Justificando o injustificável - O Ministério Público, o dilema de Jano e os ansiolíticos

04/04/2015

Por Henrique Zumak Moreira - 04/04/2015

Há um famoso ditado popular que afirma que se alguém disser 100 (cem) vezes uma mentira, ela se torna verdade para o locutor. O problema é que essa “verdade” autocriada, só se torna real para uma única pessoa: o próprio locutor. Nesse artigo, serão criticadas as defesas a respeito das medidas anticorrupção propostas pelo Ministério Público e a atual demonstração de desequilíbrio interno da instituição enquanto ansiosamente se auto digladia entre acusador-fiscalizador.

O Ministério Público é instituição primordial ao Estado Democrático e Social de Direito, não só por sua função fiscalizadora e essencial ao check and balances, assim como porque muitas vezes substitui processualmente inúmeras vítimas que são violentamente inseridas em relações jurídicas criadas via fato social denominado crime; de acordo com a Constituição (art. 127), incumbe-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Se por um lado, via acusação, trabalha para trazer luz aos fatos tidos como extremamente reprováveis pela sociedade e, por meio da busca pela tutela jurisdicional, tenciona trazer espécie de rearmonia social in loco (se é que isso é possível numa lógica criminológica); por outro turno precisa impreterivelmente se apegar a todas as formas de garantias, como forma de evitar as arbitrariedades que jurou combater, defendendo a sociedade de suas próprias mazelas.

A instituição e seus membros não são nem podem ser símbolos incorruptíveis, mas devem ser sinônimo de equilíbrio, aptos a separar o joio do trigo, com o poder de levar a julgamento os responsáveis pela lesão a direitos/bem jurídicos alheios. Afinal, acusação não significa lavar as mãos tal qual Pôncio Pilatos, deixando ao juiz o crivo e toda a responsabilidade de “fazer a justiça”; em verdade, a responsabilidade de submeter alguém a um processo penal é extremamente grave/séria, eis que as dores de submeter alguém a um julgamento penal não podem ser tidas como mero dissabor ao qual todos estamos sujeitos.

A questão é: como controlar a fúria do acusador com a tranquilidade de um fiscalizador? Como equilibrar tamanha oscilação enquanto a sociedade esperneia pelo fim da sensação de impunidade?

A resposta tem se mostrado assustadora. Muitas vezes esquecem-se, instituição (voz coletiva via liderança) e membros (opiniões públicas, acadêmicas e atuação forense), de que exercem incessantemente ambas as funções (acusação-fiscalização), e não uma ou outra, quando lhe é mais conveniente. O discurso utilizado nos últimos tempos trouxe para o Parquet o preocupante paradigma populista de paladinos da justiça.

Para quem? Para uma jovem sociedade democrática hipocritamente assustada com diversos escândalos de corrupção divulgados diariamente nos canais de comunicação e conivente com seus jeitinhos idiossincráticos, pelo que é facilmente manipulada por heróis que se levantam com palavras de ordem (disfarçadas de forte distorção teleológica).

Nesse talante, no curso de históricas investigações denominadas Operação Lava Jato e Zelote, em que bilhões de reais foram subtraídos da Administração Pública, foi apresentada à mídia a solução salvadora: o famoso pacote anticorrupção do Ministério Público.

Dentre as propostas, o axioma desse excerto: a possibilidade de decretação da prisão preventiva para permitir a identificação e a localização ou assegurar a devolução do produto do crime ou seu equivalente.

E foram vistas algumas defesas viscerais das propostas que assustaram parte da comunidade jurídica (menos o MP, obviamente), a exemplo de um em especial, o qual será objeto de especial hostilização. A publicação[1] trouxe os seguintes fundamentos para a referida barbárie contida no pacote anticorrupção do Ministério Público:

1) prestígio aos ideais de justiça restaurativa;

2) impedir que o produto do crime seja utilizado para assegurar a impunidade do infrator, via custeio de defesa ou possibilitando meios de fuga;

3) estrangular a capacidade financeira do criminoso e impedir que usufrua os lucros do crime;

