JUIZADOS ESPECIAIS DA FAZENDA PÚBLICA: COMPETÊNCIA ABSOLUTA OU RELATIVA?    

30/10/2020

Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

Os Juizados Especiais foram previstos pela Constituição Federal em seu art. 98, que estipula competência para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo.

Em 1995, com a Lei 9.099 foram criados o Juizados Especial Cíveis e Criminais, para as causas cíveis e criminais de competência estadual e em 2001 foram criados os Juizados Especiais Federais com a Lei 10.259. Os Juizados Especiais da Fazenda Pública foram criados apenas em 2009 pela Lei 12.153. É importante destacar que os Juizados Especiais Federais têm competência para as causas em que a Fazenda Pública Federal seja parte, sendo assim, a Lei dos Juizados Especiais Federais abarca competência da Justiça Estadual.

A questão da competência dos juizados ser relativa ou absoluta sempre foi tormentosa. Quando da entrada em vigor da Lei 9.099/95, discutia-se se a parte poderia optar entre a justiça comum e os juizados. Atualmente, o posicionamento majoritário é no sentido de a competência dos juizados especiais cíveis ser relativa, podendo o autor fazer a opção ao propor sua ação.[i]

O legislador, quando da promulgação da Lei 12.153/09, previu que os Juizados Especiais da Fazenda Pública são competentes para as causas até 60 salários-mínimos (com as exceções previstas no §1º do art. 2º)[ii] e tentou evitar eventual discussão sobre a natureza da competência, ao estipular expressamente que a competência será absoluta nos foros onde estiver instalado o Juizado Especial da Fazenda Pública (§4º, art. 2º).

Alexandre Freitas Câmara entende que tal dispositivo é inconstitucional, nos termos seguintes:

Em primeiro lugar, a inconstitucionalidade decorre da possibilidade de o microssistema dos Juizados Especiais Cíveis Federais, assim como o dos Juizados Especiais da Fazenda Pública produzir resultados inaceitáveis: não são cabíveis todos os recursos existentes no sistema processual comum; não é cabível o ajuizamento de ‘ação rescisória’; é limitada a possibilidade de produção de provas. Em segundo lugar, a tutela jurisdicional que através dele se presta é diferenciada, mas esse sistema é estabelecido por opção do legislador e não pela natureza do direito material, o que faz com que tenha o mesmo de ser opcional para o demandante [...]

Tenho, pois, a convicção de que esse art. 3º, § 3º, da Lei nº 10.259/2001, bem como o art. 2º, § 4º, da Lei nº 12.153/2009, são inconstitucionais, e que o demandante pode, livremente, escolher entre ajuizar sua demanda perante um Juizado Especial ou perante uma Vara Federal Comum, ou escolher entre o Juizado Especial da Fazenda Pública e o juízo fazendário comum.[iii]

Manoel José de Paula Filho considera que a previsão é constitucional quando se estiver diante de causa efetivamente de menor complexidade, mas que restará violada a CF/88 quando houver causa de maior complexidade afeta ao Juizado Especial da Fazenda Pública, ainda que o valor da causa esteja dentro da previsão legal (60 (sessenta) salários mínimos).[iv]

Já para Leonardo Carneiro da Cunha, é possível a propositura da ação no juízo comum em razão da complexidade, ainda que o valor da causa seja inferior a 60 (sessenta) salários-mínimos.[v]

Seguindo essa linha interpretativa, o Enunciado 11 do FONAJEFP concluiu que as causas de maior complexidade probatória, por imporem dificuldades para assegurar o contraditório e a ampla defesa, afastam a competência do Juizado da Fazenda Pública.[vi]

A utilização dos Juizados Especiais da Fazenda Pública pode ser mais vantajosa à parte em razão da celeridade e da simplicidade. Todavia, tal previsão não pode ser interpretada como totalmente estática, uma vez que há hipóteses em que negar à parte a escolha do juízo poderá causar-lhe imenso prejuízo, consistindo em verdadeiro óbice ao Poder Judiciário. Sendo assim, a competência nas Comarcas onde há Juizado Especial da Fazenda Pública instalado, a competência poderia ser compreendida como absoluta mista,[vii] permitindo a escolha da parte pelo juízo comum em causas complexas.

