Judicialização da política e ativismo judicial: uma necessária distinção – Por Denarcy Souza e Silva Júnior

02/05/2016

Embora no senso comum teórico dos juristas, judicialização da política e ativismo judicial sejam utilizados como sinônimos, não há o que se falar nessa similitude, mesmo porque a judicialização, diante da baixa constitucionalidade em países periféricos e que ainda não se desincumbiram das promessas do estado social, é contingencial; já o ativismo judicial, mais voltado à vontade no agir do órgão julgador, está ligado a uma visão da decisão judicial como ato de escolha, morais inclusive, o que pode não se coadunar com a jurisdição constitucional.

A judicialização decorre do modelo constitucional adotado no Brasil. Uma constituição compromissória como a de 1988, que institui direitos fundamentais sociais ainda incumpridos e uma inflação legislativa que objetiva abarcar um sem número de matérias, contribuem para aumentar o espaço de interferência do judiciário nos demais poderes, mas isso não significa que sua atuação seja manifestação de vontade do órgão judicante. Quanto mais direitos são constitucionalizados ou um número maior de leis são editadas para regulamentar uma gama de matérias, maior será a atuação do Poder Judiciário na concreção dessa normatividade, surgindo o que se denomina de judicialização.[1]

Parece evidente, nessa quadra da história, que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas pelo Judiciário, transferindo-se poder das instâncias tradicionais, Executivo e Legislativo, para juízes e tribunais. Diversos motivos levam à judicialização, como o reconhecimento de um judiciário forte e independente para a concreção dos direitos fundamentais, certa desconfiança com a política majoritária, bem assim a preferência dos atores políticos, em diversos casos de repercussão, se absterem de decidir majoritariamente, deixando para o Poder Judiciário a tarefa de decidir essas questões controvertidas.[2]

No Brasil esse fenômeno alcança proporções bem maiores em razão de a Constituição cuidar de um elevado número de matérias, estas que, por estarem na carta maior, são retiradas do âmbito político e levadas para o âmbito jurídico, para o direito, abrindo ensanchas para a judicialização.[3]

Percebe-se, pois, que a judicialização maciça hodiernamente existente no Brasil, tem como causa o desenho institucional brasileiro, não se tratando, como já referido, de uma opção política do Poder Judiciário, mas sim de uma contingência de um país periférico que ainda está a dever as promessas incumpridas do welfare state, em nada se assemelhando, como pode parecer, com ativismos judiciais, pois embora possam pertencer a uma mesma família, não possuem origem comum.[4]

Na verdade, invocando-se a postura substancialista, passou-se a exigir uma fundamentação dada essencialmente pelos direitos fundamentais, abandonando-se a ideia de uma Constituição apenas do Estado (corrente procedimentalista), para ser também da sociedade. Deixe-se claro, contudo, que a constitucionalização de tarefas torna mais importante uma legitimação material, embora não substitua (e nem deveria) a luta política[5].

É o sentimento constitucional[6] que deve impulsionar o agir da sociedade e a jurisdição constitucional, o que, como parece intuitivo, não permite uma extrapolação dos limites institucionais previstos na própria constituição, logo, não deve se assemelhar a uma autorização para se dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa, descolando o sentido do texto do próprio texto, pois, como propugnava Gadamer, se se quer dizer alguma coisa sobre um texto, deixe que o texto lhe diga algo[7].

Dentro dessa diferença, tem-se que o ativismo é muito mais uma postura, um ato de escolha, é a deliberada expansão do papel do judiciário, que utilizando a interpretação constitucional, supre lacunas, sana omissões legislativas ou determina políticas públicas ausentes ou ineficientes.[8] Esse modo proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance, normalmente surge em períodos de compressão do Poder Legislativo, que se mostra indiferente aos reclamos da sociedade civil, descuidando do atendimento das demandas da coletividade, que vê, por essa razão, no Poder Judiciário, a salvação para os males sociais.[9]

Com Barroso, se tem a ideia de que o ativismo judicial está associado a uma participação mais intensa do judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, interferindo mais incisivamente na atuação dos demais poderes. As condutas com as quais se manifesta o ativismo judicial, segundo o autor fluminense, são variadas:

A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.[10]

Evidencia-se, no elenco de posturas ativistas acima descritas, que para além de uma judicialização, o ativismo judicial perpassa uma atuação volitiva do Poder Judiciário, que a pretexto de dar interpretação ao texto constitucional, dele pode se desvencilhar, inclusive aplicando diretamente a Constituição sem que haja em seu texto normativo o preceito a ser aplicado, ou, de outra banda, exercendo o controle de constitucionalidade com critérios menos rígidos, logo, alheios à Constituição, por fim imiscuindo-se na função dos outros dois poderes, os impondo condutas ou abstenções. É aí que mora o problema.

