JÚRI POPULAR E A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NO RESULTADO DOS JULGAMENTOS

31/10/2022

O tema central do presente artigo é a influência dos veículos de propagação da mídia na opinião popular e seus reflexos nos julgamentos de processos pelo Tribunal do Juri, cuja discussão é de extrema relevância, especialmente diante da necessária reflexão acerca da parcialidade dos membros que compõe o Conselho de Sentença, tendo em vista que a plenitude de defesa, sigilo das votações e a soberania dos veredictos são princípios que norteiam o devido processo legal.

Objetiva-se demonstrar que a mídia exerce influência na formação da opinião pública e que esta influência afeta a parcialidade dos julgamentos. Para isso, a análise é dividida em três capítulos, que visam, a partir de um caso emblemático , fazer a correlação entre o Júri Popular e a possível Influência da Mídia no resultado dos julgamentos.

O primeiro capítulo consiste na explicação de como ocorre o procedimento especial do Tribunal Do Júri, que exerce competência originária para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, consumados ou tentados, e dos crimes conexos a esses. Apresenta-se a primeira fase (preparatória) e a seguir inicia-se uma breve explicação da segunda fase do procedimento especial (fase em que ocorre o julgamento propriamente dito da causa pelo Tribunal do Júri). Ao final desse capítulo, são apresentados os princípios norteadores do procedimento especial e sua fundamental importância para as garantias legais processuais.

O segundo capítulo constrói um paralelo entre a atuação da mídia e a garantia fundamental a liberdade de imprensa dentro de uma sociedade democrática de direito. Dessa forma, traz uma análise entre a liberdade de imprensa e os limites de atuação dos veículos midiáticos no Brasil. Trata-se da atividade midiática excessiva no decorrer do Processo Penal e das consequências disso para o resultado final do processo, tendo como premissa que os membros sorteados para compor o Conselho de Sentença são indivíduos leigos que consomem o conteúdo da mídia e não possuem conhecimento jurídico para distinguir o que é exagero e o que é verdade nos fatos publicados.

No terceiro capítulo, por fim, é feita a análise da influência da mídia em paralelo com a eventual antecipação da condenação do acusado. Esse paralelo é feito através da análise da (im)parcialidade dos membros do Conselho de Sentença, perpassando pela seletividade do sistema punitivo brasileiro, através da análise da atuação dos principais veículos de informação durante o andamento processual do caso Elise Matsunaga.

A relevância jurídica dessa pesquisa ampara-se no imperativo de demonstrar o quanto a mídia influencia na formação da opinião pública e afeta a parcialidade dos julgamentos, uma vez que é responsabilidade do Estado exercer os poderes de sua competência de forma ampla e criar soluções no âmbito de efetivar as garantias individuais do acusado no processo penal. É atual e notório que os veículos de comunicação da mídia transmitem informações deturpadas e contaminadas com vícios e pré-julgamentos derivados de uma sociedade com anseios punitivistas, e diante disso perde-se o caráter informativo da grande mídia e passa-se a ter uma mídia formadora de opinião.

A relevância social perpassa a problemática desencadeada por essa contaminação, que afeta a ideal funcionalidade do júri popular, em que, até mesmo o próprio magistrado, pode se contaminar em suas decisões e sobrepor o clamor popular à justiça normativa, quiçá os demais membros de composição, que quase sempre não possuem conhecimento suficiente para saber separar o que é opinião, especulação e o que é o fato em si.

O presente artigo tratará então acerca dos aspectos sociológicos e jurídicos que atingem o tema proposto, perpassando também pelas questões que abrangem a seletividade do sistema punitivo brasileiro, o conflito entre princípios e garantias da liberdade de veiculação da informação e as garantias fundamentais do acusado.

1. PROCEDIMENTO ESPECIAL DO TRIBUNAL DO JURI 

O procedimento especial do Tribunal do Júri tem previsão na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 5º, XXXVIII, e assegura a participação popular, com as garantias da plenitude de defesa, sigilo das votações e soberania dos veredictos.

Com a chancela constitucional, o Tribunal do Júri passa a ter competência originária para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida consumados ou tentados, competência esta estabelecida através de rol taxativo previsto no artigo 74, §1º do Código de Processo Penal, ou seja, não se admitem interpretações extensivas neste âmbito.

Isso significa que, além dos crimes dolosos contra a vida, o Tribunal do Juri apenas poderá julgar aqueles a eles conexos. Afinal, como ressaltado por Aury Lopes Junior, “essa competência originária não impede que o Tribunal do Júri julgue esses delitos ou qualquer outro (tráfico de drogas, porte ilegal de arma, roubo, latrocínio etc.), desde que seja conexo com um crime doloso contra a vida” (LOPES JUNIOR, 2020, p.1243).

A composição do júri é simples e se dá através de um juiz de direito que tem a função de presidir o júri, e vinte e cinco jurados. Em cada sessão, dentre os vinte e cinco jurados, será feito um sorteio de sete deles para compor o Conselho de Sentença.

Com a composição estabelecida do Conselho de Sentença, inicia-se a segunda fase do procedimento especial do júri (de julgamento em plenário), o qual é iniciado com a instrução preliminar, que se assemelha à aquela prevista para os procedimentos ordinários. 

1.1 PRIMEIRA FASE DO PROCEDIMENTO ESPECIAL 

A primeira fase do procedimento especial do Tribunal do Júri tem início com a instrução preliminar e o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público. Após o recebimento da denúncia, é feita a citação do réu para que responda a acusação, esta resposta (defesa prévia) é oferecida por escrito, no prazo de dez dias contados da data da citação ou do comparecimento do acusado ou de seu defensor em juízo.

