Justiça e igualdade: De onde surge o sentido do que é justo nos humanos? (Parte 2)

29/04/2015

Por Atahualpa Fernandez - 29/04/2015

El cerebro es la respuesta, no importa cuál sea la pregunta.” Anônimo

Veja a Parte I aqui

Parte II 

Também sabemos algo acerca da maneira como outros primatas se comportam neste domínio. Em 2003, Sarah Brosnan e Frans de Waal publicaram um artigo cujo impacto foi enorme: 269 citações em revistas indexadas na Web of Knowledge. A razão é fácil de compreender. Neste artigo, os autores referiam um experimento muito elegante com monos capuchinos da espécie Cebus apella. Em condições experimentais, aprendem a intercambiar fichas por comida com seus cuidadores humanos, mas se negam a fazê-lo se o trato oferecido é pior do que aquele com que se brinda a outro mono cujo intercâmbio é por ele contemplado e avaliado. Que os monos, animais inteligentes donde existam, estariam de acordo em cambiar o que não pode comer-se por guloseimas (como as uvas), cai por seu próprio peso.

Mas que alguns desses monos – o experimento se fez com fêmeas, que aprendem melhor a técnica do intercâmbio –, depois de verem que a suas companheiras lhes davam um trato mais favorável, rejeitassem com bastante frequência o câmbio é algo que abre um amplo abanico de possibilidades que pode vir a confirmar o fato de que a «virtude ilustrada da igualdade» evolucionou a partir de determinadas intuições e emoções morais inatas que compartimos com nossos ancestrais primatas.

Segundo a interpretação dada pelos autores deste experimento, o fato de que os monos estão dispostos a intercambiar fichas por comida, mas somente quando o trato é similar ao que se dá a outros indivíduos do grupo, indica que dispõem de um sentido agudo da justiça vinculada à igualdade, uma aversão a sofrer um trato desigual, e que o desejo de combater as desigualdades, especialmente as que dividem o mundo, parece não ser somente uma questão moral (a extrapolação deste experimento aos seres humanos é o jogo do ultimatum). Isto é, em condições experimentais, esses monos geram expectativas emocionais relativas à reciprocidade,  à distribuição de bens e ao intercâmbio social que lhes levem a uma situação de desigualdade ou, o que é o mesmo, a ver com desagrado a injustiça. Algo que se parece muito ao que fazem os humanos.

Em outro trabalho recente de ampla revisão de estudos sobre a moral de primatas e outros animais, Brosnan e de Waal (2014) demonstraram que as espécies cujos individuos cooperam entre si são muito sensíveis ante as desigualdades. Para esses autores há dois tipos distintos de aversão à desigualdade: a que supõe uma vantagem para o indivíduo e a que joga contra seus próprios interesses. O mais comum entre todas as espécies é protestar quando a injustiça prejudica diretamente o interesse próprio. Somente os humanos e alguns primatas, como os chimpanzés, se sentem incômodos ante uma desigualdade que lhes beneficia e incluso chegam a rechaçar o trato de favor.

Outro grupo de investigadores do Instituto de Tecnologia de Califórnia em Pasadena e do Trinity College em Dublin descobriu as áreas do cérebro humano responsáveis pelo processamento dos sentimentos de paridade, justiça e equilíbrio (E. Tricomi et al., 2010). Nessa investigação, utilizando a técnica da fMRI, o objetivo consistia em tratar de buscar o possível reflexo neurológico de diferentes valorações de situações de igualdade ou desigualdade. Em uma cadeia de experimentos, os autores do trabalho concluíram que a aversão à desigualdade tem, efetivamente, base neurológica e que, em certo modo, se acha «gravada» em nosso cérebro; quer dizer, que não se deve a outros tipos de razões de índole meramente social, senão  a uma motivação  genuína, com uma base fisiológica clara (E. Tricomi et al., 2010).

Todas essas evidências (evolutivas e neurobiológicas) parecem indicar que a mera possibilidade de aplicar uma penalização ou a simples expectativa de rechaço frente à injustiça são  formas eficazes de incrementar a cooperação: esta prospera se o castigo (ou o castigo altruísta) e a sensibilidade ante as desigualdades são possíveis e deixam de funcionar se são eliminados (P. Churchland, 2011). Também vinculam, de forma prioritária, o núcleo básico da justiça à ideia de igualdade (sobre a qual Aristóteles desenvolveu sua doutrina da justiça e que ainda hoje representa o ponto de partida de todas as reflexões sérias sobre essa questão) e à evidência de que a injustiça ou o sentido da justiça não evolucionou porque sim, senão para assegurar os benefícios que se obtêm da cooperação a largo prazo (Brosnan e de Waal, 2014; Shklar, 1990; de Waal, 2013)[4].

Isto é importante porque, da mão do castigo altruísta e do rechaço à desigualdade, o que aparece em realidade é a evidência de que os seres humanos se inclinam por natureza a castigar a injustiça, de que a disposição das pessoas para castigar aos indivíduos que mentem, enganam, roubam ou violam as normas sociais (morais ou jurídicas), inclusive quando não tenham sofrido nenhum dano ou se beneficiado pessoalmente, é parte de nossa biologia, um comportamento característico do ser humano. Se estamos dispostos a sacrificar uma parte de nosso patrimônio ou repelir a desigualdade com tal de que a equidade se imponha, isso significa que nossos instintos (sociais e morais) contêm essa particular maneira de fazer-nos sentir bem. É este sentido da justiça o que subjaz a ideia de John Rawls  acerca da capacidade para lograr compromissos por meio do véu da ignorância, propondo em termos de justiça universal, e não de interesses particulares, as regras do jogo.

