Jovens privados de liberdade em tempos de Coronavírus

07/04/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

Em tempos de pandemia, de crises sem precedentes, quarentenas e momentos que parecem uma reprodução de um filme apocalíptico, com escolas, universidades e fronteiras fechadas, algumas questões se escancaram e se agravam, em uma proporção nunca vista. Os jovens encarcerados, que sobrevivem cotidianamente aos cárceres e suas variações, em condições precárias, podem ter sua situação agravada nos próximos meses. São catastróficas as possíveis consequências da disseminação do COVID-19 nos centros socioeducativos, entre uma população sem direitos fundamentais garantidos e sem acesso à saúde.

Os filhos da classe trabalhadora brasileira ocupam a posição de maiores vítimas da violência criminal no Brasil. Segundo o Mapa da Violência 2019, em 2017, 35.783 jovens foram assassinados no Brasil, uma taxa de aproximadamente 69,9%, para cada 100 mil jovens no país. A situação se agrava quando nos referimos à juventude negra: conforme o mesmo relatório, 75,5% das vítimas de homicídios, em 2017, foram indivíduos negros. Ainda, outra análise do relatório aponta que para cada indivíduo não negro que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos ou seja, são quase três vezes mais vítimas de homicídios dos que os jovens brancos.

Em um bárbaro acordo entre criminologias hegemônicas e cidadãos de bens, esses jovens foram retirados da sociedade e colocados na mira da violência. Como aponta Zaffaroni (2007), a construção de um indivíduo inimigo passa pela necessidade de se entender que ele se trata do responsável por todos os seus problemas, bem como de um sujeito diferente, apenas como um alvo que merece ser destruído, eliminado e a quem devem ser retirados todos os direitos, inclusive o direito à condição de pessoa. Nessa lógica, é habilitado e legitimado ao Estado o uso da violência; em nome da segurança rica e branca dos “cidadãos de bem”, todo abuso será permitido. Assim como novas técnicas de controle são criadas e remodeladas, acompanhando cada época, os inimigos são recriados, também, a partir dos interesses do capital.

 A trajetória das práticas de atendimento e da legislação direcionadas às crianças e adolescentes das classes populares é marcada por uma longa tradição assistencial repressiva, paternalista e higienista. Práticas autoritárias e violentas são rotineiras na vida de muitas crianças, adolescentes e jovens pobres (Lúcio, 2018). O Estado garante a manutenção da lógica desigual do capital, bem como constrói estratégias punitivas e de controle dessas crianças e adolescentes, já paridas à margem da sociedade. Contudo, só ganham visibilidade quando cometem um delito, e assumem posições centrais em discursos da mídia e do senso comum a respeito da criminalidade, em que são colocados como os principais responsáveis pelo crescimento da insegurança e violência no país. A mesma visibilidade, indignação e clamor social, quando suas vidas colocadas em risco e quando direitos fundamentais lhes são negados, não ocorre.

Uma das grandes preocupações de muitos estudiosos da seguranca pública e dos movimentos sociais é a superlotação dessas unidades prisionais, tanto a do sistema de responsabilização dos jovens, quanto as dos adultos. Preocupação antiga, e que hoje, com a disseminação do COVID-19, se faz cada vez mais necessária. De acordo como o Levantamento Anual SINASE (2018), aponta para um total de 26.450 jovens em cumprimento de medida, sendo 18.567 em medida de internação (70%), 5.184 em internação provisória (20%) e 2.178 em regime de semiliberdade (8%). Funcionando, no momento da pesquisa, 477 unidades de internação, provisórias e definitivas. Além disso, diversos relatórios nacionais e estudos na área apontam para a ocorrência de muitos abusos, cometidos desde as aplicações inadequadas, até o cumprimento destas em condições subumanas.  Segundo a 2a edição do relatório "Um Olhar Mais Atento às Unidades de Internação e de Semiliberdade para Adolescentes", atualizado pela Comissão de Infância e Juventude do Conselho Nacional do Ministério Público (CIJ/CNMP), verificou que há superlotação nas unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei em 17 estados. Das 27 unidades federativas, 19 delas têm de 50% a 100% das entidades em condições insalubres. Além disso, é na Região Nordeste onde se encontra o maior déficit de vagas e os maiores índices de superlotação nas unidades de internação. Dos 17 estados em que há superlotação, seis são do Nordeste. Embora esses dados se modifiquem anualmente, com avanços e retrocessos sutis e algumas unidades a mais ou a menos, a lógica insalubre e bárbara se mantém.