A seguir, inicia-se de fato a audiência de instrução e julgamento, que é feita na seguinte ordem: primeiro é feita a oitiva da vítima, logo após a oitiva das testemunhas e por último a oitiva do acusado e as alegações finais. Nesta fase da audiência de instrução, admite-se até oito testemunhas.

Importante ressaltar que esta fase inicial não se trata de investigação acerca do caso concreto, mas sim da fase em que se analisa estritamente o recebimento da denúncia, para aferir possível sentença de pronúncia. Preceitua Aury Lopes Junior:

a instrução preliminar não se confunde com a investigação preliminar, que é a fase pré-processual da qual o inquérito policial é a principal espécie. A instrução preliminar pressupõe o recebimento da denúncia ou queixa e, portanto, o nascimento do processo. Feita essa ressalva, compreende-se que a instrução preliminar é a fase compreendida entre o recebimento da denúncia ou queixa e a decisão de pronúncia (irrecorrível). (LOPES JUNIOR, 2020, p.1244).

Após o final da primeira fase, o juiz presidente irá proferir decisão, que poderá ser de absolvição sumária do acusado, desclassificação da infração penal, impronúncia ou de pronúncia do acusado, determinando, apenas na última hipótese, quais serão as próximas etapas do júri em questão.

O cerne da fase inicial é justamente analisar a admissibilidade da acusação e verificar a existência de indícios de autoria e a materialidade do fato narrado na denúncia. Por isso, diante das decisões diversas da pronúncia, não haverá espaço para a segunda fase do procedimento especial.

A absolvição sumária do acusado ocorre quando tiver provada a inexistência do fato, quando provada a não autoria (quando se verifica que não foi o acusado o autor nem partícipe do crime), quando o fato não constituir infração penal (conduta atípica), quando demonstrada causa de isenção de pena ou quando se verifica a exclusão de crime (excludente de ilicitude ou de culpabilidade).

A desclassificação da infração penal pode ser própria ou imprópria. A desclassificação própria ocorre quando o juiz dá ao fato classificação jurídica diversa da denúncia; nesse caso, por não ser mais competência do júri popular, o juiz remeterá o processo para a Vara competente. Já na desclassificação imprópria, não se altera a competência e o próprio juiz desclassifica e pronuncia o acusado, dando seguimento ao julgamento no tribunal.

Quando o juiz verificar que não há elementos suficientes que comprovam materialidade, nem indícios suficientes de autoria, ocorre a impronúncia.

Portanto, só será proferida decisão de pronúncia quando o juiz verificar que há elementos suficientes para identificar indícios de autoria e provas de materialidade, aqui deve constar as qualificadoras e causas de aumento ou diminuição de pena, por exemplo, pois, na segunda fase, o julgamento deve se basear na pronúncia. Apenas quando há a pronúncia é que se dá início à segunda fase de julgamento.

1.2 SEGUNDA FASE DO PROCEDIMENTO ESPECIAL 

A segunda fase do procedimento especial é o julgamento em plenário e tem início com a decisão de pronúncia. Aqui quem analisa as provas é o corpo de sentença. Nessa fase do procedimento especial, acusação e defesa poderão arrolar até cinco testemunhas, juntar documentos e postular pelas diligências que considerem necessárias antes da sessão do julgamento.

Após o sorteio entre os jurados presentes, convocados para efetivar o papel de representação do povo, sete jurados sorteados irão compor o Conselho de Sentença, obedecendo aos mesmos critérios de impedimento ao qual se submete um juiz togado.

No alistamento dos jurados, destaca-se a proibição de que o cidadão que tenha integrado o Conselho de Sentença nos últimos 12 meses seja incluído na lista geral. Esta proibição tem como função manter uma espécie de circulação entre as pessoas que compõe o Conselho de Sentença e evitar a figura do “jurado profissional”, que seria justamente uma pessoa que participe com frequência do Júri, pois isso vai de encontro ao próprio fundamento que legitima o Tribunal do Júri: que pessoas do povo, sem os vícios e cacoetes do ritual judiciário, integrem o júri. O legislador claramente entende que aquelas pessoas que sistematicamente participam do Conselho de Sentença podem acabar se transformando em jurados ruins, pois continuam não tendo conhecimento de Direito Penal e Processo penal, mas, pelas sucessivas participações, são levados a ter a falsa impressão de que conhecem o suficiente (a ilusão de conhecimento). (LOPES JUNIOR, 2020, p.1285)

Composto o Conselho de Sentença e diante da presença do Juiz Presidente, inicia-se o julgamento. Começa-se com a oitiva da vítima e, logo após, a oitiva das testemunhas da acusação, da seguinte forma: primeiro o Ministério Público faz as perguntas, depois o advogado do réu, e por último os jurados podem perguntar. Vale ressaltar que o juiz só pode perguntar se achar necessário para o andamento do processo. A seguir, faz-se a oitiva das testemunhas da defesa, e as perguntas serão feitas seguinte ordem: primeiro é o advogado de defesa e depois o Ministério Público. Ao final, iniciam-se os debates, momento em que a acusação e a defesa terão uma hora e trinta minutos cada para falar e expor sua tese, obedecendo aos limites do que traz a decisão de pronúncia.

Importante se atentar ao fato de que o réu não é obrigado a comparecer no momento da instrução e que, caso opte por comparecer, em regra, não poderá estar algemado. Isso porque, a imagem estabelecida através do uso da algema passa uma ideia de perigo e pode prejudicar o direito de defesa do réu, mediante entendimento da Súmula 11 do STF. O uso de algemas só é permitido em situações muito particulares, delineadas em três hipóteses: perigo de fuga, resistência ou quando houver perigo a integridade física própria ou alheia.

