resume a buscar sinais do delito e fazê-lo dizer, mirando a extração de uma verdade histórica.[16] A “bulimia inquisitória” empreendida, como dito, portava-se indiferente a qualquer limite legal, tinha apenas que multiplicar “os fluxos verbais: necessário que o imputado fale; o processo tornada sonda psíquica”.[17]

O auge da dinâmica é alcançado com o Code Louis XIV Ordonannance criminelle de 1670. Tal sistema ao que se propunha era perfeito. Enriquecido pelo tecnicismo inquisitivo, sua obsessão chegava a uma pureza quase metafísica. Este monumento do engenho inquisitorial, frise-se, era um modelo de partes: a ação pública competia aos procuradores do rei (Tit. III, art. 8) – um processo com autor, que novamente se diga. Vê-se desde já, para além dos ensinamentos embusteiros, o caráter secundário de diferenciação acerca da existência de partes quanto ao modelo acusatório.[18] Com a revolução francesa, a antiga maquinaria experimentou algumas reformas, entretanto manteve-se a figura do juiz-ator, ou seja, a instrução seguia a lógica do magistrado trabalhando sozinho, fora de todo debate na elaboração da matéria processual, arquétipo este de fundamental influência nos modelos europeus continentais seguintes.

Mesmo que eliminada entre 1790 e 1800, a Ordenança Criminal Francesa é reencarnada em 1808 no Code d´instruction criminelle – Código Napoleônico, fonte que irão remontar os sistemas processuais do XIX e XX. Nomenclatura esta “instrução” que nada tinha referência ao debate diante de jurados, por exemplo, mas desenhava os atos realizados pelo juiz instrutor. Era o procedimento dividido em duas fases: instrução e debate; havendo, não obstante, uma escancarada desigualdade de peso efetivo entre elas. De um momento ao outro se passava da obscuridade à luz plena, da inquisição ao espetáculo acusatório, tudo isto travestido em aparente igualdade.[19]

Predominantemente inquisitivo na primeira fase: escrita, secreta, dominada pela acusação pública, excluída a participação do imputado e de sua defesa; com uma fase sucessiva de processamento oral, pública e adversativa, entretanto destinada a converter-se numa mera repetição da primeira etapa. Assim surgiram os monstruosos sistemas mistos compostos de larga instrução em perfeito estilo inquisitório; um preço razoável a ser pago pelos defensores da Ordonannance criminelle, pois os debates seriam até suportáveis em contrapartida à extensa restauração instrutória.

Necessário ao menos arrancar daqui, quer dizer, deste ponto de irreversibilidade da epistemologia processual penal em diante, e caracterizar o sistema inquisitório a partir da gestão da prova confiada ao magistrado[20]: figura que vai ao encalço dos fatos, mesmo que não colocados na acusação ou guiado por sua visão particular do fato. Princípio este que desmascara o ideário de um processo misto colocado pela dogmática tradicional. Se não se pode falar em sistemas mistos por paradoxo lógico, na medida em que todos hoje o são em maior ou menor grau,[21] doutra parte, que não se esqueça radicamente que o modo de inspiração napoleônica foi a conjugação de outros dois e não é um terceiro sistema.[22] Em suma, estamos às voltas com uma estrutura plenamente inquisitorial. Mais. Segundo Cordero, vivenciamos traços permanentes de um ambiente de “garantismo criptoinquisitório”[23]. Assim, para entendê-lo, faz-se mister observar o fato de que ´misto´ significa ser, na essência, inquisitório.

Em nosso sistema, com um arremedo de ônus da prova (nem sequer até hoje a aceitação de uma correta carga probatória assumimos como uníssona) a verdade é que o juiz está autorizado a sair à cata da prova, denunciando o caráter inquisitorial do nosso sistema processual. Eis aí o núcleo do sistema, e a sua adequada forma de identificação: novamente diz-se, a gestão da prova. E enquanto encamparmos reformas parciais, como que em jogral (todavia, em línguas diferentes), cada um desenvolvendo um pedaço, sem uma unidade acusatória de abordagem, tal como uma colcha de retalhos, seguiremos encenando a tragicomédia processual penal brasileira.


Notas e Referências: 

[1] Cf. Michel Foucault no elucidativo subcapítulo “Método”, do primeiro volume de História da Sexualidade. Rio de Janeiro: Graal, 1990, p. 89-91.

[2] KAFKA, Franz. O Processo…, p. 183.

[3] LIMA, Luiz Costa. Limites da Voz…, p. 107.

[4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 19ª ed.. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, p. 13.

[5] Kafka, depois de terminado o noivado com Felice Bauer, em julho de 1914, busca uma certa libertação com a escrita d´O Processo, isso já na segunda semana de agosto; entretanto, como é frequente no autor, interrompe-o em outubro do mesmo ano e inicia a Colônia Penal, terminada entre a primeira e a segunda semanas do mês. Cf. LIMA, Luiz Costa. Limites da Voz…, p. 82.

[6] KAFKA, Franz. Na Colônia Penal. Tradução de Modesto Carone. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, pp. 05, 08 e 30.

[7] GODINHO, Rafael. Prefácio à DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka…, p. 14.

[8] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka…, p. 26.

[9] OLIVEIRA, Salete. Tribunal, fragmento mínimo, palavra infame…, p. 119.

[10] FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: O que é um autor?, p. 123.

[11] Resumo deste trajeto, desde fontes rigorosas, está no nosso “Política da Prova e Cultura Punitiva: a governabilidade inquisitiva do processo penal brasileiro contemporâneo” (São Paulo: Almedina, 2014).

[12] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. O papel do novo juiz no processo penal. In: Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de (coord.). Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 18.

[13] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. O papel do novo juiz no processo penal…, p. 21-23.

[14] CORDERO, Franco. Procedura penale. 7 ed. Milano: Giuffrè, 2003, p. 25.

[15] CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 18.

[16] CORDERO. Franco. Procedura penale…, p. 594-595.

[17] CORDERO, Franco. Procedura penale…, p. 373.

[18] CORDERO, Franco. Procedura penale…, p. 29-30. Por certo, que se diga: não estamos a desdenhar o caráter essencial da separação entre juiz e acusação – consagrada fórmula de Bulgaro: Iudicium est actus trium personarum: iudicis; actoris et rei – como um importante elemento constitutivo do modelo teórico acusatório, na medida em que representa a condição para a terzeità – imparcialidade – e é um pressuposto para que a carga da prova recaia sobre a acusação.

[19] CORDERO. Franco. Procedura penale…, p. 66.

[20] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. O papel do novo juiz no processo penal…, p. 24.

[21] Na experiência prática, hoje em dia ambos os modelos teóricos, acusatório e inquisitivo, por óbvio, nunca aparecem em estado puro, apenas mesclados com outros. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón…, p. 564.

[22] MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. O papel do novo juiz no processo penal…, p. 39.

[23] CORDERO. Franco. Procedura penale…, p. 284.


Sem título-23

Augusto Jobim do Amaral é Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e Estudos Internacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra (Portugal); Doutor, Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS; Professor da Faculdade de Direito da PUCRS.

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Imagem Ilustrativa do Post: 11 Franz Kafka 02 // Foto de: Willie Sturges // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/williesturges/6880978673

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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