4) não se está cobrando a adimplência de crédito líquido, certo e exigível;

5) o alvo da medida é, exclusivamente, o produto do crime ou o seu equivalente;

6) a exigência do trânsito em julgado da sentença penal condenatória para só então adotar medidas eficazes para localizar bens ou evitar sua dissipação é absolutamente ineficiente e sem qualquer eficácia;

7) os percentuais de ressarcimento dos danos causados pelas infrações penais, no Brasil, são absolutamente insignificantes

Antes, breve parêntese. Mídia e Ministério Público se empenharam nos movimentos sociais de junho de 2013 a fim de trazer a sociedade “para o colo” da instituição, numa forte toada contra a impunidade da famigerada PEC 37. A maioria das ruas que ostentava cartazes não tinha a menor ideia do que estava dizendo; de tudo, só ficou uma coisa: desde então o Ministério Público se tornou a solução para o Brasil.

O tempo passou e mais uma vez a superpoderosa instituição propõe, pelo mesmo discurso contra a impunidade, a violação da Constituição e de Tratados Internacionais. Tanto brigaram para manter seu poder de investigação, e em suas propostas admitem que não conseguem lidar com a própria ansiedade – a despeito de lhes ser totalmente garantida a prerrogativa de ação controlada durante as investigações – de forma tal que precisam de subterfúgios para convalidar previamente suas violações à legislação, ainda que tenham toda a estrutura de uma instituição (e das Polícias que os apoiam) em seu favor.

O caminho para a punição não pode se tornar mais fácil, sob pena de retornarmos às ordálias (esse é o mais fácil dos caminhos). O processo ainda existe, e o Ministério Público é composto de seres humanos, em que o erro sempre é factível. Não se trata de discurso pró impunidade, é preciso retirar a distorção criada de que a absolvição de um réu significa uma derrota para o Estado.

Justamente pelo fato de o Ministério Público ter dupla função, no processo penal não há partes vitoriosas, há sempre dores, que podem ser mais longas ou mais curtas a depender do resultado do processo. A absolvição não é uma vitória do réu, mas simplesmente a retirada de um fardo que, seja por que razões forem, estavam injustamente sobre seus ombros.

Os fins não podem justificar os meios, muito menos podem se criar meios mais curtos para tais fins. Absolutamente todas as propostas feitas passam por encurtamento tendencioso e desnecessário de caminho, sendo que poderiam ser substituídas por única solução: organização dos trabalhos.

Explico.

As grandes operações costumam prolongar durante a fase inicial de investigação muitos meses ou até anos, isso é normal na prática forense. Nesse período, milhares de horas de diálogo são interceptadas e, normalmente, essa é exclusiva base para o estopim da operação, quando se realizam as prisões e buscas e apreensões. Não se vê campana, infiltração de agentes, escuta ambiental, reunião de gravações de vídeo monitoramento e etc. Aguarda-se ansiosamente aquela frase mal(-)dita para se correr atrás do aumento da população carcerária.

Raramente há prévia análise criteriosa e minuciosa dos sigilos fiscal e bancário dos investigados e seus parentes (os quais ainda são a maioria dos destinatários da “ocultação” de bens), raramente se analisam as movimentações financeiras das empresas em que eles figuram como sócios, raramente se há uma investigação profunda sobre a realidade patrimonial imobiliária e mobiliária dos investigados, raramente as ações de cooperação jurídicas internacionais são realizadas no sigilo das investigações e etc.

O usual é, prende-se e arma-se uma “confusão”: imprensa, inúmeras petições de advogados, partes, e a atividade investigativa passará a encontrar muito mais obstáculos do que haveria se houvesse um controle prévio total sobre os fatos criminosos e a completa realidade patrimonial dos investigados (seja a que transita, seja a imobilizada).

O problema não está nas ações que os investigados/réus tomam após terem ciência de que estão sob o jugo do Estado, uma vez que é exatamente isso que se espera deles – todos o ser humano é imbuído do instinto de sobrevivência, e aqui se inclui a preservação “escusa” do patrimônio perseguido. Evita-se isso com paciência, organização e controle prévio ao estopim, não depois.