Durante os debates, a acusação não poderá citar a decisão de pronúncia, nem citar o eventual uso de algema, bem como não poderá falar do silêncio nem da ausência do réu, e muito menos se valer da ausência do réu como argumento para tentar convencer os jurados. Ao final, após réplicas e tréplicas, passarão a elaboração da sentença. Para isso, o juiz presidente irá ler os quesitos - que variam de acordo com as teses da acusação e da defesa -, fazendo as perguntas aos jurados, que irão votar, respondendo-as com “sim” ou “não”. A maioria simples vence a votação e leva a leitura do quesito subsequente.

Quem efetivamente participa do julgamento do crime são os jurados, ou seja, os representantes do povo, que são competentes segundo a Constituição Federal, e são eles que votam individualmente e definem pela condenação ou absolvição do acusado. Nesse ponto, esclarece Aury Lopes Junior:

então o papel do juiz, mais do que nunca, é subsidiário. Sua principal missão é evitar a indução e eventuais constrangimentos que promotor e advogado de defesa venham a praticar em relação à testemunha. Já os jurados, verdadeiros juízes do caso penal, poderão formular perguntas, através do juiz presidente, que exercerá o papel de mediador, para evitar que o jurado acabe deixando transparecer algum juízo de valor, externando sua posição sobre a responsabilidade penal do réu. Se isso acontecer, nada mais restará ao juiz do que dissolver o conselho de sentença e marcar novo júri (estando esse jurado impedido de atuar, por evidente). (LOPES JUNIOR, 2020, p.1300).

Após a votação de cada um dos quesitos lidos pelo juiz presidente, é proferida sentença de condenação ou absolvição. Da sentença de condenação proferida pelos jurados, ao juiz presidente cabe redigi-la e efetuar a dosimetria da pena.  

1.3 PRINCÍPIOS NORTEADORES DO PROCEDIMENTO ESPECIAL 

Os princípios norteadores do procedimento especial do Tribunal do Júri são previstos na própria Constituição da República, em seu artigo 5º, XXXVIII: plenitude de defesa, sigilo das votações, soberania dos veredictos e incomunicabilidade dos jurados.

O princípio da plenitude da defesa é de extrema importância para a segunda fase do procedimento especial do Tribunal do Júri, uma vez que se aplica explicitamente durante a fase dos debates. Isso porque, aqui, a defesa pode se pautar de qualquer argumento (morais, religiosos, políticos), e não precisa se limitar aos argumentos com previsão legal ou a argumentos processuais. O que difere tal princípio da ampla defesa é que a ampla defesa é estritamente técnica, enquanto a plenitude da defesa, ultrapassa esses limites.

Nesse sentido, preceitua Fernando Capez:

a plenitude da defesa implica o exercício da defesa em um grau ainda maior do que a ampla defesa. Defesa plena, sem dúvida, é uma expressão mais intensa e mais abrangente do que defesa ampla. Compreende dois aspectos: primeiro, o pleno exercício da defesa técnica, por parte do profissional habilitado, o qual não precisará restringir-se a uma atuação exclusivamente técnica, podendo também servir-se de argumentação extrajurídica, invocando razões de ordem social, emocional, de política criminal etc. Esta defesa deve  ser fiscalizada pelo juiz-presidente, o qual poderá até dissolver o conselho de sentença e declarar o réu indefeso (art. 497, V), quando entender ineficiente a atuação do defensor. (CAPEZ, 2016, p.676).      

Quanto a garantia do sigilo das votações, nada mais é do que uma espécie de proteção a decisão dos jurados, que, no momento específico da votação, se dirigem a uma sala especial, longe do público externo, e com participação restrita com vistas a resguardar a integridade dos componentes do Conselho de Sentença.

Os crimes dolosos contra a vida devem ser julgados sempre mediante o procedimento especial do Tribunal do Júri. Isso porque, de acordo com o princípio da soberania dos veredictos, a decisão nesses casos deve se dar mediante a votação dos componentes do Conselho de Sentença e é esta a sentença a qual deve ser aplicada, não admitindo-se sentença diversa.

Justamente em atenção a soberania dos veredictos é que, durante a fase recursal, no momento da apelação, quando os jurados decidem de forma manifestamente contrária a prova nos autos, cancela-se o primeiro julgamento e inicia-se um novo julgamento com um novo Conselho de Sentença que irá julgar mais uma vez o caso em tela em decorrência do recurso interposto.

Ademais, estabelece-se um vínculo direto entre o princípio norteador do sigilo das votações e a incomunicabilidade entre os jurados. A incomunicabilidade se restringe a proibição de que os componentes do Conselho de Sentença emitam entre si opinião sobre o Júri em questão, ou seja, restringe toda forma de comunicação acerca do caso mesmo que com gestos ou manuscritos. Isso porque, o intuito desta extensão do princípio do sigilo nas votações é não permitir qualquer tipo de pressão externa no momento da votação, evitando eventuais combinados que resultem em interferências no processo. Vale ressaltar que é possível que os jurados peçam esclarecimentos sobre o caso e que isso não interfere na restrição da incomunicabilidade.

A incomunicabilidade é uma forma de resguardar a influência interna, porém há ainda uma outra influência que pode interferir na formação de opinião dos membros do Conselho de Sentença: a influência externa. Quanto a influência externa, a liberdade de imprensa - que ganha corpo com o trabalho dos veículos de comunicação social (mídia) -, não pode ser evitada, uma vez que garante a efetivação da garantia constitucional da liberdade de informação. 

