JUIZ DE INSTRUÇÃO E JUIZ DE SENTENÇA

15/04/2020

A Mateus Costa Pereira 

I

O pendor dos processualistas nacionais por direito comparado - quando há - é bastante seletivo: unicamente lhes interessa o que reforça o princípio da autoridade (que é o eixo do instrumentalismo processual), jamais o princípio da liberdade (que é o eixo do garantismo processual). Por isso, não é de se estranhar o silêncio doutrinário brasileiro a um dos mais relevantes julgamentos da história processual mundial: a Sentença do Tribunal Constitucional da Espanha 145/1988, de 12 de julho de 1988, segundo a qual quem instrui não pode decidir quien instruye no juzga»). De acordo com a Corte espanhola, «[...] la actividad instructora, en cuanto pone al que la lleva a cabo en contacto directo con el acusado y con los hechos y datos que deben servir para averiguar el delito y sus posibles responsables puede provocar en el ánimo del instructor, incluso a pesar de sus mejores deseos, prejuicios e impresiones a favor o contra el acusado que influyan a la hora de sentenciar». Citando dois famosos precedentes do Tribunal Europeu de Direitos Humanos - «De Cubber vs. Bélgica» (sentença de 26/10/1984) e «Piersack vs. Bélgica» (sentença de 01/10/1982) - a Corte prossegue: «[...] en esta materia tienen importancia las aparencias, de forma que debe abstenerse todo Juez que pueda temerse legítimamente una falta de imparcialidad, pues va en ello la confianza que los Tribunales de una sociedad democrática han de inspirar a los justiciables, comenzando, en lo penal, por los mismos acusados» (<http://hj.tribunalconstitucional.es/es-ES/Resolucion/Show/1086>). É interessante notar o uso repetido do verbo «poder» como sinônimo de «ser possível», «ser provável», «haver risco ou perigo de se produzir certo efeito». Disse-se que a atividade instrutora PODE provocar no ânimo do instrutor preconceitos e impressões capazes de prejudicar ou favorecer o acusado. Disse-se, outrossim, que se deve afastar todo juiz que POSSA faltar com a imparcialidade. Ou seja, disse-se nas entrelinhas que, havendo dúvida etiológica, é preferível evitar-se uma ruptura de isenção a assumir-se o risco de produzi-la. Afinal de contas, isso melhor preserva a noção objetivista de imparcialidade como aparência, como seriedade, como inspiração de confiança aos jurisdicionados, que é tão cara à jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo. Em outras palavras, reconheceu-se implicitamente em matéria de imparcialidade um genuíno princípio de precaução [ing.: precautionary principle; fr.: principe de précaution; esp.: principio de precaución; it.: principio di precauzione; al.: Vorsorge Prinzip]. Havendo suspeita de que determinada ação cause quebra de imparcialidade, a ação não deve ter lugar, ainda que inexista consenso científico irrefutável sobre essa causação; na dúvida, não se corre o risco de se quebrar a imparcialidade (sobre o tema, v. nosso Imparcialidade como esforço. <https://emporiododireito.com.br/leitura/42-imparcialidade-como-esforco>). Enfim, conferiu-se ao tradicional princípio da precaução uma eficácia jurídica extra-, supra- ou trans-ambiental. As consequências da incidência desse princípio sobre o direito processual - em qualquer de seus desdobramentos procedimentais (civil, penal comum, penal militar, eleitoral, administrativo, tributário, trabalhista etc.) - seriam enormes. Uma delas seria o sepultamento da identidade física do juiz e da pan-oralidade à tout propos: em lugar de permitir ao instrutor que sentencie enquanto a firmeza, o tom de voz, os gestos, a fisionomia, as emoções, a «simplicidade da inocência» e o «embaraço da má-fé» lhe estejam vivos no espírito, é preferível que não julgue impactado por impressões subjetivas, não raro inconfessas, inescritas e, portanto, impassíveis de controle objetivo-racional pelas partes e pelas instâncias superiores. Decididamente, não se pode admitir que a liberdade e o patrimônio das pessoas fiquem à mercê de «convicções íntimas» fundadas não apenas em aspectos verbais escritos da comunicação [ex.: declarações reduzidas a termo], mas também em aspectos verbais não escritos [ex.: declarações não reduzidas a termo] e aspectos não verbais [ex.: contexto e modo de transmissão dessas declarações]. Daí por que a garanticidade está em abolir a identidade física do juiz, não em glorificá-la (em sentido contrário: BARROS, Ivone da Silva. A identidade física do juiz no processo penal brasileiro. São Paulo: PUC-SP [dissertação de mestrado], 2008, p. 171; DEMERCIAM, Pedro Henrique. A oralidade no processo penal brasileiro. São Paulo: Atlas, 1999, p. 59; GÁLVEZ, Juan Monroy. Teoría general del proceso. 3. ed. Lima: Communitas, 2009, p. 199-200; PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 241; SILVA, Marco Antonio Marques da. Acesso à justiça penal e Estado Democrático de Direito. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001, p. 193; SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de processo civil. v. I. 5. ed. São Paulo: RT, 2000, p. 68). Outra consequência seria a erradicação ad cautelam das iniciativas judiciais probatórias: ante a antiga, acalorada e inacabável controvérsia sobre a (in)contaminabilidade do juiz pela prova por ele próprio ordenada, é preferível que essa iniciativa não seja simplesmente admitida. Por fim, seria inaceitável que o juiz que proferiu a sentença terminativa nulificada enfrentasse o mérito da causa, pois a experiência mostra que ele tende à improcedência. Da mesma forma, seria inaceitável que o juiz que concedeu a liminar proferisse a sentença, pois a experiência mostra que ele propende à procedência.

 

II

Atualmente, o insight garantista do Tribunal Constitucional espanhol encontra respaldo científico-psicológico. A separação entre juiz instrutor e juiz sentenciador impede que o segundo se contamine pelo chamado «viés de representatividade» [representativeness bias]. A mente humana realiza simplificações - as heurísticas - para processar informações exteriores complexas e possibilitar a tomada eficiente de decisões. Essa complexidade excede a capacidade cerebral de processar informações; como resultado, os decisores são impelidos a cometerem erros. No entanto, a complexidade aumenta ao tomar-se uma decisão diante de uma situação de dúvida, conflito ou incerteza. Um tipo heurístico bastante conhecido são os vieses cognitivos [cognitive biases]. Trata-se de formas disfuncionais de processar a informação, que afetam o raciocínio lógico-abstrato e ocorrem de modo previsível em circunstâncias particulares em todos os países e culturas. Não se trata de desvirtuamentos provocados por emoções (medo, afeição, ódio etc.), mas de erros sistemáticos na opinião de pessoas normais, que ocorrem no projeto do mecanismo cognitivo. Exemplos de vieses cognitivos: cheerleader effect [= tendência de achar uma pessoa mais atraente em grupo do que isolada]; conjuction fallacy [= tendência de assumir que as condições específicas são mais prováveis do que as condições gerais];  distinction bias [= tendência de ver duas opções como mais diferentes ao avaliá-las simultaneamente do que ao avaliá-las separadamente]; subaddivity effect [= tendência de julgar menor a probabilidade do todo do que a probabilidade das partes]; optimism bias [= tendência que leva alguém a crer que é menos provável que tenha um evento negativo]. No plano jurídico-processual, valem menção os seguintes vieses: i) anchoring effect [= tendência a que a valoração inicial influa desproporcionalmente nas valorações posteriores - e.g., ao juiz que haja tido contato com a prova ilícita é difícil ignorá-la]; ii) confirmation bias [= tendência a priorizar informações que apoiam a hipótese inicial e ignorar aquelas que a contradigam - e.g., o juiz que haja concedido liminar tende à procedência]; iii) representativeness bias [= tendência a concluir que a amostra analisada representa a categoria inteira - e.g., o juiz da prova oral tende a se contaminar por gestos, atitudes, perturbações e surpresas, achando, p. ex., que no interrogatório o réu nervoso é culpado e o réu calmo inocente] (sobre o viés de representatividade, v., p. ex.: ANGNER, Erik. A course in behavioral economics. New York: Palgrave Macmillan, 2012, p. 81 e ss.; BAR-HILLEL, Maya. Studies of representativeness. Judgement under uncertainty: heuristics and biases. Coord. Daniel Kahneman et al. New York: Cambridge University Press, 2008, p. 69-83; BAZERMAN, Max H. e MOORE, Don. Processo decisório. 7. ed. Trad. Daniel Vieira. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 10-12 e 27-38; DAVIDSON, Denise, MACKAY, Marie e JERGOVIC, Diana. The effects of stereotypes on children’s use of decision heuristics. Applications of heuristics and biases to social issues. Coord. Linda Health et al. New York: Plenum Press, 1994, p. 242 e ss.; GARB, Howard N. Cognitive heuristics and biases in personality assessment. Applications..., p. 73-77; GILOVICH, Thomas e SAVITSKY, Kenneth. Like goes with like. Heuristics and biases: the psychology of intuitive judgment. Coord. Thomas Gilovitch et al. New York: Cambridge University Press, 2002, p. 617- 624; GUTHRIE, Chris, RACHLINSKI, Jeffrey J. e WISTRICH, Andrew J. Blinking on the bench. Cornell Law Review. 2007. v. 93, p. 1-43; HANSON, Jon D. e KYSAR, Douglas A. Taking behavioralism seriously. New York University Law Review. v. 74. jun. 1999, p. 664 e ss.; HEALTH, Linda e TINDALE, R. Scott. Heuristics and biases in applied settings. Applications..., p. 2-4; JUSSIM, Lee, MADON, Stephanie e CHATMAN, Celina. Teacher expectations and students achievement. Applications..., p. 319-320; JUST, David R. Introduction to behavioral economics. New York: John Wiley & Sons, 2014, p. 156 e ss.; KAHNEMAN, Daniel e TVERSKY, Amos. Belief in the law of small numbers. Judgment under uncertainty..., p. 25; idem. Extensional versus intuitive reasoning. Heuristics and biases..., p. 19-48; idem. Judgment under uncertainty. Judgment under uncertainty..., p. 4-10; idem. Subjective probability. Judgment under uncertainty..., p. 36; KELMAN, Mark. The heuristics debate. New York: Oxford University Press, 2011, p. 24-25; KOHAN, Nuria Cortada de. Los sesgos cognitivos en la tomada de decisiones. International journal of psychological research. 2008. v. 1. n. 1, p. 69-70; KOROBKIN, Russell B. e ULEN, Thomas S. Law and behavioral science. California Law Review. v. 88. n. 4. jul. 2000, p. 1085 e ss.; LURIGIO, Arthur J., CARROLL, John S. e STALANS Loretta J. Understanding judges’ sentencing decisions. Applications..., p. 98; RACHLINSKI, Jeffrey J. The uncertain psychological case for paternalism. Northwestern University Law Review. v. 97. n. 3. 2003, p. 1171; SCHWARTZ, Steven. Heuristics and biases in medical judgment and decision making. Applications..., p. 52-59; SHILOH, Shoshana. Heuristics and biases in health decision making. Applications..., p. 16-18; SHILOH, Shoshana. Heuristics and biases in health decision making. Applications..., p. 16-18; SUNSTEIN, Cass R. e THALER, Richard H. Nudge. New Haven and London: Yale University Press, 2008, p. 26-31; WILKINSON, Nick e KLAES, Matthias. An introduction to behavioral economics. 2. ed. New York: Palgrave Macmillan, 2012, p. 119 e ss.).

 

