Por Eduardo Pazinato e Patrícia Otarão - 26/02/2016
Fazer “justiça com as próprias mãos” é conduta defesa e rechaçada no Código Penal brasileiro. No entanto, o não provimento eficaz, efetivo e eficiente da segurança por parte do Estado tem feito emergir, cada dia mais, os chamados “justiçamentos”. A sensação de insegurança, agudizada pelas flagrantes omissões dos órgãos competentes, dá lugar ao suposto direito de “fazer justiça”, que se reproduz como pseudo solução para o enfrentamento das violências e da criminalidade cotidianas[1], ao desabrigo das regras mais comezinhas do Estado Democrático de Direito.
Inobstante, nota-se que, a par da negligência estatal, viceja na sociedade uma cultura punitiva, que discrimina e estigmatiza determinados sujeitos por suas características identitárias e trajetórias sociais, sobretudo no espaço público. A lógica estruturalmente seletiva do sistema penal transcende as instituições de controle, posto que está presente, em maior ou menor grau, em todos(as) nós. Acossada pelo medo a sociedade sustenta o “mais do mesmo”. Mais Direito Penal e enrijecimento criminal com a ampliação do número de prisões e a supressão de direitos.
De acordo com um levantamento feito pelo sociólogo José de Souza Martins, que resultou no livro “Linchamentos – A Justiça Popular no Brasil”, ocorre em nosso país em média uma tentativa de linchamento por dia. O sociólogo afirma ainda, que nas últimas seis décadas mais de um milhão de brasileiros participaram de ações de justiçamentos[2].
O que chama a atenção nesses casos é a seletividade. Não ocorreram registros de linchamento, ou não foram publicizados, de pessoas de classe média alta, ou de “crimes de colarinho branco”. A exemplo do triste e inesquecível caso da jovem Fabiane de Jesus que foi espancada por moradores de Guarujá no litoral paulista, depois de boatos em redes sociais em que afirmavam que a mesma sequestrava crianças para utilizá-las em rituais de magia negra[3]. Ou mais recentemente, a notícia do ocorrido na cidade de São José, Santa Catarina, em que, após ter invadido uma loja, um homem foi linchado por vizinhos[4].
Entretanto, é de salientar que os justiçamentos não ocorrem apenas entre particulares, mas também com a participação de profissionais da segurança ao desabrigo do Estado Democrático de Direito, gize-se. Este é o caso de um comerciante paulistano que chegou a ficar sob a mira de uma arma de fogo por um investigador da Polícia Civil de São Paulo que reclamava a troca de um tapete (sic!)[5]. Ou então, o caso do jovem Lucas Raffainer Cousandier, na cidade de Caxias do Sul, vitimado por Policiais Militares ante a suspeita de ser um possível “criminoso”[6].
Notícias como essas são estarrecedoras, porque retomam, hodiernamente, conceitos e perspectivas teóricas criminológicas anacrônicas, reproduzidas por séculos, cristalizando, no imaginário social, perigosa e nefasta (in)equação: a de que justiça sem Direito é violação. Ora, seria apenas um problema de gestão governamental, ou a nossa opinião pública(da) instiga, cruel e sistematicamente, pré-conceitos advindos de determinadas concepções conservadoras e altamente penalizantes?
É sabido, pois, que a humanidade convive com diferentes práticas de violência. Modernamente algumas delas restaram criminalizadas como mecanismo de administração da segurança e da justiça. Todavia, ante a letalidade das violências e o caráter eminentemente seletivo do sistema penal, responsável mais pelos problemas do que pelas soluções, diga-se de passagem, cabe a nós repensar o modelo penal atual, de sorte que uma sociedade mais crítica e responsável seja capaz de encontrar outras estratégias, não violentas, de lidar com os conflitos, fomentando, no limite, uma sociabilidade democrática e uma convivência pacífica.
Notas e Referências:
[1] A esse respeito sugere-se a leitura da matéria: http://revistaforum.com.br/digital/138/justiceiros-antidemocracia-travestida-de-justica, acessada em 10 de fevereiro de 2016.
[2] Dados extraídos da Reportagem ‘Linchamentos no Brasil e a naturalização da barbárie, disponível em <http://www.revistaforum.com.br/semanal/linchamentos-no-brasil-e-a-naturalizacao-da-barbarie/>, acessada em 21 de fevereiro de 2016.
[3] Notícia disponível em: http://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2014/05/mulher-espancada-apos-boatos-em-rede-social-morre-em-guaruja-sp.html, acessada em 21 de fevereiro de 2016.
[4] A notícia está disponível em: http://dc.clicrbs.com.br/sc/noticias/noticia/2016/02/homem-morre-depois-de-ser-espancado-em-sao-jose-4980079.html, acessada em 21 de fevereiro de 2016.
[5] Sobre o assunto: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2016/02/imagens-mostram-investigador-de-policia-agredindo-comerciante-em-sp.html, acessada em 21 de fevereiro de 2016.
[6] Mais em: http://pioneiro.clicrbs.com.br/rs/geral/policia/noticia/2016/02/justica-decreta-a-prisao-de-pms-envolvidos-na-perseguicao-que-resultou-em-morte-de-jovem-em-caxias-4972899.html, acessada em 21 de fevereiro de 2016.
. Eduardo Pazinato é Advogado, Mestre em Direito (UFSC) e Doutorando em Políticas Públicas (UFRGS). Coordenador do Núcleo de Segurança Cidadã da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), onde leciona a disciplina: “Introdução à Sociologia da Segurança e da Justiça” e Diretor de Projetos Estratégicos do Instituto Fidedigna. Consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
. . Patrícia Otarão é graduanda do 10º semestre do curso de Direito da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA). . .
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