Judiciário, controle e vigilância cidadã: entre o ideal, o real e as aparências ilusórias (Parte 2)

30/03/2018

“Desgraciada la generación cuyos jueces merecen ser juzgados”. El Talmud

Para começar, o modelo vigente não parece dispor de mecanismos adequados para resolver a dificuldade de como a irracionalidade[1] do julgador pode deixar de dar argumentos às interpretações mais disparatadas e aos resultados interpretativos (decisões) mais improváveis. Um problema que amiúde estimula nos agentes do direito (especialmente em alguns juízes) a tendência a olvidar que a justiça tem que estar ao serviço dos cidadãos e não os cidadãos ao serviço da justiça, que a aplicação de qualquer norma implica sempre um juízo (humano) de valor e que  há um espaço entre os princípios, as regras e a decisão concreta em que intervém um indivíduo que é responsável pela toma de suas decisões, um primata humano, demasiado humano. É algo óbvio, mas às vezes as coisas óbvias passam desapercebidas.

Ademais, dado que o Poder Judiciário, para bem ou para mal, participa da configuração dos assuntos públicos (entendidos conscientemente como questão judicial) e que é disparatado ou ao menos estúpido intentar eliminar a relação de vinculação, integridade e responsabilidade dos juízes com o sistema de fontes do Direito dimanante da Constituição, parece um enorme «sem-sentido» dedicar tempo e energia mental para buscar explicações e reflexionar sobre o aberrante e grotesco que é o chamado “ativismo judicial”. Primeiro no puro plano do valor justiça – certamente não o único, mas porventura o que hoje em dia sobreleva a todos os demais. Logo nesse plano, é de uma ligeireza infantil sem limites inferir que a via capaz de realizá-lo seja conferir ao magistrado uma latitude de poderes que faça entrar a sua discricionariedade naquele “reino confuso do arbítrio, do palpite, do sentimento anárquico e da intuição irrefletida” (Manuel de Andrade). Pelo que respeita ao valor segurança, é então patente a todas as luzes que o espectro do “ativismo” o compromete em uma medida incomportável.

Se a isto juntarmos que o uso descontrolado do poder, reduzindo a interpretação, a justificação e a aplicação da norma a puras operações subjetivas, desvinculadas e caprichosas faz de todo o modo entrar o Direito no perigoso reino do «tudo vale», parece existir motivos de sobra para repugnar sem contemplação esta forma de mediocridade de ideias que cai por seu próprio peso, curiosamente enaltecida por juristas orgulhosos não somente de suas improvisações intelectuais, senão também de sua estupidez sem paliativos.

 

[1] A fantasia hiperracionalista de demonstrar que todas nossas ações (e interpretações) se baseiam em premissas exclusivamente racionais é incoerente e devemos abandoná-la (H. Frankfurt). Nossos desejos, nossos prejuízos e nossas emoções intervêm sempre em maior ou menor medida em todo o processo de interpretação e de tomada de decisão em concreto, ou, para ser mais preciso, a articulação co-constitutiva da afetividade e da razão intervêm em toda a interpretação (compreensão), justificação e aplicação de uma vontade alheia, sobretudo naqueles domínios em que o “caso concreto”, o “caso da vida real”, surge ao intérprete com uma variedade e uma multiplicidade desconcertantes. As normas jurídicas não possuem representação de valor. As normas possuem somente palavras. Quais os valores e significados que devem ser  ligados a estas palavras são problemas vinculados à tarefa dos intérpretes; e o intérprete estabelecerá sempre aquilo em que ele mesmo crê (Dieter Simon). Nenhuma lei é fruto de uma verdade estabelecida, senão expressão da “vontade pública”, sempre sujeita à interpretação. Os textos se interpretam e quem os interpretam (assim como quem os escrevem) são seres humanos de carne e osso, que somente podem compreendê-los à luz de seus prejuízos e outros conhecimentos, que é o que fazem ao intentar desentranhar seus significados colocando suas palavras “em outras palavras”: o que um sujeito (juiz) interpreta ou opina não passa de projeções emergente de seus estados mentais e, como tal, somente expressa a medida de sua visão, não a medida das coisas. Como recorda M. Rose, nossas mentes funcionam com (e reagem aos) significados, e não somente com informações. O intérprete-leitor, injetando elementos de subjetividade, altera as palavras originais do texto, buscando encontrar para o resultado de sua interpretação uma fundamentação/justificação («post hoc») dirigida a convencer de que sua postura é melhor que qualquer outra. E isso não é algo opcional no processo de leitura/ interpretação; não é algo que possamos eleger não fazer quando examinamos séria e cuidadosamente um texto. O único modo de entender um texto é lendo, e o único modo de lê-lo é interpretando, a saber, pondo suas palavras em outras palavras, e o único modo em que é possível fazer tal coisa é tendo outras palavras que colocar em lugar das originais, e único modo de ter essas outras palavras é havendo vivido, quer dizer, tendo prejuízos, desejos, necessidades, aspirações, crenças, perspectivas, visões do mundo, opiniões, preferências, aversões e todos os demais traços que fazem humanos aos seres humanos. Em síntese, a entranhada suposição da racionalidade jurídica é equivocada, não somente porque os agentes reais do direito não são tão racionais como se pretende (e tampouco funcionam como se o fossem), senão também pelas circunstâncias de que: (i) simplifica ao extremo, artificializa e distorce a análise dos múltiplos fatores e influências, inatas e adquiridas, que condicionam nossas interpretações e nossas decisões; e (ii) elude a evidência de que a razão não cria valores, “sino que se configura en torno a ellos y los lleva hacia nuevas direcciones”.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Martelo da justiça // Foto de: Fotografia cnj // Sem alterações

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