Da mesma forma, as regras de nulidade pela violação da competência absoluta dos Juizados Especiais da Fazenda Pública não devem ser analisadas com tanto rigor e, desde que não vislumbre prejuízo real pela ocorrência de eventual incompetência, a sentença será válida e deverá ser cumprida.[viii]

Mas, como ficam os foros onde não há Juizado Especial da Fazenda Pública instalado? A competência passa a ser a do Juizado Especial Cível, onde houver, ou a parte pode optar pelo juízo comum?

Mesmo após anos de vigência da legislação, não são todas as Comarcas que possuem Juizado Especial da Fazenda Pública instalado, especialmente no interior dos Estados. Sendo assim, entende-se que a melhor interpretação do §4º, art. 2º, da Lei 12.153/09 é no sentido de a competência ser relativa nas Comarcas em que não há Juizado da Fazenda Pública instalado, cabendo a escolha pelo juízo comum ou pelo juizado especial cível ao autor.

Nesse mesmo sentido foi a conclusão de Joel Dias Figueira Júnior[ix] e do Enunciado 09 do FONAJEFP, in verbis:

Nas comarcas onde não houver Juizado Especial da Fazenda Pública ou juizados adjuntos instalados, as ações serão propostas perante as Varas comuns que detêm competência para processar os feitos de interesse da Fazenda Pública ou perante aquelas designadas pelo Tribunal de Justiça, observando-se o procedimento previsto na Lei 12.153/09.[x]

Ainda que a interpretação do dispositivo legal leve a essa conclusão, na prática, a aplicação não é unânime. No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o assunto foi disciplinado pelo Provimento do CSM nº 2.203/2014,[xi] que em seu art. 8º, prevê qual seria a competência nas Comarcas onde não há Juizado da Fazenda Pública instalado.[xii] O problema é que muitos juízes entendem que tal competência dos Juizados Especiais Cíveis seria absoluta, redistribuindo, de ofício, os processos propostos na justiça comum.

Essa questão já foi analisada em conflito de competência por mais de uma vez, sendo que o órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo em todas elas, reconheceu a competência absoluta do Juizado Especial Cível, ainda que na comarca não exista Juizado da Fazenda Pública instalado.[xiii]

E tal questão é extremamente relevante, veja-se, como exemplo, o Conflito de Competência nº 0009165-76.2020.8.26.0000, julgado em maio de 2020, reconhecendo a competência do Juizado Especial Cível. Consta dos autos que o processo originário é de 2017, foi julgado procedente em 2018 e que, em grau de recurso, houve decisão monocrática datada de 18/01/2019, que decretou a nulidade da sentença, ante o reconhecimento da incompetência absoluta do Juízo prolator (juízo comum da Comarca) e determinou a redistribuição dos autos ao Juizado Especial da Comarca de Paulínia. Quando os autos chegaram ao Juizado Especial Cível, o juiz, de ofício, reconhece sua incompetência em razão do cálculo atualizado com valor superior a 60 salários-mínimos e determina o retorno dos autos à justiça comum, o que gera a suscitação do conflito de competência. Reconhecer a competência relativa, nas causas fazendárias, como relativa nas Comarcas em que não há Juizado da Fazenda Pública evitaria nesse caso concreto a demora de mais de 3 anos no processo.

De outra banda, percebe-se uma modificação de entendimento no Tribunal de Justiça de São Paulo, no sentido de entender a competência como relativa nas Comarcas em que não há Juizado da Fazenda Pública instalado,[xiv] especialmente na 5ª Câmara, a partir do ano de 2020. A última decisão sobre o tema concluiu pela relatividade da competência.[xv]

Espera-se que essa mudança de entendimento, acerca da competência relativa nos foros onde não há Juizado da Fazenda Pública, prevaleça nos julgamentos futuros, evitando-se, dessa forma, atrasos na prestação jurisdicional e dificuldades ainda maiores àqueles que litigam contra a Fazenda Pública estadual ou municipal.

Respondendo à questão formulada no título, pode-se dizer que a competência dos Juizados Especiais da Fazenda Pública é absoluta apenas quando tal Juizado estiver instalado na comarca e se não houver complexidade na causa. Nas comarcas onde não foi ainda instalado o Juizado Especiais da Fazenda Pública a competência é relativa, podendo a parte optar pela propositura da ação no juízo comum, ainda que em causas inferiores a 60 (sessenta) salários-mínimos.

