Judicialização da saúde suplementar: aspectos destacados  

19/04/2021

A judicialização da saúde suplementar envolve vários aspectos inerentes ao Direito à Saúde e ao Direito do Consumidor.

Cabe ao Superior Tribunal de Justiça – STJ proferir a última palavra, em regra, sobre as discussões que envolvem as operadoras de plano de saúde.

Neste sentido, há vários pontos que merecem atenção, tais como: extensão do rol de procedimentos e eventos em saúde; aplicação das evidências em saúde nas decisões; validade das notas técnicas do e-natjus; equilíbrio atuarial das operadoras de plano de saúde; aplicação de enunciados das jornadas da saúde do Conselho Nacional de Justiça – CNJ.

Tudo isso passou a ser analisado pelo Superior Tribunal de Justiça. A decisão abaixo demonstra o cenário: 

PLANOS E SEGUROS DE SAÚDE. RECURSO ESPECIAL. ROL DE PROCEDIMENTOS E EVENTOS EM SAÚDE ELABORADO PELA ANS. ATO ESTATAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO, COM EXPRESSA PREVISÃO EM LEI. VINCULA FORNECEDORES E CONSUMIDORES E GARANTE A PREVENÇÃO, O DIAGNÓSTICO, A RECUPERAÇÃO E A REABILITAÇÃO DE TODAS AS ENFERMIDADES. CARACTERIZAÇÃO COMO EXEMPLIFICATIVO. ILEGALIDADE. IMPOSIÇÃO DE CUSTEIO DE TERAPIAS QUE, CONFORME A PRÓPRIA CAUSA DE PEDIR DA AÇÃO E O ACÓRDÃO RECORRIDO, NEM SEQUER INTEGRAM O ROL. COBERTURA CONTRATUAL. INVIABILIDADE. ÓRTESE NÃO LIGADA A PROCEDIMENTO ASSISTENCIAL COBERTO A SER REALIZADO. EXPRESSA EXCLUSÃO LEGAL. PRECEDENTES DAS DUAS TURMAS DE DIREITO PRIVADO. FISIOTERAPIA PELO MÉTODO THERASUIT E/OU PEDIASUIT.

A PAR DA AUSÊNCIA DE PREVISÃO NA RELAÇÃO EDITADA PELA AUTARQUIA SÃO MÉTODOS DE CARÁTER MERAMENTE EXPERIMENTAL, SEGUNDO PARECER DO CFM E DO NAT-JUS NACIONAL. SÚMULA LOCAL ESTABELECENDO DE ANTEMÃO QUE É ABUSIVA A NEGATIVA DE COBERTURA, REQUERIDA COM BASE NA PRESCRIÇÃO DO PRÓPRIO MÉDICO ASSISTENTE DA PARTE, MESMO QUE A RECUSA SEJA FUNDAMENTADA NA AUSÊNCIA DE CONTEMPLAÇÃO PELO ROL DA AUTARQUIA ESPECIALIZADA ANS OU PELO CARÁTER MERAMENTE EXPERIMENTAL. INCOMPATIBILIDADE COM DISPOSIÇÕES DA LEI ESPECIAL DE REGÊNCIA DA RELAÇÃO CONTRATUAL.

