Jurisprudência Dominante no Novo Código de Processo Civil?

04/03/2015

Por Dierle Nunes e Délio Mota de Oliveira Júnior - 04/03/2015

A partir da década de 1970 e, com maior dimensão entre nós, principalmente após a Constituição da República de 1988, diante da garantia de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV) e da previsão de uma série de políticas públicas de inclusão, o processo civil começa a ser dimensionado não apenas para resolver conflitos individuais e privados: surge à visão do processo como garantia para se alcançar direitos fundamentais[3].

A busca pela consolidação do Estado Democrático de Direito (EDD), assegurado pela Constituição da República de 1988, com o reconhecimento de normatividade e efetividade das garantias fundamentais, promoveu a constitucionalização do Direito e uma judicialização das relações sociais e políticas[4][5]; fenômeno complexo repleto de aspectos positivos e negativos.

Neste contexto, houve significativo crescimento do número de processos submetidos ao Poder Judiciário, ampliando-se a litigiosidade coletiva e repetitiva[6] [7]. Entretanto, paralelamente a tal fenômeno, diante das deficiências infraestruturais dos órgãos jurisdicionais, restou evidenciada a morosidade na aplicação processual-jurisdicional, o que repercutiu em descrédito do Poder Judiciário, debilitando a consolidação do EDD[8] [9].

Com o argumento de se buscar reduzir as máculas à garantia da duração devida do processo, a imprevisibilidade das decisões e a instabilidade da jurisprudência (garantia da segurança jurídica e da isonomia), bem como evitar a transformação dos Tribunais Superiores em instâncias revisionais ordinárias, o legislador vem promovendo diversas e sucessivas reformas processuais, de modo a valorizar os efeitos vinculantes e/ou impor a observância aos precedentes judiciais, em nítido processo de padronização decisória. Este é outro fenômeno complexo em decorrência das tendências neoliberais de se promover uma aplicação decisória somente preocupada com uma eficiência quantitativa; que não leva em consideração a maturação argumentativa para formação da jurisprudência.

O novo Código de Processo Civil, percebendo as atuais mazelas do sistema estruturou em suas normas, contra-faticamente, balizas para a criação e aplicação legítima  do direito jurisprudencial.

E entre seus comandos disciplina que os juízes devem se vincular ao direito jurisprudencial formado nos Tribunais Superiores, ao dispor, em seu artigo 927, que os juízes observarão: (I) as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; (II) os enunciados de súmula vinculante; (III) os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; (IV) os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; e (V) a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

Contudo, ao regulamentar este Direito jurisprudencial, o Código de Processo Civil de 2015 perdeu a oportunidade de retirar do texto normativo a expressão "jurisprudência dominante", que é extremamente vaga, abstrata e imprecisa.

A expressão "jurisprudência dominante" aparece três vezes no CPC de 2015: (I) ao estabelecer que os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante (artigo 926, §1º); (II) ao dispor sobre a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão, quando houver alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos (artigo 927, §3º); e (III) ao prever que haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar acórdão que contrarie súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal (artigo 1.035, §3º, inciso I).

Contudo, o que se deve entender por "jurisprudência dominante"?

Hoje os entendimentos são plúrimos, mas  sob a égide do Novo CPC a expressão deve ser interpretada em conformidade com o sistema de precedentes nele previsto e na própria Constituição, de modo que a "jurisprudência dominante" consiste naquelas decisões proferidas nos casos dispostos nos incisos I a V do artigo 927 e, em algumas hipóteses, respeitado o requisito das “reiteradas decisões sobre a matéria” (art. 103 A, CRFB/88) .

Note-se, por fim, que a "jurisprudência dominante", disciplinada no sistema de precedentes do novo Código de Processo Civil, é formada com base na teoria normativa da comparticipação (arts. 6º e 10), e nas premissas da coerência, integridade, estabilidade (art. 927) e da busca do resgate da efetiva colegialidade[10], de modo que a vinculação à determinado entendimento jurisprudencial somente ocorre em relação aos fundamentos determinantes (ratio decidendi) do julgado, caso não haja distinções fáticas entre o caso do passado e o caso em julgamento que seja capaz de afastar a aplicação do precedente.


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Dierle Nunes é advogado, doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia).  Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.


Délio2Délio Mota de Oliveira Júnior é advogado e Mestrando em Direito Processual Civil pela UFMG. Graduado em Direito pela UFMG. Professor Voluntário de Direito Processual Civil na UFMG.

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[3] NUNES, Dierle. “Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva: a litigância de interesse público e as tendências ‘não compreendidas’ de padronização decisória”. Revista de Processo, vol. 199, set. 2011, pp. 41-82, esp. p. 45.