III

Entretanto, o impacto dos vieses cognitivos pode ser reduzido mediante técnicas ou estratégias chamadas debiasing. Elas podem: 1) operar diretamente sobre os erros para tentar reduzi-los ou limitá-los (ex.: obrigar o fornecedor a prover os consumidores de informação adicional para lhes suprir a incapacidade de compreender plenamente os riscos do produto ou serviço) [= debiasing stricto sensu]; ou 2) isolar os resultados dos limites do comportamento humano (ex.: remover da tomada de decisões corporativas importantes os inside directors, contaminados pelo optimism bias, e substituí-los por outside directors, mais capazes de generalizar situações e identificar semelhanças) [= insulating]. Além do mais, as técnicas podem dar-se: a) «dentro da lei» (o próprio direito interfere para reduzir ou limitar os efeitos do viés cognitivo - ex.: colegialidade; exigência de decisões judiciais motivadas); ou b) «fora da lei» (não há como a lei interferir para reduzir ou limitar os efeitos do viés, pois tudo depende de mudanças na cultura pessoal e na postura profissional do decisor - ex.: educação dos operadores do direito em vieses cognitivos; técnica do «advogado do diabo» ou do «considerar o oposto») (para um aprofundamento sobre os vieses cognitivos, v., e.g., nosso Levando a imparcialidade a sério. Salvador: Juspodivm, 2018. Sobre debiasing, p. ex.: BAZERMAN, Max H. e MOORE, Don. Processo decisório..., p.  260-265, 267-268 e 271-274; BURKE, Alafair. Neutralizing cognitive bias. NYU Journal of Law & Liberty. v. 2. n. 3. 2007, p. 512-530; FARIÑA, Francisca, ARCE, Ramón e NOVO, Mercedes. Heurístico de anclaje en las decisiones judiciales. Psicothema. v. 14. n. 1, p. 39-46; FISCHHOFF, Baruch. Debiasing. Judgment under uncertainty..., p. 422-444; JOLLS, Christine. Behavioral economics and the law. Hanover: Now, 2011, p. 26 e ss.; JOLLS, Christine e SUNSTEIN, Cass R. Debiasing through law. Behavioral Law and Economics. v. III. Coord. JEFFREY J. Rachlinski. Edward Edgar: Northampton, 2009, p. 431-473; KAHNEMAN, Daniel e LOVALLO, Dan. Timid choices and bold forecasts. Management science. v. 39. n. 1. jan. 1993, p. 17-31; KANG, Jerry e BANAJI, Mahzarin. Fair measures. Behavioral Law and Economics. v. II..., p. 222-277; PI, Daniel, PARISI, Francesco e LUPPI, Barbara. Biasing, debiasing, and the law. The Oxford Handbook of Behavioral Economics and the Law. Coord. Elyal Zamir et al. New York: Oxford University Press, 2014, p. 143-166; RACHLINKSI, Jeffrey J. e FARINA, Cynthia R. Cognitive psychology and optimal government design. Behavioral Law and Economics. v. III..., p. 253-319; WILSON, Thimoty, CENTERBAR, David B e BREKKE, Nancy. Mental contamination and the debiasing problem. Heuristics and biases..., p. 185-200). Nesse sentido, a separação entre o juiz instrutor e o juiz sentenciador é uma técnica de insulating «dentro da lei». Isola-se o instrutor, atribuindo-se a outro a função de sentenciar. O instrutor é substituído pelo sentenciador: logo que encerrada a atividade instrutória, o primeiro remete os autos ao segundo. Enfim, a lei procedimental cria um agente intermediário entre a produção e a valoração da prova. Destaca-se um juiz para enviesar-se ex ante e retirar-se ex post, confinando em si o viés de representatividade que a instrução probatória - mormente a instrução probatória oral - pode incutir. Se se decidiu pela necessidade de conversão do julgamento em diligência, o sentenciador deve devolver os autos ao instrutor. Tem-se, assim, uma divisão de trabalho bastante inusitada, pois a sua índole não é eficientista, mas garantista. Não se procura otimizar nem dinamizar a produção decisória, mas «tão apenas» aumentar-lhe os graus de imparcialidade e, em consequência, de republicanidade. Trata-se, enfim, de uma distinção de tarefas muito bem delimitada: quem julga não instrui e quem instrui não julga. Ao sentenciador só cabe sentenciar; todo o mais cabe ao instrutor. Este - a um só tempo - «prepara o terreno» para aquele e livra-o dos males da superoralidade chiovendiana. De qualquer maneira, tanto um quanto outro são «os» juízes da causa. Não há hierarquia entre eles, senão uma diferença de especialização. Com isso se resguarda a higidez psíquico-cognitiva com a qual se devem realizar os julgamentos. Sublinhe-se: cuida-se de uma técnica de insulating, não de debiasing stricto sensu. Prefere-se isolar o juiz da instrução a tentar reduzir-lhe ou limitar-lhe o enviesamento. Entende-se - com acerto - que nesse caso o isolamento é muito mais praticável e eficiente que o desenviesamento. É preciso frisar que instrutor e sentenciador são designados sincronicamente e os autos do processo transitam pela mesma secretaria. Não existem dois juízos funcionalmente competentes [juízo do instrutor → juízo do sentenciador], mas apenas um [juízo do duo instrutor + sentenciador]. Entre o instrutor e o sentenciador se repartem atribuições dentro de um único e mesmo órgão. Se a vara judicial tem dois magistrados, um é o instrutor e o outro o sentenciador; se a vara só tem um magistrado, é recomendável que ele seja o instrutor e que o sentenciador seja um magistrado externo designado ad hoc. Em se tratando de órgão colegiado, destaca-se um integrante para instruir e outros para prolatarem o acórdão: estes compõem a turma ou câmara julgadora; aquele, não. Quanto aos tribunais de júri e às auditorias de justiça militar, infelizmente nada se pode fazer, senão extinguir-lhes a atual forma de instrução e julgamento, que é uma máquina infrene de enviesamentos.