  1. Consoante entendimento perfilhado por este Colegiado, por clara opção do legislador se extrai do art. 10, § 4º, da Lei n. 9.656/1998 c/c o art. 4º, III, da Lei n.9.961/2000, a atribuição da ANS de elaborar a lista de procedimentos e eventos em saúde que constituirão referência básica para os fins do disposto na Lei dos Planos e Seguros de Saúde. Em vista dessa incumbência legal, o art. 2º da Resolução Normativa n.439/2018 da Autarquia, que atualmente regulamenta o processo de elaboração do rol, em harmonia com o determinado pelo caput do art. 10 da Lei n. 9.656/1998, esclarece que o rol garante a prevenção, o diagnóstico, o tratamento, a recuperação e a reabilitação de todas as enfermidades que compõem a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde - CID da Organização Mundial da Saúde (REsp 1733013/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 10/12/2019, DJe 20/02/2020).
  2. Nesse precedente, melhor refletindo acerca do tema, à luz da legislação especial de regência e dos substanciosos subsídios técnicos trazidos pelos amici curiae - inclusive, no que diz respeito à postura manifestada pelos próprios Conselhos Profissionais e pela Secretaria Nacional do Consumidor no sentido de prestigiar o rol da ANS -, este Órgão julgador, em overruling, sufragou o entendimento de não ser correto afirmar ser abusiva a exclusão do custeio dos meios e dos materiais necessários ao tratamento indicado pelo médico assistente da parte que não estejam na relação editada pela Autarquia ou no conteúdo adicional contratual, diante dos seguintes dispositivos legais da lei de regência da saúde suplementar (Lei n. 9.656/1998): a) art. 10, § 4º, que prescreve a instituição do plano-referência, "respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12", com "amplitude das coberturas" "definida por normas editadas pela ANS"; b) art. 12, que estabelece serem facultadas a oferta, a contratação e a vigência dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1º do art. 1º dessa Lei, respeitadas as respectivas amplitudes de cobertura definidas no plano-referência mencionado no art. 10; c) art. 16, VI, o qual determina que dos contratos, dos regulamentos ou das condições gerais dos produtos de que cuidam o inciso I e o § 1º do art. 1º dessa Lei devem constar dispositivos que indiquem os eventos cobertos e excluídos.
  3. Não se pode ignorar que a elaboração do rol, em linha com o que se deduz do Direito Comparado, submete-se a diretrizes técnicas relevantes de inegável e peculiar complexidade, como: I - a utilização dos princípios da Avaliação de Tecnologias em Saúde - ATS; II - a observância aos preceitos da Saúde Baseada em Evidências - SBE; e III - a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do setor. Com efeito, e como também ressaltado no precedente invocado, considerar esse mesmo rol meramente exemplificativo representaria, na verdade, negar a própria existência do "rol mínimo" e violar a tripartição de poderes, efetivamente restringindo a livre concorrência ao nitidamente estipular a mais ampla, indiscriminada e completa cobertura a todos os planos e seguros de saúde, o que, além do mais, dificulta sobremaneira o acesso à saúde suplementar a mais ampla camada da população.
  4. O menoscabo de "tais aspectos bem como a própria imposição pelos juízos de coberturas que não têm amparo na legislação vigente geram, muitas vezes, externalidades positivas para os consumidores e negativas para as operadoras de planos privados de assistência à saúde, resultando em distorções nos custos dos planos e, principalmente, nos seus cálculos e estudos atuariais, impondo o oferecimento ao mercado de planos mais caros, que acabam restringindo o acesso de muitos consumidores a este mercado" (SILVA, José Luiz Toro da. Os limites ao poder de regular os planos privados de assistência à saúde. Revista de Direito da Saúde Suplementar. São Paulo: Quartier Latin. Ed. n. 1, 2017, p. 168). Por certo, e também assinalado, pelo Plenário do STF, em bem recente julgamento, em sede de repercussão geral, do RE 948.634/RS, é imperioso observar que, "sejam essas avenças anteriores ou posteriores à Lei 9.656/1998, a previsão dos riscos cobertos, assim como a exclusão de outros, é inerente a todas elas. Isso obedece à lógica atuarial desta espécie contratual, pois, quanto mais riscos forem cobertos, mais elevado será o prêmio pago".
  5. A Nota Técnica n. 9.666, elaborada pelo NAT-JUS NACIONAL, em 7/8/2020, disponível no banco de dados E-natjus do CNJ, contém conclusão desfavorável ao custeio da terapia de alto custo TheraSuit, pelos seguintes fundamentos: a) "foi verificada a escassez de estudos robustos acerca do tema, destacando uma revisão sistemática com metanálise que evidenciou que o referido efeito do protocolo com o Método Therasuit foi limitado e heterogêneo"; b) "o Conselho Federal de Medicina, em seu PARECER CFM Nº 14/2018, publicado em maio de 2018 concluiu que as terapias propostas (TheraSuit e PediaSuit) ainda carecem de evidência científica que lhes deem respaldo e devem ser entendidas apenas como intervenções experimentais. Com efeito, o art. 10º, incisos I, V, IX, da Lei n. 9.656/1998, expressamente exclui da relação contratual a cobertura de tratamento clínico ou cirúrgico experimental, fornecimento de medicamentos importados não nacionalizados e tratamentos não reconhecidos pelas autoridades competentes. No mesmo diapasão, propugna o Enunciado de Saúde Suplementar n. 26 das Jornadas de Direito da Saúde do CNJ ser lícita a exclusão de cobertura de produto, tecnologia e medicamento importado não nacionalizado, bem como tratamento clínico ou cirúrgico experimental (AgInt no AREsp 1497534/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 06/10/2020, DJe 23/10/2020).
  6. É bem de ver que "estabelece o art. 10, VII, da Lei n. 9.656/1998 que as operadoras de planos de saúde não têm a obrigação de arcar com próteses e órteses e seus acessórios não ligados a ato cirúrgico. É lícita a exclusão, na Saúde Suplementar, do fornecimento de órteses e próteses não ligadas ao ato cirúrgico ou aquelas sem fins reparadores, já que as operadoras de planos de assistência à saúde estão obrigadas a custear tão só os dispositivos médicos que possuam relação direta com o procedimento assistencial a ser realizado (art. 10, II e VII, da Lei nº 9.656/1998)" (REsp 1673822/RJ, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/03/2018, DJe 11/05/2018)" (AgInt no REsp 1848717/MT, Rel.

Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 15/06/2020, DJe 18/06/2020).

  1. Por um lado, em vista dos mencionados dispositivos especiais de regência do microssistema da saúde suplementar, como regra basilar de hermenêutica, no confronto entre as regras específicas e as demais do ordenamento jurídico, deve prevalecer a regra excepcional.

Conforme a consagrada doutrina de Carlos Maximiliano, jamais poderá o juiz, a pretexto de interpretar, esvair a essência da regra legal ou substituí-la (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 20 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011, p. 69). Por outro lado, o Código de Defesa do Consumidor traça regras que presidem a situação específica do consumo e, além disso, define princípios gerais orientadores do direito das obrigações, todavia, é certo que, no que lhe for específico, o contrato continua regido pela lei que lhe é própria (REsp n. 80.036/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, QUARTA TURMA, julgado em 12/2/1996, DJ 25/3/1996, p.

8.586).

  1. O "fato de os contratos de saúde suplementar se sujeitarem ao Código de Defesa do Consumidor não significa que a cobertura deve extrapolar os limites do acordo. Cumpre ao Poder Judiciário: a) agir com cautela para evitar decisões desastrosas, com a autorização de acesso a medicamentos, produtos e serviços sem base em evidência científica ou por falta de cobertura contratual, porque isso causa abalo indevido na sustentação econômica das operadoras de saúde, e também devido ao fato de que o aumento da sinistralidade norteia o aumento das mensalidades do ano seguinte, penalizando indevidamente os demais consumidores, além de causar uma desestruturação administrativa [...] (DRESCH, Renato Luís. As medidas de otimização da judicialização: o Nat-jus e as Câmaras Técnicas. Revista de Direito da Saúde Suplementar. São Paulo: Quartier Latin. Ed. n. 1, 2017, p.122-126)" (AgInt no REsp 1882494/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 10/12/2020, DJe 15/12/2020).
  2. Agravo interno não provido. [grifado]

(AgInt no AREsp 1627735/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 23/02/2021, DJe 02/03/2021)

Assim, o Superior Tribunal de Justiça – STJ passou a observar inúmeros aspectos da judicialização da saúde, aplicando novos conceitos e admitindo a utilização de instrumentos que contribuem para a melhor decisão possível, como os NatJus e os enunciados das jornadas de saúde do CNJ.

Há indicação clara, portanto, da evolução no tema na jurisprudência pátria.

 

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