Júri virtual: solução ou excrescência jurídica  

23/07/2020

A situação de emergência que decorre da atual pandemia tem forçado os órgãos públicos adotarem uma infinidade de medidas que buscam garantir a celeridade, continuidade da prestação jurisdicional e a preservação da saúde de todos aqueles que atuam na área jurídica.

Partindo desse pressuposto o CNJ apresentou uma proposta para que as sessões do Tribunal do Júri possam ocorrer de forma virtual através de vídeo conferência sob o fundamento de que: “o prolongado contexto de pandemia e o considerável quantitativo de réus presos que aguardam o julgamento de crimes dolosos contra a vida têm revelado que a mera espera pelo fim do isolamento social para a realização dessas sessões de julgamento não se mostra consentânea com os comandos constitucionais” [1].

Pois bem, sem deixar de reconhecer a boa intenção da proposta, mais uma vez a cultura intervencionista e utilitarista do órgão tenta enfraquecer e diminuir as garantias das pessoas que deverão ser julgadas, tudo no intuito de que as metas e gráficos sejam cumpridas como se apenas os julgamentos emanados pelo Tribunal do Júri fossem resolver os problemas dos atrasos das decisões jurisdicionais que se avolumam.

Diversas tentativas e alterações legislativas vêm sendo colocadas sobre a mesa e sob o comando do Ministro Dias Toffoli para que o Tribunal do Júri seja alterado, veja-se, por exemplo, a mudança da lei 13.964/19 (artigo 492 CPP)[2] que autoriza a prisão ainda em Plenário do Júri caso haja uma condenação a uma pena superior a 15 anos de reclusão e a última proposta entregue pelo Ministro a comissão que analisa a reforma do Código de Processo Penal que diminui o tempo de acusação e defesa bem como o número de jurados.

É necessário que se faça então uma abordagem formal e material sobre o tema que já foi analisado pelo Supremo Tribunal Federal quando instado a se manifestar sobre a lei paulista 11.819/05[3] no HC 90.900[4] impetrado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo onde decidiu que somente a União poderia legislar sobre vídeo conferência de presos e tal norma seria de todo inconstitucional.

Embora o Estado de São Paulo tivesse alegado que a regulamentação de vídeo conferência entre presos era norma de caráter procedimental, o Supremo Tribunal Federal entendeu de forma contrária, vislumbrando que tal lei estava a invadir a competência da União, pois se tratava de norma de caráter processual, tanto que posteriormente, a possibilidade de ouvir presos por vídeo conferência foi autorizada excepcionalmente por lei e em situações muito específicas.  

Sendo assim, mesmo que em caráter excepcional, não cabe ao CNJ legislar sobre normas processuais eis a essência do órgão é de ordem administrativa. Portanto o recente ato normativo do CNJ através de uma minuta de Resolução 4587-94/2020 que propõe autorizar os Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais a adotarem procedimento de vídeo conferência para a realização de sessões de julgamento pelo Tribunal do Júri em razão da situação pandêmica é inegavelmente inconstitucional.

No que se refere a análise material a questão é mais grave pois tal medida interfere diretamente em várias situações cotidianas no Tribunal do Júri tais como: direito de presença, oralidade, influência, demonstração das provas colhidas no sumário de culpa, apartes, incomunicabilidade dos jurados, ameaças às testemunhas, garantia da integridade física dos servidores, divergências de quesitações, ou seja, a problemática não é simples.

Com a devida vênia, tal proposta do CNJ só demonstra a distância que existe entre o órgão administrativo e o jurisdicionado e basta uma simples verificação da minuta da Resolução para perceber que as normas estabelecidas foram propostas por pessoas que não tem a menor familiaridade e ideia do que ocorre num julgamento do Plenário do Júri. Suas imbricações e idiossincrasias vão muito além do que o espaço virtual possa permitir.

Em suma, não se trata aqui de uma postura conservadora ou antiquada diante do progresso, da tecnologia e inteligência artificial que é uma demanda presente na vida das pessoas e sim, de um conjunto de procedimentos e categorias que a tecnologia ao menos atualmente não daria conta. Imaginar a defesa de alguém por crime que deve ser julgado por seus pares por plataforma digital seria o mesmo que nada. Uma chave de gazua para arrombar a Constituição e ferir de morte a plenitude de defesa dos cidadãos. Excrecência Jurídica.  

 

 

Notas e Referências

[1] OABPR. Ordem dos Advogados do Paraná. Acesso em 28 de junho de 2020, disponível em: https://www.oabpr.org.br/wp-content/uploads/2020/06/minuta-juri-%C3%A0-ist%C3%A2ncia-1.pdf

[2] BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembnro de 2019. Acesso em 22 de junho de 2020, disponível em Planalto: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm

[3] DOE de 05 de junho de 2005. Imprensa de São Paulo. Acesso em 28 de junho de2020, disponível em Diário Oficial: http://dobuscadireta.imprensaoficial.com.br/default.aspx?DataPublicacao=20050106&Caderno=DOE-I&NumeroPagina=3

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 90.900/SP. Brasília, DF, julgamento em 30 de outubro de 2008, disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=604581. Acesso em: 28 de junho de 2020.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Hammer Books // Foto de: succo // Sem alterações

Disponível em: https://pixabay.com/en/hammer-books-law-court-lawyer-719066/

Licença de uso: https://pixabay.com/en/service/terms/#usage

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura