Jurisprudência mansa e pacífica: pacífico é quem se rende, simples e incontinentemente, aos julgados de outros órgãos julgadores sem a mínima capacidade de fazer - lhe crítica

27/05/2015

Por Denival Francisco da Silva - 27/05/2015

Quem já teve oportunidade de ler três decisões judiciais, ainda que parcialmente, ou já teve que suportar a fala de alguns falsos eruditos e autodenominados “operadores do direito” (o operário não tem a obrigação de refletir sobre o que está fazendo, porque suas tarefas já chegam pensadas por quem as mandam executar, por mais absurdas que sejam), percebeu que geralmente quando se quer fechar a discussão jurídica sobre eterminado assunto o prosador encerra o debate com a expressão de que sobre o tema já existe jurisprudência mansa e pacífica.

Mesmo fracionando o termo já seria em si uma excrescência. Mas porque não só mansa, ou não só pacífica? Qual a razão da redundância, senão reforçar justamente o que não é e não pode ser: mansa e pacífica.

Veja. Essa coisa domesticada só pode ser contraponto com o que fora anteriormente bravio e selvagem feito animal enfurecido resistente à opressão daqueles que querem enjaulá-la. É possível que seja preciso tato, jeito, coragem, condicionantes, interesses, vontades para amansá-la. Isso só pode ser trabalho destinado para poucos, “dotados de poderes suficientes para ditar posições e interpretações jurídicas absolutas”. Assim, expedida a bula por tais gurus, e uma vez tornada mansa e pacífica esta “verdade”, ninguém mais poderá enfrentá-la. É necessário preservá-la desse modo: dócil e tranquila para apascentar os interesses reinantes e sufocar os clamores sociais, até porque em regra espelham posições conservadoras e legitimadoras do estado vigente.

E não adianta relutar, ainda que exista nisso uma enorme contradição que se opera desde o princípio. Porém, contrário a qualquer coisa mansa e pacífica, a jurisprudência com este selo passa a ser extremamente temida, exatamente o oposto da ideia de uma coisa amansada e pacificada. O que ela resume transforma-se num dogma que ninguém pode se insurgir. Passa a ser um mito, uma divindade, uma crença, com a qual não se permite a mínima discussão, sequer sobre seu conteúdo.

Para o juiz, a depender de seu modo decisório, será uma lástima ou comodismo. Representará comodismo[1] quando prefere repetir friamente, sem ao menos adequá-la ao caso concreto. Neste caso ver-se-á na confortável situação da desnecessidade de estudar o assunto para prolatar uma decisão, e que implicaria na individualização da questão trazida a juízo, e não um simples copiar de fórmulas. De outro lado – e retornando ao tema enfatizado noutro artigo deste livro – ao acolher o que já está assentado e repetido como algo “manso e pacífico”, quer reafirmar, embora falsamente, sua condição de neutralidade, numa tentativa de descomprometer-se com a própria decisão: sou neutro e outros já afirmaram ser esta a solução para o caso.[2]

Lastimoso para aqueles que eventualmente ainda ousam divergir, porque, neste caso, serão de imediatos taxados de não antenados com as exigências judiciais de agora, que requer rapidez e eficiência (aqui entendida como quantidade de decisões).  São os renegados como portadores de uma rebeldia vazia e desprovida, sabedores que ao fim serão vencidos. Para estes, o argumento repulsivo é de que ferem o preceito da necessidade segurança jurídica (outro aforismo inconteste), mesmo que diante da divergência estejam justamente dando legitimidade aos seus julgados, em observância ao disposto no art. 93, IX da Constituição que exige que todas as decisões judiciais sejam fundamentadas. Porém, um juiz que não possa decidir de acordo com seu livre convencimento já não age como juiz,[3] é senão um escriba muito caro ao Estado.

Diante destas razões despreza-se qualquer possibilidade de um novo pensar sobre o assunto, para abraçar a maldita da jurisprudência mansa e pacífica, contra a qual não há motivação que consiga superar. Basta fazer menção à jurisprudência mansa e pacífica como se fosse um medicamento ultrapossante e tudo estará decidido.

O direito, assim como a própria sociedade, é mutante e não pode se deixar encalhar pelo caminho feito um paquiderme com trombose. Não existe jurisprudência que resista ao tempo, por mais longínquo que seja este tempo. Mesmo os fatos presentes diferenciam-se em cada processo e esta dinamicidade é que permite a inovação. Essa tentativa de castração inibe um novo modo de pensar, impedindo a renovação da tal jurisprudência mansa e pacífica, inibindo a evolução social, a reflexão sobre o direito e sua adequação ao caso concreto, sob a ótica dos preceitos fundamentais descritos na Constituição Federal.

