A recente alteração legislativa empreendida no final de 2019 acarretou diversas mudanças em nosso modelo de Justiça Penal.
Como toda reforma legislativa, sobretudo do tamanho da que foi empreendido pela Lei n. 13.964/2019, só o tempo dirá como será aplicada e interpretada pelos tribunais e se, de fato, aperfeiçoará o nosso sistema criminal, como menciona, de forma um tanto quanto presunçosa, o próprio texto legal.
As mudanças foram muitas, em especial quanto à adoção de um modelo de justiça negociada muito mais amplo que o admitido em sede de Juizados Especiais Criminais (Lei 9.099/95), não obstante, antecipa-se, pensamos se tratar esta opção legislativa de um erro, pois a justiça negocial já não vinha dando certo antes, com os crimes de menor potencial ofensivo, que se dirá agora, em que se impõe que o acordo implique até mesmo admissão de culpa.
Este assunto, contudo, será objeto de outro artigo, assim como tantas outras mudanças empreendidas pela Lei apelidada como Anticrime, que alterou não só o Código Penal, mas também o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal, além de diversas leis extravagantes.
Mudança bastante comentada refere-se ao juiz de garantias.
Em síntese, a lógica do juiz de garantias nada mais constitui que a concretização da ideia (que não é nova entre nós) em se reservar a investigação preliminar ao acompanhamento de um juiz diverso do que irá acompanhar um eventual futuro processo penal, na hipótese de dedução da ação penal.
Isso porque, em nosso sistema, o mesmo juiz que acompanha a investigação policial, deferindo, quando for o caso, medidas cautelares de urgência e de obtenção de prova (por exemplo, autoriza a quebra do sigilo de dados, uma interceptação telefônica, uma busca e apreensão), também recebe a acusação e acompanha o processo deduzido, sentenciando o feito.
A adoção do juiz de garantias, implicando a necessidade de haver dois magistrados acompanhando o feito penal, evitaria, na ótica dos entusiastas da novidade legal, o inconveniente ou o risco de o mesmo magistrado, apenas pelo fato de ter acompanhado a investigação preliminar, ficar “contaminado” com a atividade que teria desempenhado em sede de inquérito policial.
Não nos parece, hoje, com um novo entendimento sobre a questão[1], seja um temor fundado, observando-se que o nosso juiz, na fase de investigação preliminar, não tem um protagonismo como o existente, por exemplo, nos modelos de juizado de instrução, nos ordenamentos jurídicos alienígenas, em que vigoraria a lógica do juiz de garantias (para fazer frente, justamente, a este protagonismo investigatório, que não se aplica a nós).
Em primeiro lugar, é e sempre foi muito controversa a afirmação de que o juiz que tenha acompanhado a investigação preliminar ficaria impedido para julgar a causa.
Basta uma rápida consulta à jurisprudência de qualquer tribunal nacional para verificar que o fato de o juiz autorizar medidas cautelares não significa que tenha ficado parcial a favor da tese da acusação, assim como fato de indeferir pedidos dos órgãos da persecução não significa que tenha abraçado a causa da defesa, tornando-se parcial a esta. Mesmo porque, ao deferir a produção de determinado meio de prova, o juiz nada mais estará exerendo que a sua função, em prol da necessária investigação dos fatos, para o seu correto acertamento.
Outrossim, o fato de se autorizar uma medida probatória (meio de obtenção de prova) não implica, necessariamente, o comprometimento do magistrado com qualquer tese, seja a favor ou contra quem quer que seja, pois o resultado probatório pode ser favorável a qualquer das partes.
Argumenta-se: mas o juiz, ao autorizar alguma medida, visaria chegar a algum lugar. De fato, o magistrado tem por objetivo chegar a algum lugar, consistente em apurar o fato, seja trabalhando com a hipótese de a acusação ser procedente, seja improcedente.
Quem levanta a objeção esquece que esta também é a sua função apurar os fatos, na medida em que juiz tem o dever de verificar como o fato aconteceu na realidade e, obviamente, para tanto, precisa autorizar meios de investigação probatória.