2 MÍDIA E LIBERDADE DE IMPRENSA 

No Brasil, a participação da população no julgamento dos crimes dolosos contra a vida é regularizada mediante o instituto do Júri popular, que é um direito fundamental estabelecido no inciso XXXVIII, do artigo 5º da Constituição Federal brasileira de 1988 (CF/88). O intuito dessa atribuição é a promoção da soberania da opinião popular.

Tomando como premissa que a sociedade consome o conteúdo ofertado pela mídia, seja este conteúdo transmitido através dos grandes jornais e revistas, dos programas de televisão de jornalismo investigativo sensacionalistas, de programas de rádio diários, documentários de plataformas de streaming, da internet. Ou, até mesmo, os mais recentes dos veículos multimilionários de informação: os sites de fofoca da rede social Instagram, é necessário a imposição de limites a essa veiculação desenfreada de informações. Esses limites devem sempre ser pautados nos princípios citados anteriormente para atribuir maior segurança jurídica ao procedimento, assegurando a garantia dos princípios da liberdade de informação quanto dos princípios inerentes ao procedimento do Tribunal do Júri.

Os referidos limites são medidas jurídicas necessárias para que não se deixe negligenciar por completo o princípio da presunção de inocência, de modo que ninguém deveria ser considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. 

2.1 LIBERDADE DE IMPRENSA E LIMITES DE ATUAÇÃO DOS VEÍCULOS MIDIÁTICOS NO BRASIL

A veiculação das informações é a função originária da mídia, que exerce dentro da democracia papel fundamental perante a efetivação da garantia constitucional da liberdade de informação. Trata-se da liberdade de imprensa, e se extrai entendimento dessa garantia de acordo com os artigos 5º, incisos IV, IX, XIV e 220 da Constituição Federal de 1988.

Mas, em que pese a importância da liberdade de imprensa para a democracia, enquanto mecanismo de garantia de coerente atuação do governo e do Estado em sua totalidade, muitas vezes o exercício livre e desenfreado de suas atribuições pode esbarrar em conflito com outros princípios basilares da Constituição. Um exemplo disso, dentro da atividade midiática excessiva no decorrer do processo penal, é a veiculação exacerbada da imagem de um suspeito ou de seu nome, que gera eminente conflito entre os direitos da personalidade (honra, à imagem, ao nome, à privacidade) desse sujeito e a liberdade de imprensa. Esses direitos da personalidade representam os limites à liberdade de imprensa. 

Diante desse conflito, a liberdade de imprensa tomou para si algumas premissas que estabelecem limites a sua atuação, bem como a checagem da veracidade dos fatos a serem veiculados para garantir a mencionada função originária da mídia, que dentro da democracia, efetiva garantias constitucionais.

Mas será que diante da rapidez com que as informações são publicizadas é possível fazer uma checagem adequada dos fatos? Certamente não. Isso porque, as informações são transmitidas em tempo real e, mesmo que se passe uma falsa ideia de veracidade, não é possível tão rapidamente analisar um mesmo fato de variados ângulos, ainda mais quando se leva em consideração a falta de conhecimento técnico, distorção do que se é transmitido e a forma com que os fatos são levados a público. 

2.2  DA ATIVIDADE MIDIÁTICA EXCESSIVA NO DECORRER DO PROCESSO PENAL 

Não é incomum ligar a televisão e se deparar com uma série de notícias sensacionalistas sobre crimes dolosos contra vida, até mesmo, para os grandes veículos de informação, chocar a população gera engajamento, e engajamento é sinônimo de sucesso. Nesse sentido, entende-se que a exposição dos crimes dolosos contra a vida parte desse pressuposto: chocar a população através da formação de uma opinião pública consensual, isso de acordo com o interessante conceito de opinião elaborado por Luiz Flávio Gomes:

[…] apesar das divergências e da multiplicidade dos públicos que coexistem e se misturam numa sociedade, tais públicos parecem formar juntos um único e mesmo público, por seu acordo parcial em alguns pontos importantes; e é isso o que chamamos de opinião. (GOMES, 2013, p.154)

Isso porque, com a exploração da insegurança pública, através da atividade midiática excessiva, atrelada a seletividade do complexo sistema punitivista brasileiro, é possível vislumbrar a continuidade do referido mecanismo que perpetua as desigualdades sociais. Para compreender o desencadear de nexo entre tais conceitos, é interessante trazer à baila o populismo penal, que conforme bem preceitua Mariano H. Gutiérrez, entende-se por:

pejorativa e/ou criticamente o saber técnico acadêmico – especialmente os minimalistas/garantistas, os adeptos da teoria sociológica do labelling approach e alguns setores da criminologia crítica – chama de populista o método (ou discurso ou técnica ou prática) hiperpunitivista que se vale do (ou que explora o) senso comum, o saber popular, as emoções e as demandas geradas pelo delito e pelo medo do delito, para conquistar o consenso ou apoio da população em torno da imposição de mais rigor penal (mais repressão e mais violência), como “solução” para o problema da criminalidade (GUTIÉRREZ: 2011, p. 13).

Verifica-se fortes anseios punitivistas na sociedade brasileira de um modo geral e, diante disso, é preciso atentar-se para a possibilidade de que o caráter informativo da grande mídia mistura-se aos percalços dos veículos de informação enquanto formadores de opinião.  E não só isso, mas em uma análise de qual opinião está sendo reforçada e se ela gera consequências sociais positivas ou negativas, ou se está beneficiando um grupo específico da sociedade. Acerca do exposto, preceitua Marcus Alan de Melo Gomes:

um dos grandes problemas gravados pela estética do populismo penal repousa, consoante as literaturas criminológica e político-criminal, na difusão ou no reforço da crença de que a pena é, por excelência, o melhor mecanismo de resolução de conflitos na esfera social e, portanto, o meio mais viável para o alcance da almejada segurança.  (GOMES, 2013, p.207)

É justamente por isso que uma absolvição não se torna tão relevante para a mídia quanto uma condenação. Cláudio Miquio Susuki manifesta seu posicionamento através da construção histórica do processo penal dentro do ordenamento jurídico de um Estado democrático de direito, trazendo que este, determina de um modo geral a extensão que a liberdade de imprensa possui em cada lugar, dentro de suas especificidades. Utiliza-se disso como base para fazer entender que o espetáculo que se vem propagando às custas de uma cultura que clama por punição, instiga na sociedade um clamor por justiça exacerbado, e traz justamente a punição como uma forma de controle social (SUSUKI, 2018, p.18).

O fascínio da sociedade em relação a crimes dolosos contra vida de um modo geral é o que proporciona a manutenção de toda essa grandiosidade que se gera em torno de casos de grande repercussão perante a sociedade. Ocorre que a mídia acaba por criar, em cima desses casos específicos, todo um engajamento que perpassa sua função principal de acesso a livre informação e cria um espetáculo utilizando os crimes dolosos contra a via para conquistar audiência. 

 3 DA INFLUÊNCIA DA MIDIA: UMA ANTECIPAÇÃO DA CONDENAÇÃO DO ACUSADO? 

O espetáculo criado pela mídia atrai a população em geral que se coloca em uma posição não apenas de telespectador, mas de um indivíduo que se sente parte de um acontecimento social e necessita de um desfecho. O desfecho esperado é então a responsabilização do sujeito mais provável de ter cometido o crime. Ora, não é isso que acontece ao final dos espetáculos? A partir do momento em que se cria um espetáculo diante dos acontecimentos, é esperado que a sociedade clame por um final acolhedor, e nada parece mais acolhedor, dentro de uma sociedade com anseios punitivistas, do que culpabilizar um sujeito e aplicar-lhe uma sanção penal.

Em razão do recorte metodológico empregado, é notório a razoável probabilidade de que os membros do Tribunal do Júri não sejam tão parciais, afinal, dentro de uma sociedade globalizada e punitivista todos acabam de alguma forma tendo acesso e formando opinião sobre os espetáculos criados pela mídia com os crimes dolosos contra a vida. 

3.1 (IM)PARCIALIDADE DOS MEMBROS QUE COMPÕE O CONSELHO DE SENTENÇA 

Como todo procedimento, as falhas do sistema aparecem de acordo com o tempo e as mudanças na sociedade atual refletem diretamente no funcionamento desses institutos. A globalização ocasionou a transmissão de informações em uma velocidade jamais vista anteriormente, é comum, portanto, que os institutos precisem de eventuais ajustes. Diante disso, é que se faz necessário questionar a falsa sensação de parcialidade que se extrai dos membros que compõem o júri popular, que nada mais são do que indivíduos diariamente bombardeados com notícias sensacionalistas que incitam o medo e ocasionam a construção de uma sociedade hiper punitivista. 

Sabe-se que a mídia possui relevante influência sobre o ator social e, diante disso, constrói narrativas e o bombardeia com informações em tempo real. O que é preciso analisar é justamente que atrelado ao objetivo de informar, comunicar e publicizar informações para garantir princípios basilares da democracia, os veículos de informação precisam manter sua audiência e, por isso, podem vir a cometer alguns excessos sensacionalistas, as chamadas distorções.

Nesse sentido, Cláudio Miquio Susuki, em sua obra “Democracia Mídia e Processo penal do espetáculo: juízes de redes sociais, sociedade do medo e o retorno dos justiceiros”, aborda de maneira minuciosa conceitos necessários para se chegar ao nexo causal que conecta essa influência ao resultado da opinião da sociedade acerca de um crime.

A informação é vasta e observamos que a mídia se posiciona sobre vários e diversos assuntos sem a devida propriedade sobre o tema, sob o pretexto de manter a população informada, não pela preocupação em si, mas sim pela necessidade de manter a audiência sempre alta. (SUSUKI, 2018, p. 18)

As distorções induzem esses indivíduos a realizar um julgamento antecipado dos casos levados a público, de modo que, quando chegam para participar do júri, já têm uma opinião formada e, com isso, seu voto é decidido antecipadamente, não sendo por muitas vezes construído ao longo do procedimento do júri, com a oitiva das partes, testemunhas e debates.

Ora, não há como recorrer desse tipo de sentença determinada por um órgão de comunicação que não é devidamente qualificado para isso, que não faz parte do judiciário. Essa influência pode ser negativa ou positiva, mas é diante dos fatos até aqui expostos, verifica-se que existe, é o que entende em igual sentido Juliana de Azevedo Santa Rosa Câmara:

com a difusão da comunicação de massa, foi acrescida a esse contexto a informação mediatizada, que, conjugada ao analfabetismo funcional que assola a população brasileira, passou a ditar unilateralmente o quadro fático-valorativo a ser absorvido pela massa populacional [...] permitem concluir que a opinião pública não representa o somatório de juízos individuais. (CÂMARA, 2012, p. 268)

Atrelado à problemática da possibilidade de um julgamento antecipado, vincula-se a imediatividade da população como consequência crítica midiática em face ao retorno do processo penal que se espera. A reprovação da conduta é imediata e a ideia da pena retributiva que ainda é bastante propagada atualmente pelos veículos midiáticos deriva da conhecida tese de que se deve retribuir o mal com o mal, isso nada mais é do que um exemplo prático da pena sendo vista apenas enquanto a punição necessária do sujeito que cometeu um crime.