Por certo que a justiça é um valor ou conceito abstrato que resulta muito difícil de definir, mais ainda se o propósito é o de buscar-lhe raízes empíricas. Não há nada físico nem tangível ao que possamos chamar «justiça». Forma parte do mundo das relações, não do mundo físico dos objetos. Mas isso mesmo sucede com qualquer constructo mental. Não há nada inerente a uma pessoa que não dependa de um cérebro que o perceba e o processe. Nosso entorno, o humano, é um mundo de relações entre cérebros e mentes. Os sentimentos morais e nossa capacidade ética derivam de nossa arquitetura cognitiva e os códigos éticos e jurídicos, por sua vez, surgiram como produtos da interação entre a biologia e a cultura.

A justiça e a moral são parte da natureza humana e estão  evolutivamente enraizados na sociabilidade dos humanos — dos primatas, caberia generalizar —, ainda que a tendência a medir cuidadosamente nossas ações frente ao que poderíamos ou deveríamos fazer na “passarela intersubjetiva” de nossas vidas seja uma característica singularmente humana; um diálogo interior que eleva o comportamento moral a um nível de abstração e autorreflexão.

Do mesmo modo, embora o processo de seleção natural não tenha especificado nossas normas e valores morais nos dotou de uma estrutura neuronal psicológica com determinadas propensões e habilidades necessárias para desenvolver uma bússola interna que tenha em conta tanto nossos próprios interesses como os interesses da comunidade em seu conjunto. Nesse aspecto, o sentido da justiça e da moral não é antitético da natureza humana senão que forma uma parte integrada da mesma. A moral e a justiça não existem mais que no cérebro do homem ao que vai dirigido e que somente ele é capaz de produzir, compreender e aplicar suas normas, princípios e valores. A estrutura dessa máquina de pensamento determina nossas possibilidades, nossas limitações e nosso caráter. Se em algum órgão se manifesta a natureza humana em todo seu esplendor é sem dúvida em nosso volumoso cérebro.

De tal modo, ignorar ou rechaçar as justificações naturalistas e neurobiológicas acerca da ética, da justiça e do direito é, sem mais, um risco que não podemos permitir-nos, para não dizer um disparate. Desde um ponto de vista científico, assumir a importância desse câmbio de paradigma gerado pelos estudos provenientes das neurociências e das demais ciências dedicadas à compreensão da natureza humana supõe uma diferença importante na imagem que temos do mundo e no modo como nos vemos a nós mesmos como espécie, condiciona as estratégias que adotamos para desenhar e regular nossos valores, nossas instituições e práticas sociais, dando por sentado que os fenômenos ou processos mentais relacionados com eles são propriedades emergentes da atividade cerebral - da natureza humana, em definitivo.

E ainda que as evidências até agora alcançadas não façam senão aranhar a superfície do que são as guias cerebrais dos juízos, da avaliação e da conduta humana, este inovador marco naturalista e neurocientífico, carregado de responsabilidade e vinculando o conhecimento científico experimental e o conhecimento humanístico, sugere novas exigências ontológicas e metodológicas para a filosofia, a teoria e a ciência do direito, um campo em que cientistas e juristas estão condenados a colaborar. Afinal, qualquer câmbio em nossa maneira de entender o cérebro afeta por força nossa concepção acerca da natureza humana, da justiça, da moral e do direito.


Notas e Referências: 

[4] O mesmo é dizer que da concepção de justiça atada à igualdade enquanto «instinto» ou «intuição» moral foi possível inferir (ou desde a qual se originou) o «imperativo ético» de que todos os seres humanos devem ser considerados como fins e nunca como meios, e que são merecedores de um trato e consideração igual em todos os vínculos sociais que se consideram constitutivos da autonomia e liberdade do indivíduo, ou seja, que permitem a cada um viver o livre desenvolvimento de sua identidade e de seus projetos vitais em uma comunidade de homens livres e iguais, unidos por um comum sentimento de fraternidade e em pleno e permanente exercício de sua cidadania. Nota bene: uma coisa é conceber o rechaço à desigualdade (ou o sentimento de igualdade) como «instinto» ou «intuição» moral; outra muito distinta é o uso distorcido que cada vez com mais frequência se faz da ideia de igualdade e que pode levar a situações altamente prejudiciais: «o medo às diferenças» para dizer com S. Pinker. Como é quase ocioso recordar, a igualdade não é um fato. Dentro do marco da espécie humana, que estabelece uma grande base de semelhança, os indivíduos não são definitivamente iguais; a situação «de fato» não é a igualdade, como mostra às claras não somente a própria circunstância do nascimento (que oferece uma enorme diversidade de cunho social), senão também as diferenças em termos de talentos, caráter, personalidade, inteligência, etc. Para onde se mire a vida está atulhada de exemplos de desigualdade e injustiça. Daí que Stephen Asma (2012), um dos detratores da superlativa apologia da igualdade, sustente que a obsessão da sociedade ocidental pela igualdade a todo custo é um autêntico despropósito, uma vez que as diferenças e as iniquidades da vida não somente são naturais senão saudáveis. Para Asma, perseguir a igualdade sem moderação é uma utopia porque todos os reclamos para uma maior equidade estão baseados na carência de um frente à abundância do outro: a igualdade, afirma Asma, «é um slogan baseado na inveja».


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España  


Imagem Ilustrativa do Post: brain lobes// Foto de: Allan Ajifo// Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/125992663@N02/14599057004 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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