O processo permite isso ao Ministério Público: existem inúmeras cautelares que satisfazem esse anseio, tal qual sequestro, arresto e etc. Não há nenhum artigo no Código de Processo Penal que diga que para a aferição completa do patrimônio seja necessário o trânsito em julgado, isso se resume a estelionato intelectual populista – as providências assecuratórias existem justamente para o contrário.

Não se precisa agir com impulsividade e salvaguardar todo o patrimônio logo que descoberto, precisa-se monitorar constantemente e agir coordenadamente para atingir eventuais objetivos de restituir vítimas lesadas ou o próprio Estado. A instituição tem sim estrutura e meios para tanto, basta querer fazê-lo; não precisa tornar as regras do jogo mais fáceis para atingir suas metas.

Soa incoerente o Ministério Público contestar a atividade de defesa, ou querer impedir a contratação de advogados (lembrando que muitos têm a absurda ideia de que as defesas criminais deveriam ser feitas exclusivamente pela Defensoria Pública, encerrando-se esse âmbito privado da advocacia). Pelo contrário, não deveriam temer o embate com os melhores defensores mais bem preparados, se simplesmente não houvesse o risco de serem encontradas brechas em seus trabalhos – mais uma vez, querem pregar a ideia de que a advocacia criminal seja um fomento à impunidade.

Por fim, como pode querer justificar o Ministério Público que uma prisão (medida máxima de um Estado contra um ser humano) se aplique tão somente em razão de uma dívida que sequer se conhece o montante; com tamanha desonestidade intelectual, somente pode-se crer que quer convencer a si próprio de suas mentiras, via repetição incessante. Lembre-se: a quem cabe o ônus de apontar e provar o montante devido? Ao próprio Ministério Público; sim, ele tem capacidade, estrutura e meios para tanto, basta fazê-lo de forma organizada.

O alvo da medida não é exclusivamente patrimonial, o alvo da prisão é um só, a pessoa humana e sua liberdade. Tal qual se está assistindo o modismo da delação premiada, quer-se prender até “fazer passarinho na gaiola cantar”; in casu, pretendem agora fazer do tal passarinho preso também máquina caça-níquel em que o jogador nela baterá até alcançar o jackpot.

Será que não foi suficiente o Pacto de San Jose da Costa Rica fazer o Supremo Tribunal Federal, via controle de convencionalidade, editar a Súmula Vinculante 25? Esqueceu-se o Parquet da vedação ao retrocesso? E o princípio pro homine, perdeu-se nos 27 (vinte e sete) anos de vigência da Constituição? Quer se pregar lei e ordem arbitrariamente, numa verdadeira tortura/extorsão estatal por dinheiro?

Estarrece a comunidade jurídica o posicionamento autodestrutivo do Ministério Público. Pretende mudar caminhos para não mais assistir a “derrotas” de seus ataques de ansiedade em Tribunais Superiores, pregando contra a atividade da advocacia e violando seus próprios fins constitucionais.  A defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis não significa assumir a faceta má de Jano, de acusador voraz que se perde em sua própria raiva ansiosa, buscando ter nossa hipócrita sociedade como seu escudo para atrocidades.

Quem deveria ser o primeiro a gritar contra violação de direitos hoje é quem mais os quer distorcer, esquecer e rasgar. Nas palavras do saudoso Chapolin Colorado: ó, e agora, quem poderá me defender?


Notas e Referências: 

[1] http://www.conjur.com.br/2015-mar-30/helio-telho-mp-prestigia-justica-restaurativa-propor-preventiva


Henrique Zumak Moreira é graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES; Pós-graduado em Ciências Criminais e Direito Penal Econômico pelo IDPE – Instituto de Direito Penal Econômico Europeu/Universidade de Coimbra; Especialista em Compliance pelo LEC – Legal Ethics and Compliance; Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e ao LEC – Legal Ethics and Compliance.


Imagem Ilustrativa do Post: Autorretrato // Foto de: Dani_vr // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/dani_vazquez/12441744064 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura