Por Luiz Ferri de Barros - 01/09/2015
O Processo e Na Colônia Penal são escritos de Franz Kafka diretamente relacionados ao campo jurídico. No início do século 20, quando publicados, eram atuais e proféticos; hoje o autor integra a galeria dos grandes mestres da literatura universal.
Nessas obras, Kafka, que era formado em Direito, tece críticas à justiça, aos tribunais e a todos os agentes da lei, desde os funcionários burocráticos subalternos aos juízes e aos advogados, denunciando os procedimentos e a ética judiciária a tal nível de crueza que não cabe aqui reproduzir.
O escritor judeu de nacionalidade tcheca e que escrevia em alemão é fundamental à boa formação humanista, sem a qual o sentido da justiça parece vago. Mais do que no caso de outros autores, compreendê-lo exige considerar seu universo psicológico e social, em que se destacam, de um lado, a relação com a figura dominadora e opressiva de seu pai e, de outro, a herança histórica e cultural da comunidade judaica em Praga no início dos anos 1900.
Em O Processo, o personagem K. é detido – porém não é preso, para que siga cumprindo suas obrigações profissionais – e contra ele instaura-se um processo do qual não consegue se desvencilhar, pelo contrário: a cada ação ou atitude que toma, o processo se agrava por absurdos e labirínticos desvãos. K. não sabe de que é acusado, porém a primeira frase do livro revela sua inocência: “Alguém devia ter caluniado a Joseph K., pois sem que ele tivesse feito qualquer mal foi detido certa manhã”. Progressivamente K. incorpora a acusação à sua própria identidade. Independentemente da pena que se prevê, o processo é o próprio castigo.
Na Colônia Penal, com crueza ainda maior, a lógica do processo encontra a melhor síntese: “A culpa é sempre indubitável”. Trata-se de uma exata inversão de princípios universais do Direito? Sem dúvida. Resta saber se também corresponde ou não a uma perfeita inversão da prática do Direito. Em Na Colônia Penal a pena inexorável é a morte, e o delito somente será conhecido pelo acusado durante a execução que é levada a cabo por uma máquina, de forma automática, brutal e pretensamente asséptica.
Para além da crítica ao Direito, aqui a serviço da denúncia política e social – o escritor anteviu os horrores do nazismo e de todos os regimes totalitários modernos –, nesses trabalhos e no conjunto de sua obra Kafka retrata o isolamento e a solidão do homem, seu desespero e angústia frente a forças do destino que desconhece e não controla. Ele trata da natureza humana e sua miséria, trazendo à luz a culpa universal que todos carregamos, alguns sequer sabendo disto e amiúde projetando a própria culpa a terceiros.
A literatura de Kafka remete à ideia de metáforas. Porém o escritor, que muito meditou sobre sua própria escrita, deplorava metáforas. Para ele, “as metáforas são uma das coisas que me fazem desesperar da literatura” (Diário de 1921, apud Deleuse e Gattari). Não sendo metáforas da realidade, suas obras seriam metamorfoses? Eis uma chave para tentar entendê-lo. Para Kafka todos os elementos de suas criações são antes metamorfoses da realidade do que metáforas que buscassem retratá-la. Assim é o seu uso peculiar do idioma alemão – o alemão de Praga no início do século 20, impregnado pelo tcheco e pelo iídiche –, assim é o universo deformado de suas histórias, absurdas nos personagens, ambientes e narrativas.
“A metamorfose é o contrário da metáfora”, afirmam Deleuse e Gattari ao discorrerem sobre o estilo de Kafka. Não se trata de representar a realidade mediante símbolos. Trata-se de calcar sobre a realidade deformações que realçam a intensidade daquilo que se busca retratar. Em suma, metamorfoseando-se a realidade, ainda assim ela não deixa de ser real.
Essa vertente permite identificações de Kafka com o expressionismo, um movimento de vanguarda com raízes no século 19 e que no início do século 20 ganha força e influencia a literatura, a pintura, a arquitetura, o cinema. Os expressionistas privilegiavam a “expressão” da realidade a partir de suas percepções internas, subjetivas, utilizando-se de distorções que acentuavam os traços marcantes de sua visão do mundo.