Superadas as questões indispensáveis para compreenção da tese, é preciso chamar atenção para uma questão social que deverá ser enfrentada: a seletividade do sistema punitivo brasileiro, fator agravante para compreender como se dá o encarceramento em massa de um grupo específico no Brasil. 

3.2 A SELETIVIDADE DO SISTEMA PUNITIVO BRASILEIRO 

A veiculação do espetáculo diante dos crimes retrata uma fantasia criada em torno da contraposição entre o bem e o mal enquanto ideais opostos o que contribui com a propagação punitivista ideia de pena retributiva em que se deve retribuir o mal com o mal na busca pelo bem comum. O problema dessa dicotomia, é que há um estereótipo a ser reforçado nesse espetáculo.

Não há dúvida de que se deve refutar o caráter fortuito de que comumente pessoas com as mesmas características sejam criminalizadas. Essa refutação se dá “pela atribuição da sua constância às leis de um código social (second code, basic rules) latente integrado por mecanismos de seleção dentre os quais têm-se destacado a importância central dos ‘estereótipos’ de autores (e vítimas), associados às ‘teorias de todos os dias’ (every day theories), isto é, do senso comum sobre a criminalidade” (BUDÓ, 2006, p.10).

Quando se delimita um perfil específico para identificar um criminoso, aumenta-se consideravelmente a probabilidade de cometer injustiças, principalmente se for levada em consideração a atuação imediatista da mídia e o clamor social por encontrar culpados, no que tange as consequências do sensacionalismo e a relação com o crescimento do medo e da sensação de insegurança entre a população.

A teoria freudiana do delito por sentimento de culpa, por exemplo, em paralelo as teorias psicanalíticas da sociedade punitiva, partem da ideia de que o crime não é uma qualidade ontológica da ação criminosa, e distinguem o criminoso do homem normal devido a estigmatização que sofre. A temática principal desta perspectiva criminológica é o estudo do processo de interação, no termo do qual um indivíduo específico é estigmatizado como delinquente (BARATTA, 2002, p.48-49). Tem-se, então, o clamor social pela pena através da necessidade inconsciente de punição pela prática de condutas consideradas proibidas e da punição do delinquente, buscando reprimir tanto a conduta, quanto o sujeito.

Diante do exposto, verifica-se, historicamente, que existe sujeitos determinados a serem criminalizados e, dentro desta categoria, estão aqueles que se encontram a margem da sociedade. Identifica-se, então, no Brasil, a criminalização majoritária de pessoas pobres, negras, LGBTQI+ e prostitutas. Verifica-se, muitas vezes, que crimes supostamente atribuídos a pessoas com essas características desencadeiam uma reação desproporcional de clamor social pelo punitivismo. 

3.3 ANÁLISE DE CASOS JUDICIAIS E DA ATUAÇÃO DOS PRINCIPAIS VEÍCULOS DE INFORMAÇÃO  

Programas televisivos, como BRASIL URGENTE (BAND), JORNAL NACIONAL (GLOBO) e CIDADE ALERTA (RECORD), que compõe os principais rankings de audiência do Brasil[1], são diretamente responsáveis por implementar na população essa situação de constante alerta, gerando conflitos entre o medo da população, distorção das garantias processuais e relativização do princípio da presunção de inocência.

Para demonstrar essa informação, é necessário analisar um caso, fortemente explorado pelos veículos de informação no Brasil, para demonstrar como a atuação da mídia influenciou o resultado final deste julgamento. Nesse caso, observa-se também como o mecanismo da seletividade do sistema punitivo brasileiro atua concomitantemente a atuação dos veículos midiáticos, refletindo na construção da opinião popular. 

3.3.1 ESTUDO DE CASO: ELISE MATSUNAGA 

O caso Elize Matsunaga foi um dos crimes de maior repercussão do Tribunal do Júri na cidade de São Paulo. Elize foi acusada, no ano de 2012, de ter matado e esquartejado seu marido, o empresário Marcos Matsunaga, um homem bastante rico e conhecido, por ser, na época de sua morte, diretor executivo do grupo empresarial Yoki, empresa do ramo alimentício. Por ter sido acusada de crime doloso contra a vida, Elize foi submetida a julgamento pelo júri popular.

Elize foi condenada a uma pena de 19 anos e 11 meses de prisão pelos crimes de homicídio e destruição e ocultação de cadáver. O veredicto foi proclamado em 19 de maio de 2012, após sete dias de Juri, sendo esse um dos julgamentos mais longos registrados naquele município.

O crime ganhou grande repercussão na mídia em decorrência da posição social da vítima, Marcos Matsunaga, até então herdeiro da empresa Yoki. Sua família, composta por grandes empresários, mobilizou os veículos midiáticos, na tentativa de agilizar as investigações, e logo Elize foi apontada como a principal suspeita.

Ocorre que o caso de Elize é relevante para análise de como a mídia atua excessivamente em algumas situações, uma vez que a ré se trata de mulher, pobre e que havia atuado profissionalmente como prostituta antes de casar-se com o empresário. Além disso, a mídia veiculou a informação de que Elize conheceu e começou a se relacionar com Marcos enquanto Marcos era casado com sua ex-esposa, atribuindo a Elize mais uma característica abominada pela sociedade, a posição de amante.

