JUIZ DE GARANTIAS  

22/07/2021

 Coluna Defensoria Pública e Sistema de Justiça / Coordenadores Gina Bezerra, Jorge Bheron e Eduardo Januário

O Juiz de Garantias é um instituto novo no nosso ordenamento jurídico, inserido pela Lei 13.964/2019, conhecida Pacote Anticrime. Essa lei alterou a redação do art. 3º do Código de Processo Penal, fazendo a previsão ali do Juiz de Garantias.

Inicialmente, devemos verificar o que significa o Juiz de Garantias. O juiz das garantias é uma função exercida no processo criminal por um magistrado, encarregado de atuar como garantidor da eficácia do sistema de direitos e garantias fundamentais do acusado no âmbito do inquérito policial e, especialmente de dispor sobre a prisão provisória de uma pessoa investigada e seus respectivos pedidos de liberdade provisória, bem como de analisar os pedidos de medidas cautelares formulados na fase pré- processual.

O juiz de garantias surgiu para evitar que o juiz não ficasse psiquicamente ligado às decisões por ele proferidas no bojo das investigações. Aqui devemos lembrar a lembrar da Teoria da Dissonância Cognitiva, que teve entre seus maiores defensores o Professor Bernd Schünemann.

O Professor Bernd Schünemann realizou um estudo empírico com 58 juízes criminais e promotores de diversas regiões da Alemanha. O estudo consistia em aferir se o órgão julgador ficava com a objetividade comprometida quando tinha ciência integral dos autos da investigação preliminar e decidia pela admissibilidade da acusação, e depois passava a presidir a audiência de instrução, e ao final proferia a respectiva sentença.

Os resultados foram justamente no sentido de que (i) “o conhecimento de autos da investigação preliminar tendencialmente incriminadores leva o juiz a condenar o acusado, ainda que a audiência seja ambivalente, o que sugeriria uma absolvição” e (ii) “os juízes dotados de conhecimento dos autos não apreenderam e não armazenaram corretamente o conteúdo defensivo presente na audiência de instrução e julgamento, porque eles só aprendiam e armazenavam as informações incriminadoras, que já lhes eram conhecidas (‘redundantes’) em razão da leitura prévia dos autos” (efeito inércia ou perseverança).

Dessa forma, concluiu-se que “o processamento de informações pelo juiz é em sua totalidade distorcido em favor da imagem do fato que consta dos autos da investigação e da avaliação realizada pelo ministério público, de modo que o juiz tem mais dificuldade em perceber e armazenar resultados probatórios dissonantes do que consonantes”.

O juiz de garantias foi instituído com a finalidade de assegurar a estrutura acusatória do processo penal, de forma a vedar a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição por ele da atuação probatória do órgão de acusação.

Dessa forma, teremos dois juízes atuando no processo penal: o juiz de garantias, que atuará na fase do inquérito policial; e o juiz da instrução e julgamento, que atuará na fase da ação penal.

Caberá ao juiz de garantias o controle da legalidade da investigação criminal e a salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário.

Assim, o juiz de garantias deverá proferir decisão referente a qualquer incidente ou medida cautelar no curso do inquérito policial, tendo o legislador enumerado, de forma exemplificativa, as seguintes providências judiciais que competem ao juiz de garantias:

Art. 3º-B. ...

I - receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do caput do art. 5º da Constituição Federal;

II - receber o auto da prisão em flagrante para o controle da legalidade da prisão, observado o disposto no art. 310 deste Código;

III - zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido à sua presença, a qualquer tempo;

IV - ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal;

V - decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar, observado o disposto no § 1º deste artigo;

VI - prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las, assegurado, no primeiro caso, o exercício do contraditório em audiência pública e oral, na forma do disposto neste Código ou em legislação especial pertinente;

VII - decidir sobre o requerimento de produção antecipada de provas consideradas urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa em audiência pública e oral;

VIII - prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em vista das razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no § 2º deste artigo;

IX - determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento;

X - requisitar documentos, laudos e informações ao delegado de polícia sobre o andamento da investigação;

XI - decidir sobre os requerimentos de:

a) interceptação telefônica, do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática ou de outras formas de comunicação;

b) afastamento dos sigilos fiscal, bancário, de dados e telefônico;

c) busca e apreensão domiciliar;

d) acesso a informações sigilosas;

e) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado;

XII - julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia;

XIII - determinar a instauração de incidente de insanidade mental;

XIV - decidir sobre o recebimento da denúncia ou queixa, nos termos do art. 399 deste Código;

XV - assegurar prontamente, quando se fizer necessário, o direito outorgado ao investigado e ao seu defensor de acesso a todos os elementos informativos e provas produzidos no âmbito da investigação criminal, salvo no que concerne, estritamente, às diligências em andamento;

XVI - deferir pedido de admissão de assistente técnico para acompanhar a produção da perícia;

XVII - decidir sobre a homologação de acordo de não persecução penal ou os de colaboração premiada, quando formalizados durante a investigação;

XVIII - outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo.”

Devemos lembrar que a competência do juiz de garantias se estende até o recebimento da denúncia ou queixa. Recebida a denúncia ou queixa, as questões pendentes serão decididas pelo juiz da instrução e julgamento.

Importante ressaltar que as decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz da instrução e julgamento, que, após o recebimento da denúncia ou queixa, deverá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso, no prazo máximo de 10 (dez) dias.

Ademais, o juiz que praticar qualquer ato na fase de investigação, ficará impedido de funcionar no respectivo processo penal. A lei ainda prevê que, nas comarcas em que funcionar apenas um juiz, os tribunais criarão um sistema de rodízio de magistrados.

Outrossim, ainda de acordo com a lei, o juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal, observando critérios objetivos a serem periodicamente divulgados pelo respectivo tribunal.

O juiz das garantias ainda poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar, uma única vez, a duração do inquérito por até 15 (quinze) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será imediatamente relaxada.

Da mesma forma, o juiz das garantias deverá assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos presos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos da imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade civil, administrativa e penal.

O juiz das garantias deverá ser observado em qualquer tipo de procedimento criminal, ainda que especiais, com exceção do rito sumaríssimo, que se aplica às infrações penais de menor potencial ofensivo, continuando vigentes as disposições da Lei 9.099/95.

Por fim, os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias deverão ficar acautelados na secretaria do respectivo juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado.

Importante ressaltar que deve ficar assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias, de forma a garantir os princípios da ampla defesa e do contraditório.

O acautelamento dos autos em secretaria visa dar maior efetividade à previsão já existente no art. 155 do Código de Processo Penal, de que o juiz não podendo fundamentar sua sentença condenatória exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação.

Como se percebe, o instituto do juízo de garantias foi instituído visando dar maior eficácia aos princípios da independência e imparcialidade do juiz, para que este não ficasse subjetivamente ligado à investigação ou à acusação no momento de sentenciar o processo.

No entanto, o Ministro Luiz Fux suspendeu por tempo indeterminado a eficácia das regras do Pacote Anticrime, Lei 13.964/2019, que instituem a figura do juiz das garantias.

A decisão cautelar foi proferida ainda no mês de janeiro de 2020 e ocorreu no bojo das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6298, 6299, 6300 e 6305, devendo ela ser submetida a referendo do Plenário do Supremo Tribunal Federal.

O Ministro Luiz Fux argumentou que a regra do juiz das garantias fere a autonomia organizacional do Poder Judiciário, pois altera a divisão e a organização de serviços judiciários de forma substancial e exige completa reorganização da Justiça criminal do país, preponderantemente em normas de organização judiciária, sobre as quais o Poder Judiciário tem iniciativa legislativa própria.

O Ministro observou, ainda, ofensa à autonomia financeira do Judiciário, visto que tal medida causará impacto financeiro relevante, com a necessidade de reestruturação e redistribuição de recursos humanos e materiais, e de adaptação de sistemas tecnológicos sem que tenha havido estimativa prévia, como exige a Constituição.

Ademais, em sua decisão, o Ministro Fux afirmou que a implementação do juiz das garantias é uma questão complexa, que exige a reunião de melhores subsídios que indiquem os reais impactos para os diversos interesses tutelados pela Constituição Federal, entre eles o devido processo legal, a duração razoável do processo e a eficiência da justiça criminal.

Ainda em junho de 2020, o Grupo de Trabalho instituído pelo Conselho Nacional de Justiça para tratar do tema, apresentou uma proposta de Resolução visando regulamentar o Juiz das Garantias no âmbito dos diversos Tribunais pátrios.

Como bem salientou o Ministro Humberto Martins, então Corregedor do Conselho Nacional de Justiça, a proposta apresenta opções de diversos caminhos para a implantação do Juiz de Garantias.

Dessa forma, ficaria preservada a autonomia organizacional do Poder Judiciário, visto que os tribunais não seriam obrigados a adotar nenhum dos moldes organizacionais listados, pois cada Corte teria a discricionariedade para optar pelo desenho institucional mais adequado a sua realidade.

 Outrossim, enfatizou-se que a proposta trazida pelo Conselho Nacional de Justiça corrobora a possibilidade da implantação do juiz das garantias sem demandar ou exigir a realização de gastos adicionais por parte dos tribunais, não interferindo, portanto, na autonomia financeira do Poder Judiciário.

Analisando a minuta de resolução apresentada pelo Conselho Nacional de Justiça, verifica-se que este propõe, por exemplo, que, em comarcas menores, onde haja apenas um juiz atuante, seja realizado um sistema de rodízio por região, de modo que o juiz de garantias de uma cidade possa analisar os processos de outros municípios.

Por outro lado, em comarcas maiores, o Conselho Nacional de Justiça propôs a criação de órgãos especializados, que se chamariam Vara das Garantias ou Núcleo ou Central das Garantias, que concentraria todas as atribuições da nova função.

Frise-se, por oportuno, que texto proposto pelo Conselho Nacional de Justiça deixa explícito que cada tribunal tem autonomia para adotar o modelo que achar mais adequado a sua realidade.

Outrossim, a natureza jurídica do juiz das garantias é a de uma norma de competência funcional por fase do processo, não havendo, ressalte-se, um acréscimo institucional, de forma que a implementação do juiz das garantias não exige a criação de cargos de juiz, mas a adoção de formatos e critérios inovadores de fixação de competência.

Por fim, a minuta da citada Resolução prevê que o Conselho Nacional de Justiça deveria disponibilizar, de forma gratuita, aos órgãos do Poder Judiciário o sistema para a tramitação eletrônica dos atos sob a competência do juiz das garantias, em conformidade com as alterações previstas na Lei 13.964/2019.

Ainda há a previsão de que o sistema a ser fornecido deverá assegurar funcionalidades como o registro e tramitação de procedimentos decorrentes do recebimento de comunicações de autoridades policiais e do Ministério Público.

Ora, não se pode negar que a implementação do processo eletrônico já é uma realidade no Poder Judiciário brasileiro e se vê que, por meio da plataforma, a implantação do juiz das garantias opera de forma mais simplificada e eficiente, e sem qualquer custo adicional.

Verifica-se, em verdade, que a instituição do Juiz das Garantias irá promover uma efetiva aplicação do princípio do devido processo legal, ao tempo que dará maior eficácia a outros princípios, como o da independência e imparcialidade do juiz, ao do contraditório e da ampla defesa, além de prestigiar o sistema acusatório.

Em relação a supostamente trazer prejuízo à duração razoável do processo e à eficiência da justiça criminal, devemos lembrar que o Juiz das Garantias, não é uma invenção do Poder Legislativo brasileiro.

Ao revés, o Juiz das Garantias já é uma realidade tanto em países mais desenvolvidos, como França, Itália e Alemanha, quanto em países de menor desenvolvimento relativo, como Colômbia e Chile, adotam essa cisão.

Mesmo no ordenamento jurídico dos EUA, filiado à common law, a instituição do grand jury tem competência funcional coincidente com a de uma instância judiciária pré-processual, não se confundindo com o júri competente para julgar as questões de fato encartadas no mérito da pretensão punitiva.

Em verdade, o início da instituição do Juiz das Garantias remonta aos anos 1970, na Alemanha, sendo que a primeira experiência efetiva com a medida foi feita em Portugal, em 1987.

Na América Latina, só Brasil e Cuba ainda não adotaram o modelo, mostrando que a não adoção do Juiz das Garantias que se mostra um retrocesso no modelo processual penal.

Importante que se diga que em nenhum dos países mencionados, o Juiz das Garantias mostrou-se um entrave à duração razoável do processo e à eficiência da justiça criminal.

Tanto isso é verdade que, na operação italiana denominada “Mãos Limpas”, que serviu de inspiração para a “Lava Jato”, o juiz das garantias lá estava presente, e não atrapalhou o desenvolvimento das investigações, nem da respectiva ação penal.

Vale lembrar que o Juiz das Garantias está previsto no Código de Processo Penal italiano desde 1988, e a Operação Mãos Limpas foi deflagrada no ano de 1992 em Milão.

Portanto, pode-se concluir que o instituto do Juiz de Garantias é um grande avanço no Brasil, representando um processo penal nos moldes do sistema acusatório, não havendo qualquer inconstitucionalidade na sua previsão, nem prejuízo à duração razoável do processo e à eficiência da justiça criminal.

 

Notas e Referências

CONJUR. Juiz das garantias: a nova gramática da Justiça criminal brasileira. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-21/academia-policia-juiz-garantias-gramatica-justica-criminal. Acesso em: 20 jul. 2021.

GRECO FILHO, Vicente, Manual de Processo Penal. 9. ed. São Paulo. Saraiva, 2012.

STF, Ministro Luiz Fux suspende criação de juiz das garantias por tempo indeterminado. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=435253&ori=1. Acesso em: 20 jul. 2020.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues, Curso de Direito Processual Penal. 11ª ed. Salvador. JusPodivm, 2016.

UOL, Como funciona o juiz de garantias pelo mundo, modelo nascido nos anos 70 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/01/15/como-e-juiz-de-garantias-pelo-mundo-alemanha-portugal-brasil-argentina.htm. Acesso em: 20 jul. 2020.

 

 

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