O juiz, sobretudo em matéria criminal, não pode ser uma samambaia, ou uma ameba, tampouco se manter inerte e/ou apático.
Obviamente, não pode ser proativo, tendencioso ou parcial, caso contrário não seria juiz, mas isso não implica que tenha quer ser uma múmia.
Esta discussão, é claro, passa por uma outra, bem mais profunda, que está relacionada aos modelos ou sistemas processuais penais, seja com relação à atividade probatória do magistrado, seja com relação à gestão da prova.
O debate atual em relação à atividade do juiz tem razões históricas e liga-se aos sistemas processuais continentais, haja vista a existência de três corpos distintos, quais sejam, inquisitório, acusatório e o que se chama por misto[2], que não devem ser confundidos com os modelos de investigação do sistema de Common Law, no direito angloamericado, divididos em adversarial e inquisitorial, sem uma necessária coincidência ou correspondência com o nosso.
Isso precisa ficar claro, pois há muita confusão entre um e outro modelo, confundindo as pessoas o sistema inquisitorial continental (em que o juiz não é imparcial) com o inquisitorial system, do modelo angloamericano.
Nos sistemas continentais, de fato, houve períodos em que o processo se iniciava por meio de uma acusação feita diretamente pelo juiz, cabendo a ele tanto o julgamento da causa como o papel, inclusive, de defender o acusado.
Trata-se do sistema inquisitório. O seu surgimento é situado junto com a Monarquia e ao Império romano, sendo que a lógica desse sistema alcançou sua maior expressão na investigação levada a cabo pela Inquisição. Aqui o próprio juiz acusava e instaurava o procedimento, concentrando em suas mãos a gestão da prova, o que, frise-se, não tem relação alguma com a atividade desenhada por nosso juiz, modernamente, que não pode (ou melhor, não poderia, haja vista o aberrante inquérito das fake news no STF) instaurar investigação de ofício.
Isso, mais uma vez, deve ficar claro, pois há quem afirme que vivíamos em um modelo de sistema inquisitório, afirmação completamente equivocada.
Com o passar do tempo, haja vista uma lenta e gradual conscientização de direitos do homem, percebeu-se que esse modelo de sistema inquisitorial, de vertente continental, não seria o mais justo e correto, exatamente porque não poderia o juiz exercer adequadamente, ao mesmo tempo, o papel de acusador, defensor e julgador. O magistrado, ao acusar, estaria comprometido já desde o início com a tese acusatória, por si formulada. Não haveria qualquer isenção por parte do juiz ao julgar alguém a quem, originariamente, imputou um fato delituoso. Verificava-se que o juiz, comumente, buscava tão-somente provar a acusação formulada por si[3].
Já no sistema denominado acusatório, ao se separarem as funções, verificava-se que o julgador não se encontrava comprometido com qualquer tese. Estaria assim melhor assegurada a imparcialidade do juiz, pressuposto de qualquer processo justo. Não há, evidentemente, coincidência subjetiva entre órgão acusador e julgador[4]. O sistema acusatório representa um modelo de preservação da forma processual, principalmente pela desvinculação da atividade persecutória pelo juiz[5].
Como uma espécie de meio termo a esses dois sistemas, haveria a criação do sistema misto, sendo exemplo mais significativo o sistema francês, surgido no período napoleônico, no Code d’ Instruction Criminalle de 1808. A investigação seria toda dirigida pelo juiz, em uma lógica mais ligada ao sistema inquisitorial (sistemas dos juizados de instrução, que não foram adotados por nós), sendo que, na ação penal propriamente dita, quando houvesse acusação formal, haveria o norteamento do processo de acordo com uma lógica mais acusatória, com as partes atuando[6].
Ao lado desses grandes sistemas continentais (acusatório, inquisitório e misto), existem os sistemas adversarial e inquisitorial, mais ligados à tradição dos países de cultura anglo-americana.