Ao ver a morte aproximar-se, Kafka escreveu A Metamorfose, sua fantástica novela obituária, em que o personagem Gregor Samsa um belo dia acorda e percebe-se transformado num gigantesco inseto. A Metamorfose foi escrita quando Kafka percebeu os primeiros sintomas da tuberculose que o mataria. O grande artista não retratou a morte por meio de uma alegoria, uma metáfora. Para ele, morrer foi a metamorfose suprema e horripilante de uma vida dominada pelo absurdo do incognoscível.
Kafka é assim: por mais absurdo e fantástico, no fundo ele é inteiramente realista. Por isto, até, qualificamos de kafkiano nunca algo que seja irreal, pelo contrário, mas algo que embora contradiga nossa vã expectativa de racionalidade é brutalmente real, de forma contundente, intensa e irredutível.
Uma causa kafkiana
Manuscritos originais de Kafka são alvo de litígio judicial entre a Biblioteca Nacional de Israel e o Arquivo de Literatura Alemã, segundo Judith Butler, professora da Universidade de Berkeley. Alguns argumentos desse processo foram discutidos por ela no Museu Britânico em fevereiro de 2011, na conferência intitulada Who Owns Kafka? – Quem é dono de Kafka?. (Nota do autor: desconheço o andamento atual do litígio). O processo originou-se com a morte de Esther Hoffe, aos 101 anos de idade, em 2007. Esther guardava em cofre certa quantidade de manuscritos do escritor que passaram a ser considerados bens culturais, instalando-se a disputa quanto ao pertencimento judaico (israelense) ou alemão de tais bens, em mal disfarçado espetáculo de descabido nacionalismo mesclado a interesses puramente comerciais.
Kafka, que morreu em 1924, legou a Max Brod, o melhor amigo, seus livros e escritos originais, com a instrução de que fossem destruídos após sua morte. Brod não honrou a vontade final do escritor. Publicou parte das obras inéditas, entre elas O Processo, O Castelo e Amerika, nos anos subsequentes. E não destruiu os originais – nem esses nem outros, quiçá ainda inéditos.
Em 1939, durante a Segunda Guerra, Brod fugiu para a Palestina e parte dos manuscritos foram parar na Biblioteca Bodleian, em Oxford. Porém outros ele conservou até a morte, em 1968, quando o legado passou a Esther Hoffe, sua secretária e amante.
Vinte anos depois, em 1988, Esther vendeu em leilão por 2 milhões de dólares os originais de O Processo. E, como Brod, conservou os demais até sua morte, ocorrida, como já vimos, em 2007, aos 101 anos de idade, a partir do que se instalou esse processo verdadeiramente kafkiano para disputar o legado de K., hoje um cidadão do mundo.
Duas filhas de Esther Hoffe, Eva e Ruth, são também parte no processo, litigando com as bibliotecas. Elas alegam não ser preciso inventariar tais documentos, cujo valor pode ser simplesmente determinado pelo peso.
Representando Eva e Ruth, um dos advogados do espólio de Hoffe esclarece: “Se chegarmos a um acordo, o material será oferecido à venda como uma única peça, num pacote. E será vendido pelo peso. Há um quilo de papéis aqui. Quem fizer a melhor oferta poderá aproximar-se e examinar o material”.
Para caracterizar-se como totalmente kafkiana, falta a esta causa apenas jamais terminar, pois o infindável é um dos atributos que hoje associamos ao adjetivo kafkiano. Esse processo, onde se disputa propriedade, naturalmente é diferente daquele do livro O Processo, onde se trata de uma culpa indefinida. No entanto, em essência, aqui vemos novamente K. esmagado pela lógica do absurdo, de um lado por instituições de longos tentáculos, de outro lado pela onipresente ambição humana. Quase 100 anos após sua morte, a vontade final de Kafka não foi cumprida.
Afinal, qual a culpa de K.? – pois seu castigo segue o curso de mais esse processo.
Originalmente publicado na Revista da OAB/CAASP. São Paulo, outubro de 2013.
Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.
Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.
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