É enganosa a afirmação de que toda a jurisprudência é importante e necessária para que se obtenha a “segurança jurídica”[4]. Não que a jurisprudência não possa servir de parâmetros para novas decisões; aliás, ela é também fonte do direito. Todavia, não se pode ser escravo dela. Não se pode engessar o debate sob o manto de “verdades” incontestáveis. Não se pode transformá-la em algo pronto e acabado para situações tão diversificadas que ocorrem diariamente nas lides jurídicas.[5]

Para o juiz é a tranquilidade de quem não quer ter o trabalho de realmente decidir, por inúmeras razões: (i) porque se conforma com isso, o império desta certeza mansa e pacificada; (ii) porque não tem a capacidade de repensar e dar sua solução ao caso, como efetivamente requer; porque lhe falta compromisso e disposição para se debruçar sobre cada caso em especial; (iii) porque vive pressionado, sob ameaça de números estatísticos e cobranças das corregedorias de justiça e do CNJ, diante da cobrança que lhe é imposta de produtividade; (iv) porque não querer desagradar os órgãos jurisdicionais hierarquicamente superiores, que lhes dão gratuitamente fórmulas prontas, servíveis para as mais distintas causas; (v) porque lhe falta preparo intelectual e técnico para enfrentar de modo diverso os temas em discussão; (vi) porque se conforma com o status vigente, não afrontando suas próprias convicções, em regra conservadoras e tradicionalistas, bem como querem aqueles que editam e se aproveitam das mencionadas jurisprudências mansas e pacíficas.

Mesmo diante de tantos argumentos (não ditos), jurisprudência mansa e pacífica é verdadeiro animal traiçoeiro que quer igualar decisões na força bruta, na estupidez de uma imposição.

Por que não só jurisprudência? Os adjetivos, mansa e pacífica, contrariamente ao que expressam, servem para intimidar, para colocar as coisas nos devidos lugares, para não se remover o que está assentado, por mais que em linhas transversas, ou nitidamente, com sói ser, em proveito de interesses dos de sempre. Em geral é resultado de posicionamentos conservadores, restritivos de direitos e que preservam o estado de coisas, sem nada modificar. De dócil, não tem nada. São soluções ardilosas, não raro encomendadas, no sentido de que servem exatamente aos interesses econômicos e políticos de grupos dominantes, em contraposição e desprezo as minorias sociais.

É mais um de tantos outros jogos de linguagem, utilizados exaustivamente no mundo jurídico, para travar o debate e evitar novas soluções e o pulsar do direito que emerge fora dos compêndios, dos preparatórios para concursos, e principalmente dos processos, gabinetes e salas de audiências.


Notas e Referências:

[1] Um vizinho muito próximo do formalista é o juiz acomodado, o que se afirma apolítico e entende que não é tarefa sua indagações sobre a justiça, a legitimidade e os efeitos sociais das leis. Esse é, possivelmente, o caso da maioria dos juízes. (DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 38).

[2] Os julgadores submetidos ao senso comum têm dificuldade de reconhecerem-se não neutros e não compreendem ser necessário optar, enquanto autores sociais. [...] é muito salutar a conscientização de que não somos neutros e imparciais, porque, assim, descobrimos que somos responsáveis pelas nossas decisões e que não podemos transferir nossas injustiças ao fantasma do legislador nem à cômoda cobertura da ‘Jurisprudência mansa e pacífica’. (ANDRADE, Lédio Rosa da. Juiz Alternativo e o Poder Judiciário. 2ª edição. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. p. 100/101)

[3] DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 64.

[4] Desde a implantação do Poder Judiciário no Brasil, sempre houve a tão propalada segurança, e contra ela, até o momento, ninguém se insurgiu. Há que se indagar como pode, após tantos anos de segurança jurídica, estar o povo brasileiro em estado de miséria tão profunda? Afinal, a quem serviu tal segurança além dos detentores do poder?

Que tipo de segurança tem a gente humilde brasileira? Segurança formal não mata fome, não dá saúde, moradia e demais condições de sobrevivência à população. Em verdade, a segurança jurídica meramente formal não garante, sequer, a própria segurança formal ao povo, menos ainda acesso a alguma base material, sem as quais o mais é discurso que, se atende interesses de alguns, ilude a necessidade de outros. (ANDRADE, Lédio Rosa da. Juiz Alternativo e o Poder Judiciário. 2ª edição. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008. P. 140/141).

[5] Para ser justa, a decisão de um juiz, por exemplo, deve não somente seguir uma regra de direito ou uma lei geral, mas deve assumi-la, aprová-la, confirma-la em seu valor, por um ato de interpretação reinstaurador, como se em seu limite a lei não existisse previamente, como se o juiz inventasse a lei a caso. Cada exercício da justiça como direito não pode ser justo a não ser como um fresh judgement... para que uma decisão seja justa e responsável, é necessário que em seu preciso momento, se é que acontece, ela seja simultaneamente regrada e sem regra, conservadora da lei e também destrutiva ou suspensiva da lei ao ponto de dever em cada caso reinventá-la, rejustificá-la, reinventá-la ao menos na reafirmação e na confirmação nova e livre de seu princípio. Cada caso é outro, cada decisão é diferente e requer uma interpretação absolutamente única, que nenhuma regra existente ou codificada pode, e nem deve, garantir.  (negritei) (SOUZA, Ricardo Timm de. Justiça em seus Termos. Dignidade humana, dignidade do mundo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p 98).


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Denival Francisco da Silva é Doutorando em Ciências Jurídicas pela UNIVALI/SC. Mestre em direito pela UFPE. Juiz de Direito. Professor.                                                                                                                                                                                                                                 .                                                                                                                                                     


Imagem Ilustrativa do Post: Man in Fort Dauphin, Madagascar // Foto de: David Dennis // Sem alterações

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