O processo, nos países de cultura de Common Law, é visto como uma verdadeira luta ou contenda entre as partes, ficando inteiramente ao seu encargo “a responsabilidade pelo impulso da marcha processual, dentre a qual estaria incluída a produção e a apresentação da prova”[7].
O sistema adversarial e inquisitorial, seja o norte-americano, ou o inglês, nesse sentido, não têm relação com a conceituação existente nos países de cultura continental, que se faz em sistema inquisitorial e acusatório, havendo, quando muito, apenas confusão terminológica.
Com efeito, nos países de cultura anglo-americana, as funções de julgar, defender e acusar são separadas e muito bem definidas.
Na verdade, estes sistemas, tanto o adversarial, quanto o inquisitorial, já têm como pressuposto a separação de funções no processo, diferenciando-se apenas no que concerne à possibilidade de o juiz ostentar algum tipo de iniciativa ou atividade probatória, paralelamente à das partes, presente este dado no sistema inquisitorial, inexistindo no sistema adversarial.
Ultimamente, há uma tendência de aproximação entre todos estes sistemas[8], sendo possível pensar em um sistema acusatório, conforme pensado no modelo continental (com separação entre atividade acusatória e judicante), mas com contornos do modelo inquisitorial angloamericano (isto é, com possibilidade de atividade instrutória por parte do juiz, como ocorre entre nós) ou mesmo adversarial (em que não haveria qualquer possibilidade instrutória ao magistrado)
Deve-se ter em mente, como bem descreve Diogo Rudge Malan, que “tanto o processo adversarial quanto o não adversarial têm por instrumento a descoberta da verdade. Eles diferem não quanto a esse instrumental, e sim quanto ao mecanismo de descoberta da verdade visto como mais adequado, justo e socialmente legítimo”[9].
No ponto, deve ficar claro que inquisitivos (no sentido de indagativos, não devendo o termo ser lido com qualquer conotação autoritária) mostram-se todos os procedimentos penais, sejam acusatórios ou inquisitórios[10].
Sendo o fundamento do processo a busca da verdade atingível, sendo esta o verdadeiro fator de legitimação do próprio garantismo penal, na esteira da teoria de Luigi Ferrajoli, a persecução deve ser, obviamente, indagativa, isto é, investigatória, inquisitiva, o que não deve nem pode ser interpretado ou confundido como a possibilidade de arbítrio, próprio do sistema inquisitorial.
Do exposto acima, pode-se verificar que, no sistema inquisitório, há um protagonismo do juiz no que concerne às tarefas processuais, tendo amplos e irrestritos poderes para iniciar procedimentos e/ou produzir provas contra ou a favor ao acusado. Trata-se de sistema em que não há diálogo, atuando o magistrado, na maioria das vezes, para confirmar uma suspeita ou acusação formulada por si.
Não era o sistema instituído antes da própria promulgação do juiz de garantias, sendo que, especialmente com a Constituição de 1988, nossos juízes não poderiam ser catalogados como inquisitoriais, atuando conforme uma lógica dentro do modelo acusatório, sendo esta temperada com a admissibilidade de atividade instrutória, no curso do processo penal, supletiva à atividade das partes.
A adoção do juiz de garantias é uma possibilidade legislativa válida, não se mostrando, por si só, inconstitucional, do ponto de vista material[11], como sustentam alguns, mas talvez não fosse necessária, sobretudo porque o fato de um juiz acompanhar ou supervisionar o inquérito, mormente em nosso modelo legal – que, frise-se, não tem paralelo com o juizado de instrução, vigente no modelo europeu - não o tornaria um inquisidor no curso da ação penal.
Criou-se uma modalidade de impedimento para o juiz que não existia antes, nem, com o devido respeito, se justificaria.
Isso, aliado ao curto prazo de vacatio legis da reforma para implementação do juiz de garantias, pode levar à decretação de uma série de invalidades, que, não raro, irão privilegiar alguns poucos privilegiados em detrimentos de outros[12] (na maioria dos casos, sempre se pode argumentar que não houve comprovação do prejuízo ou que o caso anulado tem peculiaridades não presentes nos demais).