Quando a mídia teve acesso a essa informação, rapidamente espalhou-se, sendo imediatamente atribuída à Elize a posição de culpada, antes mesmo do encerramento das investigações, de uma acusação formal e do julgamento. De acordo com o Ministério Público do Estado de São Paulo, o homicídio foi premeditado e Elize matou Marcos para ficar com seu dinheiro. Na defesa, negou-se veementemente essa tesa e foram relatados os abusos praticados contra ela pelo marido, como a causa para, em momento de medo, terem sido efetuados disparos.

A mídia influenciou ativamente na formação da opinião popular. Neste caso em específico, pela maneira como Elize sempre foi retratada: má esposa, péssima mãe, prostituta, interesseira, pobre, articulada, ambiciosa e manipuladora (SILVA, 2017.p.82-83).

Diante do exposto, o que se nota é que o princípio da plenitude de defesa pode acabar sendo lesado, na medida em que os juízes leigos, membros do Conselho de Sentença, podem, nos casos de uma vinculação excessiva de narrativas tendenciosas da mídia, deixar-se influenciar pelo clamor social, prejudicando o que se espera idealmente de um julgamento justo no Tribunal do Júri.

Talvez por esse motivo, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, afirmou publicamente que o Tribunal do Júri atualmente é um “instituto falido”, devido à sua baixa efetividade, afirmando que o instituto “não se presta a penalizar, a sancionar o que gera sentimento de impunidade na sociedade"[2].

O que se verifica é que, nos casos em que a mídia é excessiva, têm-se o risco de obter-se um julgamento injusto, motivado não por conclusões determinadas durante o julgamento, mas anteriores a ele.

No caso em tela, Elize deveria ter em seu favor a atenuante de ter confessado o crime, mas a defesa não obteve sucesso no Tribunal do Júri em 2016 e teve sua tese desconsiderada pelo Conselho de Sentença, mesmo sendo notório que sua confissão colaborou para o resultado das investigações. Esse é um exemplo claro de que os jurados leigos podem ter sido contaminados pelo sensacionalismo da mídia, afinal, posteriormente à condenação – que já havia sido recalculada para 18 anos e 9 meses em decorrência do tempo dela na prisão e de trabalhos realizados no sistema prisional – a sentença foi reformada pela 5ª Turma do STJ e a pena foi reduzida para 16 anos e 3 meses de reclusão, em razão da incidência da atenuante da confissão espontânea, prevista no artigo 65, inciso III, do Código Penal, conforme acordão:

HABEAS CORPUS IMPETRAÇÃO EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO CABÍVEL. UTILIZAÇÃO INDEVIDA DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL. NÃO CONHECIMENTO. 1. A via eleita revela-se inadequada para a insurgência contra o ato apontado como coator, pois o ordenamento jurídico prevê recurso especifico para tal fim, circunstância que impede o seu formal conhecimento. Precedente. 2. O alegado constrangimento ilegal será analisado para a verificação da eventual possibilidade de atuação ex offício, nos termos do artigo 654, § 2o, do Código de Processo Penal. HOMICÍDIO QUALIFICADO. DOSIMETRIA. SEGUNDA FASE CONFISSÃO QUALIFICADA. ALEGAÇÃO DE TESES QUE VISAM ATENUAR A RESPONSABILIDADE DO AGENTE. IRRELEVÂNCIA. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. 1. Mesmo nas hipóteses de confissão qualificada ou parcial, deve incidir a atenuante prevista no art. 65. III, d, do Código Penal, se os fatos narrados pelo autor influenciaram a convicção do julgador. Inteligência da Súmula n. 545 do STJ. 2. A redução ou o aumento da pena deve observar critérios de proporcionalidade, razoabilidade, necessidade e suficiência à reprovação e à prevenção do crime. 3. Na falta de critérios legais, a jurisprudência tem adotado a fração de 1/6 (um sexto) sobre a pena-base para aumentar ou reduzir a pena em razão das circunstâncias agravantes ou atenuantes. A utilização de fração superior depende de motivação concreta e idônea, o que não ocorre na espécie em relação à confissão qualificada apresentada. 4. Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício para fixar a pena da paciente, em relação ao delito de homicídio qualificado, em 16 (dezesseis) anos e 03 (três) meses de reclusão. (STJ - HC: 450201 SP 2018/0114373-1, Relator: Ministro JORGE MUSSI, Data de Julgamento: 21/03/2019, T5. QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 28.03.2019 RSTJ vol. 254 p. 1353)

Após breve análise do caso Elize Matsunaga, é perceptível o modo em que a mídia pode exercer impacto diante de um caso concreto. Isso porque, apesar das evidências, escolheu-se por ignorá-las e não acolher a atenuante de confissão. Provavelmente, essa escolha foi tomada durante a votação com a finalidade de atribuir a Elize a maior pena possível, um reflexo da sociedade punitivista de querer usar a pena como castigo para o acusado.

Vale ressaltar que a influência da imprensa não é defeito inerente ao Tribunal do Júri, mas consequência da junção entre um “instituto falido” e o sensacionalismo dos órgãos de comunicação, que emitem juízo de valor e acabam por contaminar a opinião popular. 

3.4 CONSEQUÊNCIAS NEGATIVAS DO APELO MIDIÁTICO NO ÂMBITO DAS DECISÕES DO TRIBUNAL DO JURI 

É possível verificar, diante do exposto, a existência de fatores negativos de interferência dentro do sistema penal, especificamente abrangendo a compreensão dos universos punitivos e comunicacionais e a existência de reflexos da interação destes para a esfera político-criminal. O desencadear do projeto correlaciona-se a conceitos importantíssimos do desdobramento da desastrosa parceria entre a mídia e o sistema de criminalização irracional das ciências penais, ocasionada pela distorção, falta de respeito aos princípios processuais penais e penais, das garantias fundamentais do acusado e dos membros componentes do Conselho de Sentença, bem como pela situação de medo em que a sociedade se encontra.

