Juizados Especiais Cíveis e o ato sentencial: novos contornos frente ao CPC/2015 – Por Antônio Pereira Gaio Júnior

20/06/2017

Coordenador: Gilberto Bruschi

No que tange ao ato sentencial, mais precisamente em sede de Juizado Especial Cível Estadual, reza a Lei n.9.099/1995 em seu art. 38 da LJE:

Art. 38. A sentença mencionará os elementos de convicção do Juiz, com breve resumo dos fatos relevantes ocorridos em audiência, dispensado o relatório.”

Em um primeiro momento, nítida a opção do legislador em conferir à sentença redação simples com a dispensa do relatório, não obstante, imprescindível a necessária fundamentação (sempre em sintonia com preceito constitucional - art. 93, IX da CF/88), com breve resumo dos fatos tidos como relevantes ocorridos em audiência.

Nota-se de pronto, que nada mais a Lei n. 9.099/95 dispôs acerca do ato sentencial, seja em seu todo ou mesmo com relação aos elementos que a compõem - fundamentação e dispositivo-  o que, de certo, aplicar-se-ia, até o advento do CPC/2015, o revogado CPC Buzaid.

É fato que o CPC/2015 procurou, diferentemente de seu antecessor, aprofundar na construção racional do ato sentencial, e no intuito de se evitar decisões solepsistas, ou seja, pouco afeitas para com o ideário do respeito à necessária vinculação ao Direito, norteando assim normativamente para um conjunto de atribuições negativas para fins de se ver realizada uma sentença dita “fundamentada”, definida como congruente, adequada e analítica, de modo a que pudesse sim, exteriorizar dentro de um Estado Constitucional de Direito a prestação jurisdicional longe das vontades pessoais, voluntaristas e/ou irracionais do órgão julgador.

Para tanto estabeleceu o art. 489, §1º:

§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;

VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Para melhor esclarecer os incisos deste digitado §1º, vamos às explicações.

Conforme determina o inciso I, do §1º em destaque, não basta a sentença se limitar a indicar, reproduzir ou parafrasear o ato normativo, devendo, efetivamente, explicar sua relação com a causa ou a questão decidida, ou seja, com o caso concreto, e não simplesmente transcrever o enunciado da regra em questão para fins de somente indicar em que se fundamenta o julgado.

Fundamental é, por tudo, que o magistrado explique especificamente o motivo da escolha da norma empregada.

Com relação ao entendimento do inciso II supra, deve qualquer decisão judicial empregar conceitos jurídicos determinados, explicando o motivo concreto de sua incidência no caso.

É fato que não somente legislativamente, mas, em igual ocorrência na experiência da vida forense, é prática extremamente comum o uso reiterado de conceitos jurídicos vagos e indeterminados,[1] tudo com o fito de se ter “espaço” para a justificável adequação em específica realidade quando do enfrentamento de uma questão, e por mais incrível que pareça, sendo esta de reconhecida complexidade ou não, levando-se inúmeras vezes a um uso irracional de pan-principiologismo, verdadeira usina de produção de princípios despidos de qualquer normatividade.

Já o inciso III nos demonstra que a sentença não poderá invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão, devendo-se ter uma explicação para aquele caso concreto debruçado. Evita-se assim a denominada decisão “padrão”, como por exemplo, ao deferir uma liminar onde simples e lacunosamente o julgador se presta apenas a dizer em sua decisão “estão presentes os pressupostos legais”, como se faz o padrão em qualquer outra decisão judicial.[2]

O inciso IV mostra a necessidade de o magistrado enfrentar todos os argumentos arguidos pelas partes no processo capazes de infirmar a sua conclusão frente a demanda enfrentada. Decorre daí, inegavelmente, o prestígio quanto à realização do contraditório como direito de influência (arts. 5º, LV, da CF/88; 9º e 10 do CPC). Tem as partes da controvérsia o direito de conhecer da razão adotada pelo órgão julgador quando de qualquer decisão judicial e para isso, inegável o enfrentamento dos argumentos deduzidos por elas. É o mínimo que se espera de uma prestação jurisdicional qualitativa, enquanto serviço público prestado.

No que se refere ao inciso V, este aponta ser é defeso a qualquer decisão judicial se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes e nem mesmo demonstrar que a questio em julgamento se ajusta àqueles fundamentos.

Assim, deve o julgador demonstrar a semelhança do caso que está a debruçar com o respectivo precedente utilizado ou mesmo com o conteúdo inventariado pelo qual se construiu a súmula em apreço, objetivando justificar adequadamente a utilização do precedente em questão em sua decisão e, igualmente, sua concordância com o caso em julgamento.

Por fim, o inciso VI, último inciso do fundamental dispositivo que é o §1º do art. 489, determina que não poderá a decisão judicial deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção[3] no caso em julgamento ou a devida superação do entendimento.[4]

Há de se entender neste ínterim pela importância da fundamentação analítica e adequada do comando judicial, justificadora aqui da autorização para que o julgador deixe de aplicar enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente manifestado por qualquer das partes.

Por tudo, infere-se sobre ao referido §1º e todos seus incisos, a evidência de que resultará, esperamos, em maior segurança e previsibilidade nas decisões judiciais, não privando o cidadão das fundamentações genéricas que o obstruem de saber as devidas e necessárias razões que levaram o Poder Judiciário a tomar determinada decisão.[5]

Aliás, bem dispondo sobre a racionalidade das decisões, atesta Ronaldo Kochem:[6]

A racionalidade das decisões judiciais é entendida como a possibilidade de realizar uma recognição analítica da decisão, isto é: a possibilidade de reconhecer da decisão judicial analiticamente, as diferentes operações realizadas (ou melhor: justificadas) pelo intérprete e, tendo em conta o método de cada uma dessas operações, de aferir a correção das operações. É por isso que a exigência constitucional de motivação das decisões judiciais deve ser lida como verdadeira exigência de fundamentação jurídica, i. e., de justificação racional da determinação dos fatos e da interpretação e aplicação da norma jurídica ao caso. Somente dessa forma a imputação das consequências jurídicas por meio do processo pode ser tida como não arbitrária.

