Judiciário, controle e vigilância cidadã: entre o ideal, o real e as aparências ilusórias (Parte 4)

13/04/2018

“Ha cambiado todo. Todo menos nosotros”

Svetlana Aleksiévich

Outro problema, não menos inquietante, é que também no contexto da justificação não são raras as decisões com uma enorme lista de ingredientes esotéricos, dispostos como algo que arroja porções a uma caldeira enquanto pronuncia um conjuro, e que vêm elegantemente envolvidas em uma linguagem sofisticada e atraente que permite que creiamos toda classe de argumentos associados aos seus fundamentos e suas consequências. Uma realidade que, por sua gravidade, deveria levar a enfrentar-nos com a questão dos defeitos cognitivos que afetam as decisões judiciais, isto é, de avaliar em que medida estão influídas ou determinadas por prejuízos ou processos inconscientes e perguntar se bastam as ferramentas da racionalidade argumentativa e a insistência na qualidade argumentativa da motivação da decisão para garantir nossa sacrossanta noção de racionalidade.  

Apesar de que desde as filas da teoria da argumentação já se fez ver que não é tão relevante a origem da decisão como a qualidade dos argumentos (válidos, sólidos, coerentes e consistentes) que a sustentam[1], há um novo (e deliberadamente ignorado) reto para a teoria da decisão judicial proposto pelos últimos avanços na psicologia cognitiva a partir dos estudos pioneiros de Herbert Simon, primeiro, e, mais tarde, de autores tão decisivos como Daniel Kahneman, Amos Tversky, Richard Thaler, Gerd Gigerenzer ou, entre os juristas, Cass Sunstein. Um reto que desmantela a crença, amplamente divulgada, admitida e compartida do juiz que aplica o direito à base de observar com objetividade os fatos ou de valorar de modo igualmente objetivo, racional e desinteressado as provas dos fatos, assim como de sopesar as alternativas normativas para esses fatos fazendo gala das virtudes que a ética judicial predica para um bom juiz, começando por uma esquisita imparcialidade.

Claro – e aqui termino - que cada um lê a realidade através de suas pequenas obsessões e que pode pensar ou predicar o que quer (inclusive rechaçar a revisão de suas crenças sobre a base da evidência), mas, para qualquer que tenha uma diminuta inquietude sobre os inescrutáveis fenômenos que movem o Judiciário, talvez seja útil recordar algumas trivialidades:

  1. que os labirintos dos tribunais continuam estando entre os lugares mais inseguros do País e que impetrar uma ação judicial, na grande maioria das vezes, representa para o cidadão (pela enraizada, pervertida e “caconômica”[2] morosidade da justiça) uma verdadeira suspensão de sua dignidade;
  2. que a democracia depende em grande medida de que os cidadãos tenham confiança na integridade, no sentido comum e na pouquidade “de baixo rendimento crônico” (estupidez) de seus juízes;
  3. que se necessita uma dose importante de má-fé ou de deliberada ignorância para negar o infesto que pode chegar a ser o mau e/ou desenfreado uso do poder em um Estado que parece estar fora de controle; e
  4. que se desatendemos ao dever de «vigilância cidadã» deixaremos que nos enganem como uns crédulos facilmente influenciáveis e não seremos capazes de perceber que a ilusória aparência de legitimidade de qualquer exercício do poder na Administração da Justiça põe em perigo nossa segurança enquanto cidadãos baixo o império da lei.

Nessun dorma!

Notas e Referências: 

 

[1] Nota bene: Não discutirei aqui a desesperada e arbitrária distinção que tem sido utilizada, no âmbito da argumentação jurídica, para estabelecer que uma coisa é o processo mental ou o conjunto de fatores capazes de explicar as causas, influências e/ou circunstâncias como foi concebida ou gerada uma conclusão ou decisão («contexto de descoberta») e outra o conjunto de regras, critérios e argumentos mediante o qual se justifica dita conclusão ou decisão («contexto de justificação»). Em minha opinião, descoberta e justificação, na prática e/ou desde um ponto de vista operativo, não são dois atos separados e estanques, senão que constituem um processo unitário, um continuum, compondo uma indivisível e solidária unidade hermenêutica. O ponto essencial é que, neste caso, uma concepção que seja «aproximadamente correta» (não distinção) é mais útil para analisar o fenômeno da interpretação que outra que seja «exatamente errônea» (distinção): uma conclusão ou decisão pode ser perfeita em termos epistêmicos, analíticos e/ou argumentativos, mas isto não exclui em absoluto a subjetividade, a realidade da experiência pessoal dependente das características do entorno e os condicionantes neurológicos e psicológicos (processos mentais internos dos que não somos conscientes, não temos acesso e que regem uma porção imensa da vida mental) que afetam sem dúvida o agente jurídico que a produziu. Uma espécie de “racionalidade impura” ou “quase racionalidade” (K. Hammond) que implica um compromisso do juízo entre intuição, emoção e razão, e também entre diferentes variáveis socioculturais ou pistas informativas procedentes do contexto em que se produz a conclusão ou decisão.

[2] Segundo Gloria Origgi, a “caconomia” [ou “Kakonomia”, palavra que procede de uma voz grega, Kakos (pior, mau), com  a que se vem a designar “economia do pior” ou “economia do medíocre”] descreve um estranho tipo de situação em que há uma muito difundida predileção pelos intercâmbios medíocres que se mantêm ao menos enquanto ninguém se queixe da situação: algo assim como uma silenciosa preferência pela mediocridade ou pelas normas que regulam os intercâmbios da pior maneira possível. Os mundos caconômicos são mundos em que a gente não somente convive com o escasso rigor próprio e alheio, senão que espera realmente que esse seja o comportamento geral: confio em que o outro não cumprirá plenamente suas promessas porque quero ter a liberdade de não cumprir eu as minhas e, ademais, não sentir-me culpado por isso. O que determina que este seja um caso tão interessante como estranho é o fato de que em todos os intercâmbios de natureza caconômica ambas as partes parece haver estabelecido um duplo acordo: por um lado, um pacto oficial pelo qual os dois intervenientes declaram ter a intenção de realizar um ou mais intercâmbios com um elevado nível de qualidade e, por outro, um acordo tácito pelo qual não somente se permitem rebaixar essa suposta qualidade, senão que coincidem inclusive em esperá-las. Deste modo, ninguém se aproveita do outro, já que a Kakonomia se acha regulada pela mútua assunção de um resultado medíocre (ou serôdio), ainda que alguns se aventurem a afirmar publicamente que o intercâmbio teve em realidade um alto nível de qualidade. Em suma, uma típica e cotidiana relação jurídica processual.

 

Imagem Ilustrativa do Post: human flight // Foto de: marc cornelis // Sem alterações

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