Desse modo, são mais do que comuns, estruturas físicas inadequadas e insalubres, nessas unidades. Além de uma equipe técnica sobrecarregada de atividades e, muitas vezes, ausente, bem como uma facilidade de surgimento de conflitos. Instituições que se movem no sentido contrário a qualquer ideal educativo e, em contrapartida, apresentam caráter perverso, individualizante e repressivo. (Lúcio, 2018). Nessa crise atual, essa situação fica ainda mais insustentável. Os centros socioeducativos, e demais cárceres, representam uma “estufa” perfeita para a disseminação rápida do COVID-19, sem acesso à saúde, vivendo em uma unidade insalubre, e principalmente, em celas (nomeadas de quartos) com quatro vezes mais jovens do que é possível (e permitido em lei).

Novamente omisso na garantia mínima dos direitos desses jovens da classe trabalhadora, e presente apenas em sua forma repressora, o Estado escolhe quem vai ser encarcerado ou não, bem como quem vive e quem morre. É o que Wacquant (2015) vai chamar de Estado Centauro: com uma face protetora e uma mão aberta para àqueles das classes mais altas; e autoritário e com punhos fechados às classes trabalhadoras. O Estado Penal atua com seu punho fechado por meio da polícia, judiciário e prisões, como também, através dos aparatos econômicos.

No entanto, a situação dos cárceres e suas variações, com o novo Coronavírus, tem sido bastante discutida por muitos movimentos sociais e alguns políticos mais progressistas, de todo o globo, estes clamam por medidas desencarceradoras. Em relação ao cumprimento das medidas socioeducativas, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomenda aos juízes,  devido à pandemia e ao alto risco de contaminação e de mortes, a aplicação preferencial de medidas socioeducativas em meio aberto, bem como a revisão das decisões de internação provisória, especialmente nos casos das adolescentes mães, indígenas e pessoas com deficiências, ainda, adolescentes que estejam em unidades superlotadas ou sem acesso à saúde.

Embora, reacendidos em tempos de corona, muitos dos problemas colocados por essa pandemia não são novos. A situação de violações de direitos sofridas pelos jovens, em cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade, se assemelha à realidade de grande segmento da sociedade brasileira. Violências e violações de direitos que acompanham as classes oprimidas, dentro e fora das grades. Muitos dos adolescentes que não recebem educação durante a medida, não passaram por uma escola antes, bem como não tiveram acesso aos direitos mais fundamentais. Os sujeitos que terão os direitos violados continuam os mesmos.

A crise em que o mundo está, traz à tona o real funcionamento do sistema capitalista e escancara toda a sua desigualdade e barbaridade, em que a produção é pensada e colocada antes da vida dos trabalhadores. Diversos líderes e políticos, que governam para senhores, em todo o mundo, estão dispostos a sacrificar vidas em nome de um suposto desenvolvimento econômico. De acordo com eles, a economia não deve parar e, em nome dela, os trabalhadores autônomos, informais, operários, entre outros, devem voltar a trabalhar, mesmo sob o risco de morrer vítima do COVID-19. A nítida extensão do rótulo de vidas descartáveis ao restante da classe trabalhadora.

Ao lado de um futuro incerto que se modifica cotidianamente em projeções geométricas, é cada vez mais urgente defender e propor medidas desencarceradoras, e principalmente, alternativas às medidas de privação de liberdade. É preciso, também, pensar na união dos trabalhadores em direção a uma solução efetiva, imposta de baixo para cima, que quebre estruturas e busque a construção de uma sociedade sem classes. O levante das classes trabalhadoras contra a barbaridade do capital, em várias regiões da Europa, onde a crise está em um estado mais avançado, deixa esse recado: não morreremos pela economia, pelos patrões. Ou, podemos entender como um recado da vereadora assassinada Marielle Franco que apontou, bem antes de qualquer pandemia, a condição subumana  e de vidas descartáveis em que vive a juventude negra brasileira: “Parem de nos matar!”

 

 

Notas e Referências

Brasil. (2018). Ministério de Direitos Humanos. Levantamento anual SINASE 2016. Brasília, DF:      Ministério de Direitos HUmanos. Recuperado de: http://www.mdh.gov.br/todas-as- noticias/        2018/marco/Levantamento_2016Final.pdf

Cerqueira, D. et al. (2019). Atlas da Violência 2019. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada &             Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Rio de Janeiro, Brasil. Recuperado de http://                    www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas                         _da_violencia_2019.pdf

Lúcio, N. F. (2018). PUNIÇÃO E CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA: UMA ANÁLISE DAS             VIOLAÇÕES DE DIREITOS SOFRIDAS POR ADOLESCENTES EM PRIVAÇÃO DE                  LIBERDADE (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal,           RN. Recuperado de:

Wacquant, L. (2015). Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos [A onda             punitiva] (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Revan.

Weston, F. The lessons of the Italian coronavirus crisis for the workers of the world. In Defense of      Marxism, 27 de março de 2020. Disponível em http://www.marxist.com/the-lessons-of-the-italian-coronavirus-crisis-for-the-workers-of-the-world.htm.  Acesso em 29 de março de 2020.

Zaffaroni, E. R. (2007). O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro, Brasil: Revan.

 

 

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