Posto isso, notadamente, ante a ausência de maior regulação ou mesmo de especialidade acerca dos pontos pelos quais aprofunda o §1º do art. 489 do CPC/2015, não restam dúvidas da aplicação subsidiária da Lei n.9.099/95 e mesmo do microssistema dos Juizados Especiais,[7] não sendo encarado como qualquer óbice aos princípios estampados no art. 2º da Lei Especial. Pelo ao contrário! A motivação e fundamentação das decisões, corolário da Carta Constitucional de 1988 é de aplicação explicita a qualquer processo e procedimento, não valendo se furtar de dita aplicabilidade sob o manto da celeridade da prestação jurisdicional ou mesmo camuflando-se na economia das formas e/ou sua simplicidade. ]

A despeito de todos os importantes destaques retro referidos, qualificadores de um ato sentencial qualificado, em posição explicitamente contrária se encontra o Fórum Nacional dos Juizados Especiais (Fonaje), ao sustentar em seu Enunciado de n. 162: “Não se aplica ao Sistema dos Juizados Especiais a regra do art. 489 do CPC/2015 diante da expressa previsão contida no art. 38, caput, da Lei 9.099/95 (XXXVIII Encontro – Belo Horizonte-MG). ”

Ora, o ato sentencial é a tradução do respeito do Estado para com qualidade da prestação do Serviço Público por ele prometido e concedido, de modo a que não possa o jurisdicionado, destinatário final junto com a solidária e conjunta sociedade, se abster de merecer, por pressuposto ético e deontológico, a razão adequada e analítica de seu pleito.

Por tudo dito, vale trazer a luz aqui a genialidade de Calamandrei,[8] onde, já de muito, esclarecia que em um Estado de Direito acende a exigência que o órgão julgador julgue em conformidade com a lei e não, a pretexto de aplicar a Constituição, conduza a sua interpretação de maneira inteiramente incompatível com os preceitos atinentes àquela Carta Maior.


Notas e Referências:

[1] Em obra clássica, bem ensina Karl Engisch ser conceito jurídico indeterminado um conceito cujo conteúdo e extensão são em larga medida incertos, causando insegurança e relativa desvinculação na aplicação da lei. (Introdução ao Pensamento Jurídico. 8 ed. Trad. J. Baptista Machado. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001, p. 208-210.

[2] HABEAS CORPUS. SENTENÇA MANTIDA EM SEDE DE APELAÇÃO. ABSOLUTA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO. ACÓRDÃO QUE SE LIMITA A MANTER OS FUNDAMENTOS DO JUIZ E ADOTAR O PARECER MINISTERIAL. NULIDADE. ORDEM CONCEDIDA. 1. O dever de motivar as decisões implica necessariamente cognição efetuada diretamente pelo órgão julgador. Não se pode admitir que a Corte estadual limite-se a manter a sentença por seus próprios fundamentos e a adotar o parecer ministerial, sendo de rigor que acrescente fundamentação que seja própria do órgão judicante. 2. A mera repetição da decisão atacada, além de desrespeitar o regramento do art. 93, IX, da Constituição Federal, causa prejuízo para a garantia do duplo grau de jurisdição, na exata medida em que não conduz a substancial revisão judicial da primitiva decisão, mas a cômoda reiteração. (STJ. 6º T. HC 232.653/SP. Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. Julg. 24.04.2012, DJe 07.05.2012).

[3] Com relação ao distinguishing, se presta a uma técnica ou método de confronto, sendo através desta que se faz a distinção entre os casos para efeito de se subordinar, ou não, o caso sob julgamento a um precedente. Para isso é necessário que se faça a identificação da ratio decidendi do precedente, bem como sua delimitação.

Não basta ao juiz apontar fatos diferentes sob o argumento de realizar a distinguishing; cabe-lhe, sim, argumentar para demonstrar que a distinção é material e que, portanto, há justificativa para não se aplicar o precedente.

[4] No que toca ao overruling, trata-se da revogação de um precedente. No entanto, para que se possa realizar o overruling, deve-se realizar a adequada confrontação entre os requisitos básicos, ou seja, a perda da congruência social e o surgimento de inconsistência sistêmica, além dos critérios que ditam as razões para a estabilidade ou para a preservação do precedente – basicamente, a confiança justificada e a prevenção contra a surpresa injusta.

[5] Enunciado n. 308 do FPPC: “Aplica-se o art. 489, § 1º, a todos os processos pendentes de decisão ao tempo da entrada em vigor do CPC. ”

[6] KOCHEM, Ronaldo. Racionalidade e decisão - A fundamentação das decisões judiciais e a interpretação jurídica. In: Revista de Processo, v. 244. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 68.

[7] No mesmo sentido está o Enunciado n.309 do FPPC: “O disposto no § 1º do art. 489 do CPC é aplicável no âmbito dos Juizados Especiais”.

Em posição contrária se encontra o Fonaje, ao sustentar em seu Enunciado de n. 162: “Não se aplica ao Sistema dos Juizados Especiais a regra do art. 489 do CPC/2015 diante da expressa previsão contida no art. 38, caput, da Lei 9.099/95 (XXXVIII Encontro – Belo Horizonte-MG). ”

[8] CALAMANDREI, Piero. Opere Giuridiche. Vol. I. Napoli: Morano Editore, 1965, p. 643-644.


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