Obviamente, há situações de comprometimento da imparcialidade do juiz, em que ele passa a atuar não mais como magistrado, mas como parte e, geralmente, acusatória; entretanto, nestes casos, haveria sempre a possibilidade de oposição de suspeição, sendo que só o caso concreto poderia confirmar se haveria este vício.
Seja como for, nos casos mais aberrantes, não se precisaria da aprovação de um juiz de garantias, por exemplo, para chegar à conclusão de que o inquérito das fake news, instaurado no STF, de ofício, para apurar fatos incertos, contra manifestação da própria Procuradora Geral da República à época de sua instauração, constituiu uma verdadeira aberração jurídica, sendo o seu prosseguimento mantido à margem de qualquer legalidade ou constitucionalidade.
Notas e Referências
[1] No passado sim, pois tínhamos, anteriormente, uma mentalidade refratária à própria possibilidade de o juiz ter qualquer poder instrutório.
[2] ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal. São Paulo, RT, 2003, p. 35-36.
[3] PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo Penal. O direito de defesa: repercussão, amplitude e limites. 3ª ed. São Paulo: RT, 2001, p. 22.
[4] ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal, p. 38.
[5] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Uma nova teoria das nulidades, p. 110.
[6] “Daí a denominação de sistema misto: existência de uma fase inquisitorial secreta, presidida pelo juiz, sem participação da defesa, e de uma fase pública contraditória, com a intervenção da acusação e defesa” (FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação. São Paulo: RT, 2002, p. 56-57).
[7] ZILLI, Marcos Alexandre Coelho. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal, p. 26.
[8] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: RT, 2003, p. 154. Diogo Rudge Malan cita exemplo de incorporação de institutos jurídicos de uma família do direito pela outra justamente o fato de o Código de Processo Penal italiano, que tomou para si o princípio de gestão das provas pelas partes processuais, sendo que a recíproca também é verdadeira, na medida em que alguns sistemas de Common Law incorporaram aspectos da família romano-germânica, como ocorreu com o Código de Processo Civil de 1999, incrementando os poderes do juiz na condução do processo (MALAN, Diogo Rudge. Direito ao confronto no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 27 e ss.).
[9] MALAN, Diogo Rudge. Direito ao confronto no processo penal, p. 25.
[10] Ricardo Jacobsen Gloeckner critica a distinção feita por Rogério Lauria Tucci entre inquisitório e inquisitividade, diferenciação esta agasalhada por nós. Assim se manifesta o autor: “Lauria Tucci, inclusive, equivocadamente, estabelece uma pseudo diferenciação entre modelo inquisitivo e inquisitividade da atuação dos agentes estatais. Em suas palavras ‘mostra-se uniforme o entendimento universal acerca da distinção entre processo penal inquisitório, originado do Direito Penal Romano e aperfeiçoado segundo o modelo canônico, e a inquisitividade ínsita ao processo penal moderno’. O processualista pretende, como se fosse possível, distinguir a característica do sistema processual (inquisitório) e o substantivo marcado pelas características do próprio conceito. Sistema processual inquisitório representa aquele sistema em que o juiz detém poderes instrutórios. Inquisitividade – poderes instrutórios do juiz – somente pode ser pensado a partir do sistema inquisitório. Impossível um significante querer dizer uma mesma coisa e seu contrário (princípio da não contradição)” (GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Uma nova teoria das nulidades, p. 166).
[11] Muito embora, do ponto de vista formal, a inconstitucionalidade da lei possa e deva sim ser discutida, conforme a apresentação de várias ADINs.
[12] Não temos nada contra a decretação de nulidades, especialmente quando devidas, pois a nulidade serve para proteção de direitos. Contudo, causa estranheza o fato de nulidades serem reconhecidas para alguns poucos indivíduos, até de forma desnecessária, mas não são reconhecidas para inúmeras outras pessoas, embora a situação jurídica seja a mesma.
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