 

Notas e Referências

[i] Enunciado n. 1 do Fonaje: “ENUNCIADO 1 – O exercício do direito de ação no Juizado Especial Cível é facultativo para o autor”. (FONAJE Fórum Nacional de Juizados Especiais. Enunciado 1. Disponível em: <http://www.amb.com.br/fonaje/?p=32>. Acesso em: 19 abr. 2020.

[ii] Art. 2º [...]: § 1º Não se incluem na competência do Juizado Especial da Fazenda Pública: I – as ações de mandado de segurança, de desapropriação, de divisão e demarcação, populares, por improbidade administrativa, execuções fiscais e as demandas sobre direitos ou interesses difusos e coletivos; II – as causas sobre bens imóveis dos Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios, autarquias e fundações públicas a eles vinculadas; III – as causas que tenham como objeto a impugnação da pena de demissão imposta a servidores públicos civis ou sanções disciplinares aplicadas a militares.

[iii] autor? Juizados Especiais Cíveis Estaduais, Federais e da Fazenda Pública: uma abordagem crítica. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 203.

[iv] PAULA FILHO, Manoel José. Da competência absoluta, relativa ou mista e a opcionalidade ou não dos juizados especiais fazendários. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 22, n. 5071, 20 maio 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/57815>. Acesso em: 19 abr. 2018.

[v] A Fazenda Pública em juízo. 14. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 830.

[vi] CNJ CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Enunciados da Fazenda Pública. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/corregedoriacnj/redescobrindo-os-juizados-especiais/enunciados-fonaje/enunciados-da-fazenda-publica>. Acesso em: 19 abr. 2020.

[vii] PAULA FILHO, Manoel José de. Da competência absoluta, relativa ou mista e a opcionalidade ou não dos juizados especiais fazendários. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 22, n. 5071, 20 maio 2017. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/57815>. Acesso em: 19 abr. 2018. FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Juizados Especiais da Fazenda Pública: comentários à Lei 12.153, de 22 de dezembro de 2009. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 83.

[viii] GAJARDONI, Fernando da Fonseca; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Breves anotações sobre a competência nos juizados da fazenda pública: a função social do sistema dos juizados. Revista de Processo, Doutrinas Essenciais: novo Processo Civil, v. 1/2018, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 273, p. 323-341, nov. 2017, p. 339.

[ix] Juizados Especiais da Fazenda Pública: comentários à Lei 12.153, de 22 de dezembro de 2009. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p.85

[x] CNJ CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Enunciados da Fazenda Pública. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/corregedoriacnj/redescobrindo-os-juizados-especiais/enunciados-fonaje/enunciados-da-fazenda-publica>. Acesso em: 19 abr. 2020.

[xi] ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Provimento CSM Nº 2.203/2014: Atualiza, sistematiza e consolida as normas relativas ao Sistema dos Juizados Especiais. Disponível em: <https://www2.oabsp.org.br/asp/clipping_jur/ClippingJurDetalhe.asp?id_noticias=23085>. Acesso em: 22 out. 2020.

[xii] Art. 8º. Nas Comarcas em que não foram instalados os Juizados Especiais de Fazenda Pública ficam designados para processamento das ações de competência do JEFAZ: I - as Varas da Fazenda Pública, onde instaladas; II - as Varas de Juizado Especial, com competência cível ou cumulativa, onde não haja Vara da Fazenda Pública instalada; III - os Anexos de Juizado Especial, nas comarcas onde não haja Vara da Fazenda Pública e de Juizado Especial, designados os Juízes das Varas Cíveis ou Cumulativas para o julgamento.

[xiii] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Conflito de Competência nº 0032079-71.2019.8.26.0000. Órgão Especial. Relator: Desembargador Geraldo Wohlers, j. em 09. out. 2019. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=12976815&cdForo=0. Acesso em: 19 out. 2020.

[xiv] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravos de Instrumento n.   2054763-19.2020.8.26.0000; 2052428-27.2020.8.26.0000; 2064919-66.2020.8.26.0000.

[xv] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n. 2087062-49.2020.8.26.0000, como relator Desembargador FRANCISCO BIANCO, julgado em 22 jul. 2020. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=12976815&cdForo=0. Acesso em: 19 out. 2020.

 

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