Juiz de Garantias: tópicos rápidos

23/01/2020

O termo juiz de garantias não é uma inovação do legislador brasileiro. O Código de Processo Penal do Chile, como exemplo, trata da Autorización judicial previa, que seria a necessidade autorização de um juiz (também chamado de juiz de garantias), para toda e qualquer atuação que possa privar o imputado (ou um terceiro) do exercício de um direito que a Constituição lhe assegure. Neste sentido, “cuando una diligencia de investigación pudiere producir alguno de tales efectos, el fiscal deberá solicitar previamente autorización al juez de garantia”.

O juiz das garantias é uma ação afirmativa em favor das garantias individuais. Sendo alguém estranho ao juízo de instrução e julgamento, é consequência da luta pela mudança de uma justiça penal e de uma (grande parte da) doutrina que foram edificados com base em um modelo de procedimentos penais inquisitivos, forte em leis como o Código de Processo Penal de 1940, com índole fascista e do Estado Novo de Getúlio Vargas. Destaca-se, desses modelos, o autoritarismo e a não aceitação pelo dialogo, sempre havendo certezas inquestionáveis em decisões tomadas por autoridades.

O termo, juiz de garantias, sequer deveria ser estranho ao atual Código de Processo Penal, caso não fosse o seu modelo autoritário, pois o artigo 251 reserva ao juiz a função de prover à regularidade do processo e manter a ordem no curso dos respectivos atos. Ora, somente existe regularidade se houver respeito à Constituição Federal. O problema é que o Código da década de quarenta, desconhece a Constituição de oitenta. E, regras, são para todos, inclusive impondo limitação de poderes e excluindo discricionariedades, arbitrariedades e inquisitorialidades[1].

Destaca-se a forma prolixa do legislador agir para dar pontualidade e extensão para que o juiz de garantias seja uma realidade. Bastaria a informação contida no Caput do artigo “O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário”. Isto é, sempre durante a fase de investigação processual haverá necessidade de reserva de jurisdição, caberá ao juiz de garantias atuar, diferenciando, assim, o acusador  e o juiz de instrução e julgamento.

Para ser específico sobre a sua necessidade de atuação, o legislador destacou um rol exemplificativo (não restrito), dos momentos em que, na fase de investigação, deverá haver atuação por este magistrado.

Receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Constituição Federal, pode parecer algo natural, mas a realidade é completamente outra. Por isso, ainda hoje, se faz necessário gravar na lei ordinária o respeito a comunicados imediatos ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada. Com a Lei 13.964/2019, institui-se a audiência de custódia, que deve ser dentro do prazo de 24 (vinte quatro horas), mesmo prazo fixado para receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão.

A grande inovação é sobre a competência para zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo. Não se discute que a questão do preso, no sistema carcerário brasileiro, é complexa.  Sendo que a do preso em caráter cautelar ou provisório é ainda mais temerário. Dentro deste cenário, surgem fatos curiosos, como as diversas denúncias que são feitas por pessoas presas, utilizando de canais estranhos para chegar ao judiciário, como comissões de direitos humanos, por exemplo. Com o novo dispositivo, será um direito do preso solicitar audiência com o seu juiz de garantias.

Sem dúvidas, o divisor de águas (por assim dizer) vai ser a obrigação de informar o juiz de garantias sobre a instauração de qualquer investigação criminal. Todas as investigações criminais, ainda que não tenham solicitações específicas para manifestação do juízo, deverão ser distribuídas e formaram um juízo de garantias competente, o qual ficará ciente dos atos de investigação.

Na sua essência, estará a função de decidir sobre requerimentos de prisão provisória ou outras medidas cautelares, assim como, prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral. Utopicamente, ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz de garantias, ao receber o pedido de medida cautelar, deveria intimar aquele sobre o qual recairia a medida, acompanhando cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo. No mesmo tocante, caberá decidir sobre os requerimentos e meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado, como de interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação; afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico; busca e apreensão domiciliar; acesso a informações sigilosas.

No tema probatório, as provas antecipadas nunca receberam a atenção que era necessária. Destaque para decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral. Além da possibilidade de deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia, o que se entende que ocorrerá na fase pré-processual (competência do juiz de garantias). Observe que, via de regra, a perícia possui contraditório mitigado, isto é, deslocado para durante o curso do processo judicial. Tanto assim, que pela redação do §4º do artigo 159, o assistente técnico atua a partir de sua admissão pelo juiz e após a conclusão dos exames e elaboração do laudo pelos peritos oficiais.

Tema interessante será, também, sobre o controle externo da atividade policial. Pois foi dado ao juiz de garantias a competência de prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso. Destaca-se, no entanto, que somente poderá prorrogar uma única vez, a duração do inquérito, por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada.

Da mesma fora que deve ser informado sobre a abertura de investigações, poderá determinar o trancamento do inquérito policial, quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento. Para tudo isso, poderá requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação.

Não sendo o juiz de garantias a autoridade coatora, lhe caberá, em primeiro grau de jurisdição, julgar a ação autônoma de habeas corpus, desde que impetrado antes do oferecimento da denúncia, posterior a denúncia a competência será do juiz de instrução e julgamento.

A insanidade mental do acusado é retratada no Código de Processo Penal nos artigos 149 ao 154, no qual já previa a possibilidade do exame ser ordenado ainda na fase do inquérito, mediante representação da autoridade policial ao juiz competente. Sendo fase pré-processual, a competência para determinar a instauração de incidente de insanidade mental, ficará por conta do juiz de garantias.

A Súmula Vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal garante ao defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa. Neste sentido, esvaziando ainda mais o teor aberto do artigo 20 do Código de Processo Penal, é dever do juiz de garantias,  prontamente e quando se fizer necessário, assegurar o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento (não documentadas).

A colaboração premiada é tema de modificação legislativa própria, igualmente trazida pela Lei 13.964/2019. Contudo, ficou fixada a competência do juiz de garantias para decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação.

Todas as matérias inerentes às atribuições de controle da legalidade da investigação criminal e da salvaguarda dos direitos individuais, cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, serão de competência do juiz de garantias, na fase pré-processual. Mas o ponto de maior destaque recai sobre o recebimento da denúncia ou queixa, ao fazer a menção do artigo 399 do Código de Processo Penal, principalmente, porque este servirá de marco para encerrar sua competência (art. 3º C). Debates sobre procedimentos e antinomias[2], que já eram feitos na reforma de 2008 do Código de Processo Penal. Observe que o juiz de garantias atuará até o recebimento da denúncia, e faz menção expressa ao artigo 399.

Assim, inicialmente, teríamos o seguinte modelo de competência:

Juiz de garantias:

Inquérito policial ->  denúncia -> analise rejeição (395) -> citação -> resposta à acusação (396) -> absolvição sumária (397) -> distribuição de competência para o magistrado que irá designar a audiência de instrução e julgamento (399).

 

Juiz de instrução e julgamento:

Analisar pendências e decidir novamente sobre medidas cautelares anteriormente fixadas -> Designar dia e hora para audiência -> realizar audiência -> ouvir razões finais -> sentença (juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença).

 

 

Notas e Referências

[1] Neste sentido, “A batalha: o velho inquisitivismo não quer morrer — mas o novo nascerá”, por Lenio Luiz Streck e Jorge Bheron Rocha, disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jan-06/opiniao-velho-inquisitivismo-nao-morrer-nascera acesso 06/01/2020.

[2]  PRADO, Geraldo. Em torno da jurisdição. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 99.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Figures of Justice // Foto de: Scott Robinson // Sem alterações

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