É que, se de uma norma constitucional for possível se deduzir uma pretensão, seja ela subjetiva ou objetiva, cabe ao juiz, em atenção ao direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva, decidir a matéria, não lhe sendo dada qualquer margem de discricionariedade, aqui entendida em seu sentido forte.[11] Já o ativismo judicial é sempre uma intervenção discricionária no sentido forte, sendo necessário o estabelecimento de parâmetros de legitimidade de intervenções judiciais no âmbito da política e da sociedade.[12]

Não há o que se confundir, portanto, judicialização com ativismo, sendo esse último incompatível com o Estado Constitucional, pois, ao fim e ao cabo, autoriza o Poder Judiciário a decidir discricionariamente, tornado a decisão incontrolável segundo um padrão estabelecido antecipadamente, o que, no máximo, pode deixar margem a críticas, mas não pode ser considerado desobediente.[13] Se não há padrão de controlabilidade, abre-se espaço para decisionismos e arbitrariedades, o que, decerto, não está sintonizado com a jurisdição constitucional.

Ao que parece, há um erro de premissa no ativismo judicial, pois ele permanece inserido no paradigma da filosofia da consciência, na consciência de si do pensamento pensante (esquema sujeito-objeto), em tempos de pós-positivismo e de intersubjetividade (sujeito-sujeito).

Inobstante o até aqui explanado e de ser correta a assertiva de que o magistrado possua subjetividades, ideologias, ideias do senso comum, preconceitos - que não se confundem com a pré-compreensão (Vorverständnis) de que fala Gadamer[14] -, não pode ele decidir com sua moral individual[15], deve decidir, isso sim, conforme o Direito, ou seja, de acordo com o sistema jurídico e não com o sistema moral ou com a moral individual, que pode até coincidir com os argumentos morais de um caso determinado, mas se não se sabe o porquê se está acertando, o erro permanece.

É o que se percebe hodiernamente com o uso desenfreado dos princípios, que estão sendo vistos como a solução para todos os males da sociedade, numa vulgata de realismo jurídico à brasileira ou, se assim se preferir, numa retomada da ultrapassada jurisprudência dos valores[16]. Há forte dissenso doutrinário acerca da própria noção de princípio e sua aplicação aos casos concretos. Se por um lado é quase que pacífica a crença de que os princípios, juntamente com as regras, são espécies de norma jurídica[17], por outro há sérios problemas em se conseguir uma univocidade de conceito, chegando-se a se identificar, ao menos, três formas básicas de conceituação: a) princípios gerais do direito; b) princípios jurídico-epistemológicos; e c) princípios pragmáticos ou problemáticos.[18]

Essa confusão no próprio conceito de princípio e a crença de que seriam eles a panaceia para todos os males da sociedade, vem fomentando o uso retórico dos princípios, que estão sendo utilizados como capa de sentido, legitimando arbitrariedades e discricionariedades, bastando a invocação de um desses standards para se poder dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. Até mesmo a ponderação de princípios colidentes, quando se os entendem como mandamentos de otimização[19], facilita o seu uso retórico, pois a escolha dos princípios em colisão também é feita subjetivamente, no que se convencionou chamar de ponderação à brasileira.

Tudo isso corrobora para que o ativismo judicial não se alinhe à ordem constitucional, mesmo porque não se pode admitir, no paradigma do Estado Democrático de Direito, que se entenda a decisão judicial, notadamente da Suprema Corte, como um ato de escolha. O Brasil, inserido que está no sistema romano-germânico, ainda que com fortes aproximações ao sistema do common law, ainda está regrado pelo rule of law, não adotando o sistema do  judge-made-law, até porque, para essa mudança de paradigma, seria imperiosa uma alteração na própria Constituição.

Uma sociedade democrática deve sempre pautar pela integridade (que é uma das suas principais virtudes), a evitar que a interpretação do direito seja resultante de concepções de justiça subjetivas ou contraditórias, pois a decisão judicial deve ser fundamentada em princípios e não em argumentos outros (argumentos de política) dissociados da autonomia do direito, tampouco com lastro numa vontade solipsista.