[4] BARROSO, Luís Roberto. “Elementos para a construção de um Direito Jurisprudencial”. In MELLO, Patrícia Perrone Campos. Precedentes: O desenvolvimento judicial do direito no constitucionalismo contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

[5] “Quando analisamos a utilização corrente da judicialização em nosso país para implementação de direitos fundamentais não podemos despresar a situação de que tal fenômeno representa uma consequencia de um problema mais grave: a crise das instituições de nosso país. Vemos uma democracia representativa em crise e um Parlamento sem agenda. Um Executivo que não promove as políticas públicas necessárias para garantia dos direitos fundamentais, em verdade, as políticas públicas deste último se preocupam apenas com a tentativa de redivisão de renda, mas não com a consecução de todo o projeto constitucional de 1988 e de políticas de consolidação de direitos fundamentais.” (THEODORO JÚNIOR, Humberto; NUNES, Dierle José Coelho; BAHIA, Alexandre Gustavo Melo. “Breves considerações da politização do judiciário e do panorama de aplicação no direito brasileiro - Análise da convergência entre o civil law e o common law e dos problemas da padronização decisória”. Revista de Processo, vol. 189, 2010, p. 9-52.)

[6] JAYME, Fernando Gonzaga; FERNANDES, Tereza de Assis. “Julgamento Liminar do Pedido – análise dos critérios de aplicação e inevitável crítica em relação a sua disciplina no Projeto de Novo Cógigo Civil”. Coord: FREIRE, Alexandre, et al. Novas Tendências do processo Civil: Estudo sobre o Projeto de Novo Código de Processo Civil. Salvador: Editora JusPodivm, 2013, p. 146.

[7] Em outra sede argumentamos que, “na atualidade, esta litigiosidade [individual] não se mostra como a mais preocupante para a aplicação de direitos e m face do fato de que após a Constituição cidadã de 1988, e da assunção efetiva de garantias de acesso à justiça (art. 5.º, XXXV, da CF/1988) e do devido processo legal (art. 5.º, LIV, da CF/1988), o processo se tornou uma garantia do cidadão para viabilizar a obtenção de direitos (fundamentais) e permitir que a litigiosidade coletiva e serial (repetitiva), especialmente a litigância de interesse público (PIL), fosse submetida ao Poder Judiciário.” (NUNES, Dierle. “Processualismo constitucional democrático e o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva: a litigância de interesse público e as tendências ‘não compreendidas’ de padronização decisória”. Revista de Processo. São Paulo: RT, vol. 199, set. 2011, p. 41-82, esp. p. 45.)

[8] JAYME, Fernando Gonzaga. “Necessitamos de um Novo Código de Processo Civil?”. In: MACHADO, Felipe; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade (Coord.). Constituição e Processo: uma análise hermenêutica da (re)construção dos códigos. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 135-150.

[9] Eis a pesquisa do Conselho Nacional de Justiça – CNJ acerca da taxa de congestionamentos dos processos no Brasil: “O Brasil é o país que apresenta maior taxa de congestionamento, 70%, seguido de Bósnia e Herzegovina e Portugal, com 68 e 67%, respectivamente. Observa-se elevada diferença entre a taxa mais alta, de 70%, e a mais baixa, de 3%, referente à Federação Russa. Assim como a maior taxa de congestionamento, o Brasil também apresenta o maior número de advogados por magistrado, seguido por Itália e Malta, com 25 e 33 advogados, respectivamente (...). Como a elevada proporção de advogados em relação a magistrados pode indicar que existe elevada propensão ao litígio e relativa incapacidade de fazer frente a essa tendência, analisou-se o coeficiente de correlação entre a proporção de advogados por magistrados e a taxa de congestionamento. Obteve-se como resultado um valor de 61,8%. Isso significa que há relação alta e significativa entre essas duas variáveis. Ou seja, quanto maior o número de advogados por magistrado, maior tende a ser a taxa de congestionamento desses países. (...) O Brasil possui a terceira maior produtividade quando comparado aos países da Europa. Não obstante, contrariamente à Dinamarca, essa produtividade é ainda inferior à carga de trabalho, e isso se reflete em uma taxa de congestionamento alta. Pode-se dizer que o Brasil está em posição intermediária entre a Bósnia e Herzegovina e a Dinamarca.” (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça - CNJ. Estudo Comparado Sobre Recursos, Litigiosidade e Produtividade: a prestação jurisdicional no contexto internacional. Brasilia: CNJ, 2011)

[10] THEODORO JÚNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 298.


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