Com relação a essa referida distorção e o resultado delas perante a sociedade, vale trazer à baila as palavras de Marcus Alan de Melo Gomes:

considerada a perspectiva constitucional dessa correspondência, vê-se que as consequências são desastrosas: graves ofensas a princípios de contenção do direito penal, progressiva relativização de garantias processuais, fortalecimento do caráter simbólico da intervenção penal. Distorções que falam por si e revelam absoluta ilegitimidade da criminalização midiática. (GOMES, 2015, p. 139)

As consequências desse ciclo de relativização das garantias processuais corroboram para a continuidade dos valores punitivistas desenfreados da sociedade. Se não forem respeitados os limites principiológicos do Direito Processual Penal, a liberdade de expressão da imprensa estará perdendo sua função original, entrando em conflito com os demais princípios e desrespeitando a integridade do indivíduo, que perde a possibilidade de ser visto enquanto inocente diante de um crime que ainda não foi sequer julgado.

A principal consequência negativa do apelo midiático no âmbito das decisões do Tribunal do Júri é a antecipação da condenação do acusado, que já chega ao julgamento com seu veredicto pré-determinado, uma vez que, quando as informações são veiculadas pela imprensa de maneira parcial e não corresponderem aos fatos de forma exata, acabam por confundir o espectador, formando opiniões injustas e por vezes incorretas sobre os fatos.

Ademais, em regra, os jornalistas e comunicadores não possuem conhecimento técnico adequado para separar o que é especulação e o que é veracidade dos fatos ou, até mesmo, para separar o que deve ou não ser levado em consideração no momento da condenação do sujeito. A forma com que essa informação é passada, repetidas vezes, de forma distorcida e sensacionalista, também influencia negativamente os jurados, que, por ouvirem muitas vezes uma mesma opinião, acabam por se contaminar. Além disso, é importante ter em mente que os famosos clickbaits (frases geralmente curtas e sensacionalistas utilizadas pelos profissionais da mídia para atrair cliques e incentivar a curiosidade sobre um caso) também corroboram para essa distorção, por deturparem os fatos, tornando-os mais atrativos para quem os vê pela primeira vez, sem preocupação quando à adequação e veracidade da interpretação concedida à manchete. 

CONCLUSÃO 

Diante de tudo que foi exposto, identificou-se que a força que a opinião pública exerce no inconsciente coletivo é relevante para gerar influência no resultado do julgamento do Tribunal do Júri. Assim como, verificou-se que existem limites de atuação da mídia no Brasil, sendo estes limites os pilares que sustentam as garantias processuais do indivíduo acusado de cometer um crime doloso contra a vida.

Percebeu-se que a formação do senso crítico dos cidadãos perpassa pelas influências externas dos veículos de informação e é, justamente para evitar a perpetuação de um ciclo desenfreado de informações, que se deve respeitar os princípios e garantias fundamentais no momento da veiculação imediata das informações.

Em momento algum, desconsidera-se a importância da liberdade de imprensa, que tem total autonomia para divulgar informações, o que se constata é que, nos casos em que ocorre a espetacularização de um crime, transformando-o em enredo, obtém-se um conflito entre a liberdade de imprensa e o princípio da presunção de inocência, que vem ainda a ofender, no mínimo em tese, princípios inerentes ao procedimento do Tribunal do Juri, especialmente, a incomunicabilidade dos Jurados

Verifica-se que o Tribunal do Júri é composto por pessoas da sociedade, uma parcela sorteada e restrita de pessoas comuns, de diversas áreas e ramos profissionais, e que não possuem necessariamente qualquer tipo de conhecimento jurídico aprofundado ao longo de sua trajetória. Conclui-se, então, que são essas pessoas que consomem o conteúdo da imprensa e que assistem jornais diários com matérias sensacionalistas, sem possuir conhecimento para filtrar a veracidade dos fatos, que chegarão ao tribunal no dia do júri com o posicionamento já formado acerca do caso. A problemática que ocasiona tal preconcepção acerca da inocência ou da culpa do réu, é uma eventual condenação antecipada deste.

Nesse aspecto, importante ter em mente que os crimes dolosos contra a vida são justamente aqueles que geram maior comoção popular e os veículos de informação da mídia acabam por se utilizar desses crimes para promover entretenimento a sociedade sem ponderar as consequências de tais atitudes.

Em busca de audiência, programas de televisão e rádio narram como querem, em tempo real, os acontecimentos e levam ao clamor popular os fatos antes da averiguação, inclusive se utilizando de depoimentos do acusado, de supostas vítimas e, até mesmo, de testemunhas em total situação de vulnerabilidade. Essa situação imediatista, em muitos casos, antecipa a condenação do acusado e transforma o crime em um enredo de entretenimento.

 

Notas e Referências 

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[1] Dados de audiência. Kantar IBOPE Media. Disponível em: https://www.kantaribopemedia.com/dados-de-audiencia-pnt-top-10-com-base-no-ranking-consolidado-10-01-a-16-01-2022/. Acesso em 07jun.2022 

[2] Tribunal do Júri é Instituto falido, diz Toffoli. Migalhas. 3.fev.2021. Disponível em: < https://www.migalhas.com.br/quentes/339875/tribunal-do-juri-e-instituto-falido-diz-toffoli>. Acesso em: 09 jun. 2022.

 

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