Há de se ter extremo cuidado com a afirmação de que o “intérprete sempre atribui sentido ao texto”, pois isso não abre margem para ele dizer “qualquer coisa sobre qualquer coisa”, atribuindo sentido de forma arbitrária aos textos, como se houvesse uma separação entre texto e norma[20], com existência autônoma para ambos.[21]

O direito não é o que o intérprete quer que ele seja, tampouco o direito é aquilo que o tribunal diz que é. O ato interpretativo não pode ser tido como o produto da objetividade do texto ou de uma atitude assujeitadora do objeto, de uma atuação solipsista do intérprete, pois o paradigma do Estado Democrático de Direito está assentado na intersubjetividade e não da consciência de si do pensamento pensante, que caracteriza, em tempos de pós-positivismo, a ultrapassada filosofia da consciência[22].

Decerto, mais do que harmonizar e equilibrar os demais Poderes, o Judiciário tem a missão de ser o intérprete que evidencia, ainda que contra maiorias eventuais, o direito produzido democraticamente, especialmente os dos textos constitucionais[23]. A jurisdição constitucional, nessa quadra da história, tem a função de organizar um checks and balances “desbalanceado”.[24] Infelizmente não é isso que estamos vendo e, por incrível que pareça, aplaudindo. Há que se fazer uma análise crítica do Direito, não apenas acenar com a cabeça para decisões discricionárias e que solapam a Constituição e as leis.


Notas e Referências:

[1] OLIVEIRA, Rafael Tomaz, et al. A Jurisdição Constitucional entre a Judicicialização e o Ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. Disponível em: <http://www.abdconst.com.br/anais2/JurisdicaoRafael.pdf>. Acesso em 18 jan 2016.

[2] BARROSO, Luiz Roberto. O Novo Direito Constitucional Brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. 3ª impressão. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 39.

[3] Idem, ibidem, p. 39.

[4] BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. In: Revista Atualidades Jurídicas – Revista Eletrônica do Conselho Federal da OAB. Ed. 4. Janeiro/Fevereiro 2009. Disponível em: <http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/123506667017 4218181901.pdf>. Acesso em: 17 jan 2016.

[5] BERCOVICI, Gilberto. A problemática da Constituição Dirigente: algumas considerações sobre o caso brasileiro. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília, n. 142, abr/jun 1999, p. 38.

[6] VERDÚ, Pablo Lucas. O Sentimento Constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional como modo de integração política. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

[7] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 14ª ed. Petrópolis: Vozes. Bragança Paulista: São Francisco, 2014.

[8] BARROSO, Luiz Roberto. O Novo Direito Constitucional Brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. 3ª impressão. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 40.

[9] BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. In: Revista Atualidades Jurídicas – Revista Eletrônica do Conselho Federal da OAB. Ed. 4. Janeiro/Fevereiro 2009, p. 6 Disponível em: <http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/123506667017 4218181901.pdf>. Acesso em: 17 jan 2016.

[10] Idem, ibidem.

[11] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 52.

[12] OLIVEIRA, Rafael Tomaz, et al. A Jurisdição Constitucional entre a Judicicialização e o Ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. Disponível em: <http://www.abdconst.com.br/anais2/JurisdicaoRafael.pdf>. Acesso em 18 jan 2016.

[13] OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão Judicial e o Conceito de Princípio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 28.

[14] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 14ª ed. Petrópolis: Vozes. Bragança Paulista: São Francisco, 2014.

[15] Saliente-se que a moral não pode ser usada para a correção do direito, este deve ter sua autonomia preservada, sendo a moral cooriginária a ele, apenas.

[16] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

[17] CUNHA, Sérvulo. Princípios Constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2006.

[18] OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão Judicial e o Conceito de Princípio: a hermenêutica e a (in)determinação do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.

[19] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014.

[20] A hermenêutica filosófica não trabalha com cisões, mas com diferenças. Decerto há uma diferença entre o texto e a norma, pois esta é resultado da interpretação daquele, daí a se afirmar uma separação total entre texto e norma há uma grande diferença, que desembocaria em arbitrariedades interpretativas e na negação da intersubjetividade.

[21] STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 310.

[22] STRECK, Lenio. Verdade e Consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 264.

[23] Idem, ibidem. p. 84

[24] VIEIRA, José Ribas; SANTOS, Fabiana de Almeida Maia; MARQUES, Gabriel Lima; SOUZA, Rafael Bezerra de; DIAS, Sérgio Bocayuva Tavares de Oliveira. Impasses e alternativas em 200 anos de constitucionalismo latino-americano. In: RECHTD. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito. São Leopoldo, v. 5, pp. 122-132, jul./dez. 2013, p. 125.


 

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