 

IV

Justamente para neutralizar esses erros de representatividade na valoração das declarações de partes e testemunhas, GUTHRIE, RACHLINSKI e WISTRICH propõem a especialização funcional de juízes, que chamam de «divided decision-making strategy»: juízes destinados só ao gerenciamento dos casos [«judges functioned solely as case managers»] e juízes destinados só ao julgamento propriamente dito [«judges functioned solely as adjudicators»] (Inside the judicial mind. Behavioral Law and Economics. v. III..., p. 51. No mesmo sentido: GALLO, Jaime Alonso. Las decisiones en condiciones de incertidumbre y el derecho. InDret - Revista para el análisis del derecho. n. 4. 2011, p. 21). Também com apoio nas pesquisas sobre vieses, ARTURO MUÑOZ ARANGUREN entende ser «inimaginable para nuestra actual conceptuación del derecho procesal, por ejemplo, la posibilidad de que una misma persona instruya y decida una causa penal, sin riesgo de quedar gravemente condicionada su imparcialidad» (La influencia de los sesgos cognitivos en las decisiones jurisdiccionales. InDret - Revista para el análisis del derecho. n. 2. 2011, p. 12). Embora não se escore nessas pesquisas, GLAUCO GUMERATO RAMOS também propõe algo similar: um «procedimento judicial funcionalmente escalonado», em que haja «um juiz para a urgência, um para a instrução e um para a sentença, que deve atuar na respectiva etapa de competência»; assim, «o juiz da urgência não pode ser o mesmo da sentença» e «o juiz da instrução e/ou da prova de ofício não poderá ser o mesmo da resolução do mérito» (Sistema de enjuizamento escalonado... RBDPro. ano 89. n. 71. jul/set 2010, p. 65). Todas essas propostas algorítmicas impedem que as enviesadas impressões do instrutor - nascidas do contato direto com partes e testemunhas - sirvam de fundamentos irracionais ocultos da sentença. Todavia, ainda que instrutor e sentenciador não sejam a mesma pessoa, deve-se cuidar para que o segundo não assista à gravação audiovisual das audiências, pois isso lhe daria acesso oblíquo a vacilos, tons de voz, gestos, fisionomias, emoções e tudo quanto se precise encobrir. Daí a necessidade escritural de se reduzirem os depoimentos a termo. Definitivamente, não se pode subestimar a «racionalidade procedimental limitada» [bounded procedural rationality] - que os vieses cognitivos revelam - das pessoas em geral e dos juízes em particular (obs.: não se confunde racionalidade limitada com irracionalidade). Como cediço, a aplicação da teoria da escolha racional ao direito é problemática. O número excessivo de comparações e informações para uma decisão judicial plenamente racional a torna impossível. Exigir-se-ia do juiz uma capacidade computacional ilimitada e, portanto, irreal. Afinal, o processo mental humano tem limitações inerentes. Logo, a ideia de «racionalidade procedimental total ou plena» [full procedural rationality] não passa de «ficção», «modelo», «metáfora», «forma explicativa não literal». Conforme HERBERT SIMON, na tomada de decisões, consideramos cada opção e, depois, selecionamos uma tão logo a entendamos satisfatória [«satisfactory»], ou simplesmente boa o suficiente [«good enough»] para cumprir nosso nível mínimo de estabilidade (Models of man. New York: John Wiley & Sons, 1957, p. 196 e ss. Do mesmo autor, v., ainda: Rational decision making and business organizations. Advances in behavioral economics. Coord. Leonard Green e John H. Kagel. Norwood: Ablex, 1987, p. 27 e ss. Sobre a noção de bounded rationality: CAMERER, Colin, ISSACHAROFF, Samuel, LOEWENSTEIN, George, O’DONOGUE, Ted e RABIN, Matthew, Regulation for conservatives. Behavioral law and economics. v. III..., p. 390-394; EISENBERG, Melvin A. Behavioral economics and contract law. The Oxford Handbook of Behavioral Economics and the Law..., p. 442-443; HILLMAN, Robert A. The limits of behavioral decision theory in legal analysis. Behavioral law and economics. v. I..., p. 86 e ss.; JOLLS, Christine. Behavioral economics and the law..., p. 11-17; JOLLS, Christine e SUNSTEIN, Cass R. Debiasing through law. Behavioral Law and Economics. v. III..., p. 435; JOLLS, Christine, SUSTEIN, Cass R. e THALER, Richard H. A behavioral approach to law and economics. Behavioral Law and Economics. v. I..., p. 9-10; JUST, David R. Ob. cit., p. 8-10; KOROBKIN, Russell B. e ULEN, Thomas S. Ob. cit., p. 1075 e ss.; RUBINSTEIN, Ariel. Modeling bounded rationality. Cambridge: MIT Press, 1988, p. 3 e ss.; SUNSTEIN, Cass R. Behavioral law and economics. American Law and Economics Review. 1999. v. 1. n 1-2, p. 121 e ss.). Isso abre brecha para essa capacidade limitada de discernimento ser distorcida sistematicamente por vieses cognitivos. Aliás, juízes profissionais não são menos expostos a essas distorções do que juízes leigos. Ao menos não há diferença relevante quanto ao grau de afetação, apesar da maior experiência e da expertise dos juízes profissionais (cf. BAUM, Lawrence. Motivation and judicial behavior. The psychology of judicial decision making. Coord. David Klein e Gregory Mitchell. New York: Oxford University Press, 2010, p. 8; KOROBIN, Russell B. The problems with heuristics for law. Heuristics and the law. Coord. Gerd Gigerenzer et al. Cambridge: The MIT Press. 2006, p. 54; ROWLAND, C. K., TRAFICANTI, Tina e VERNON, Erin. Every jury trial is a bench trial. The psychology of judicial decision making..., p. 183). Logo, todo cuidado institucionalizado é pouco para que o instrutor - uma boundedly rational person como outra qualquer - não julgue por automatismos simplificadores e erros de representatividade. Daí a conveniência de impedi-lo de sentenciar.

