Justa causa para instauração do processo penal condenatório - Por Afrânio Silva Jardim

09/08/2016

Mais uma vez, voltamos a este tormentoso questionamento. O legislador criou um intrincado problema para a doutrina, cujo escopo principal é dar racionalidade aos textos positivados. A doutrina não pode “brigar” com o disposto expressamente na norma jurídica. Temos sempre de encontrar uma solução lógica, buscando preservar um sistema. Espero que agora seja definitiva esta nova versão ...

Após várias reflexões sobre o tema, vamos aqui resumir o nosso entendimento sobre esta categoria processual chamada de “justa causa” no processo penal. Em prol da clareza, o texto terá uma forma esquemática.

Nossa premissa: o artigo 395 do Cod. Proc. Penal, que trata da rejeição da denúncia ou queixa, menciona a justa causa no seu inc. III. Por conseguinte, a falta de justa causa deve ser algo distinto da inépcia da denúncia, que está no inc. I, e diferente dos pressupostos processuais (existência e validade), bem como diverso das condições para o exercício do direito de ação, vez ambos que estão no inc. II.

Outra premissa: a justa causa não é mérito do processo penal condenatório, pois a sua falta não determina a absolvição do réu, vale dizer, não leva ao julgamento de improcedência do pedido de condenação.

Partindo destas premissas e buscando a preservação de um sistema lógico para o processo penal, encontramos a regra do art. 41, a qual exige que denúncia impute ao réu uma conduta criminosa e mais alguns requisitos formais que menciona. Por outro lado, o antigo artigo 43, que veio a ser substituído pelo citado art. 395, todos do Cod. Proc. Penal, dizia que a denúncia ou queixa deveriam ser rejeitadas, liminarmente, se o fato narrado evidentemente não constituísse crime.

Desta forma, está claro que o processo penal condenatório só pode ser legitimamente instaurado diante de uma acusação de prática de uma infração penal, ou seja, uma conduta típica, ilícita e reprovável. 

Tal acusação tem que encontrar respaldo probatório mínimo na prova do inquérito ou peças de informação. Entretanto, este suporte probatório mínimo funciona como sendo uma condição para o exercício correto do direito de ação penal condenatória. Aqui, estamos falando de lastro de prova, no inquérito ou peças de informação, de tudo o que vier narrado na denúncia ou queixa. Trata-se de examinar se existe prova mínima e não valorar esta prova inquisitorial.

Vale a pena insistir: continuo entendendo que o suporte probatório mínimo é a quarta condição para o regular exercício da ação penal condenatória, sendo a “originalidade” a quinta condição.

Colocadas as coisas nesses termos, estamos entendendo que a falta de imputação de uma conduta criminosa, em tese, não legitima a formação de um processo penal condenatório, tendo em vista a ausência de justa causa, sendo a justa causa até mesmo uma consequência do princípio constitucional do “devido processo legal”. Talvez pudéssemos mesmo dizer que tal princípio constitucional abrange o conceito de justa causa no processo penal.

Sem a acusação de uma conduta (comissiva ou omissiva) que encontre clara tipicidade em alguma norma penal incriminadora, seria, por si só, absolutamente injusto o processo criminal condenatório. Da mesma forma, se pela narrativa das circunstâncias da conduta típica, que o art. 41 exige sejam descritas na denúncia ou queixa, ficar constatado que tal conduta imputada não é antijurídica ou não é reprovável, faltará também justa causa para a instauração do processo penal condenatório. 

Sustento que a antiga regra do inc. I, do revogado art. 43, foi substituída pelo inc. III, do atual artigo 395 do Cod. Proc. Penal. Vale dizer, não haverá justa causa para o processo penal condenatório se “o fato narrado na denúncia evidentemente não constituir crime”.

Agora, não mais estamos falando de suporte probatório mínimo da conduta descrita na denúncia ou queixa, mas sim, da imputação, em tese, de uma conduta delituosa. Cuida-se de uma questão de direito, examinada prima facie.

Não faz sentido o réu ter o ônus de se defender de uma acusação absurda como, por exemplo, de não ter pago o aluguel de sua casa. Nesta hipótese absurda, deveria ser ele processado e absolvido, através de um processo penal fadado ao insucesso ???

O mesmo se diga se vier narrada, na peça acusatória, uma conduta praticada em legítima defesa ou não reprovável, tendo em vista as circunstâncias narradas; narrativa esta expressamente exigida pelo art. 41 do Cod. Proc. Penal, não custa repetir.

Em resumo, esclareço que a justa causa pressupõe acusação de uma conduta que, ao menos em tese, seja típica, ilícita e culpável. Trata-se de uma questão de direito, vale a pena reiterar. Isto é diferente de existir ou não suporte probatório mínimo de tudo o que esteja narrado na acusação (quarta condição para o regular exercício do direito de ação penal condenatória).

Por tudo isso, ouso sugerir o reconhecimento de uma outra categoria no processo penal condenatório, cujo nome adequado poderia ser o de “pressuposto de legitimação do processo penal condenatório”. Esta seria, então, a natureza jurídica da justa causa, referida no já aludido inc. III do art. 395 do Cod. Proc. Penal. A justa causa seria um pressuposto para que um processo condenatório fosse legitimamente instaurado. Não pode haver atividade jurisdicional sem acusação, ainda que em tese, de uma conduta delituosa. Seria um processo ilegítimo e injusto. 

Vamos então às nossas conclusões, tendo em vista a redação do art. 395 do Cod. Proc. Penal e uma interpretação do sistema processual pátrio, após alguns estudos e reflexões, ainda que provisórios, como tudo em Direito, sobre o conceito e natureza jurídica da justa causa no processo penal, em se tratando de ação penal condenatória.

Conclusões:

1) A falta de suporte probatório mínimo (da infração penal imputada na denúncia ou queixa) leva à ausência da quarta condição da ação penal condenatória (matéria de fato);

2) A falta de narrativa (imputação) de uma infração penal (em tese), na denúncia ou queixa, leva à ausência de justa causa (questão de direito), tirando a legitimidade necessária para a instauração do processo. A acusação, para ter legitimidade, tem que, ao menos em tese, narrar uma infração penal e atribuí-la ao acusado. Assim, a justa causa seria um pressuposto para a legitimação da instauração do processo penal;

3) A inépcia da denúncia ocorreria por outros aspectos secundários em relação à imputação, como por exemplo: feita a imputação de um crime a Manoel, não se descreve detalhadamente a participação de João. O autor da ação não narra as circunstâncias do crime, conforme exige expressamente o art. 41 do Cod. Proc. Penal. Tais defeitos podem ser sanados através de futuro e eventual aditamento.

Nas hipóteses 1 e 2, teríamos a extinção do processo sem resolução do mérito, via rejeição da denúncia ou queixa. Note-se que, com a demanda, já há uma relação processual entre autor e juiz.

Na hipótese 3, caso não sanado o vício em tempo oportuno, teríamos nulidade da peça acusatória e, por consequência, de todo o processo.

Fica aí uma nossa nova contribuição, sempre provisória, aguardando que, ao menos, sirva para estimular um salutar debate teórico.

Rio, inverno de 2016. .


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