 

V

É comum restringir-se a separação instrutor-sentenciador ao âmbito procedimental penal. Nada justifica, porém, a inextensibilidade dessa separação aos âmbitos procedimentais não penais. Decididamente, não se trata de um quid específico da persecutio criminis. O problema da imparcialidade judicial é antes processual que procedimental; é antes constitucional que infraconstitucional. Em qualquer dos seus desdobramentos procedimentais (penal comum, penal militar, civil, trabalhista, eleitoral, tributário, administrativo etc.), a separação instrutor-sentenciador é conveniente ao processo. Isso porque é das tantas formas eficientes de se garantir a imparcialidade judicial. Lembre-se que uma das notas essenciais da jurisdição é a imparcialidade (cf., p. ex., GRINOVER, Ada Pellegrini. O princípio do juiz natural e sua dupla garantia. Revista de Processo. jan-mar/1983. v. 29, p. 11: «a imparcialidade do juiz, mais do que simples atributo da função jurisdicional, é vista hodiernamente como seu caráter essencial»). De acordo com GONZALO M. ARMIENTA CALDERÓN, «historicamente la cualidad preponderante que aparece inseparable de la ideia misma del juez, desde su primera aparición en los albores de la civilización, es la imparcialidad» (Teoría general del proceso. 2. ed. México: Editorial Porrúa, 2006, p. 142). Sob o ponto de vista puramente jurídico, as funções do Estado são duas: a) a criação do direito; b) a aplicação do direito. Contudo, por razões de conveniência político-institucional, a aplicação do direito se há de fazer b.1) por terceiro imparcial à relação jurídica discutida, b.2) por terceiro não imparcial à relação jurídica discutida ou b.3) pela própria parte da relação jurídica discutida. Grosso modo: em (a) tem-se a função jurislativa (que é desempenhada preponderantemente, mas não exclusivamente, pelo Poder Legislativo); em (b.1), a função jurisdicional (que é desempenhada preponderantemente, mas não exclusivamente, pelo Poder Judiciário); em (b.2) e (b.3), a função administrativa (que é desempenhada preponderantemente, mas não exclusivamente, pelo Poder Executivo).  Logo, como se vê, onde há jurisdicionalidade, há de haver imparcialidade. Se têm pretensão de jurisdicionalidade, então devem ser igualmente imparciais as justiças penal comum, penal militar, civil, trabalhista, eleitoral, tributária, administrativa etc. Admitir que um ramo da jurisdição possa ser menos imparcial significa admitir que possa ser menos jurisdicional e, por conseguinte, mais administrativo. Não há lugar, por exemplo, para que o grau de imparcialidade institucionalizada seja máximo na justiça penal, médio na justiça civil e mínimo na justiça do trabalho. Não há sentido em que a justiça penal seja invariavelmente imparcial, a justiça civil ocasionalmente parcial e a justiça do trabalho invariavelmente parcial. Isso faria: 1) da justiça penal um órgão holo-jurisdicional (isto é, una interezza di jurisdição); 2) da justiça civil um órgão hemi-jurisdicional (isto é, mezzo jurisdição, mezzo administração); 3) da justiça do trabalho um órgão a-jurisdicional (isto é, uma interezza di administração). Não se há de falar em um «espectro de jurisdicionalidade», em que a faixa mais densa seja ocupada pela justiça penal, as faixas intermediárias pela justiça civil e a faixa menos densa pela justiça do trabalho. Por isso, não há motivo, por exemplo, para que: i) os âmbitos procedimentais civil e extrapenal tenham causas de suspeição e impedimento diferentes entre si (quando muito se toleram diferenças que atendam às especificidades de cada âmbito); ii) somente no âmbito procedimental penal se impeça de sentenciar o juiz que haja tido contato com o conteúdo de prova inadmissível; iii) somente no âmbito procedimental penal se proíba a prova de ofício; iv) somente no âmbito procedimental penal se destaque um juiz para a apreciação de pedidos de concessão de tutela de urgência; v) somente no âmbito procedimental penal se destaque um juiz para a execução da sentença. Outrossim, não há razão para que somente no âmbito procedimental penal se institua uma separação funcional entre o juiz instrutor e o juiz sentenciador. Os diferentes regimes procedimentais sobre imparcialidade judicial são intercambiáveis. O que vale para um ramo procedimental, deve valer - se adaptável - para o outro. Na verdade, a imparcialidade do juiz só pode ser submetida a um regime jurídico unitário. Pudera: a jurisdição é una e a exigência de imparcialidade tem envergadura constitucional. Percebe-se, assim, que ao Brasil falta muito para que a imparcialidade seja mais levada a sério. É inegável que a Lei 13.964/2019 - a mal chamada «Lei Anticrime» - trouxe importantes reinforcements à imparcialidade judicial. O «juiz de garantias» é o exemplo mais famoso. Todavia, por enquanto, esses reinforcements estão infelizmente circunscritos ao âmbito procedimental penal. Além disso, em meio a eles não está contemplada a benfazeja separação entre juiz instrutor e juiz sentenciador. Portanto, é preciso ainda conferir uma maior completude garantística ao procedimento penal. Mais: é preciso estender toda essa completude aos demais ramos procedimentais (civil, trabalhista, eleitoral, tributária, administrativa etc.). No final das contas, o processo - sem qualquer adjetivo - é uma garantia contra-arbitrária do cidadão em juízo [CF/1988, art. 5º, LIV]. Sendo limite ao exercício da função jurisdicional, o processo serve para manter o juiz nos trilhos rígidos da imparcialidade. Pouco importam o ramo do direito material aplicável e a natureza do conflito sub judice.

 

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