José Roberto Batochio e a criminalização da advocacia – Por Jader Marques

28/08/2017

Algumas pessoas destacam-se de tal maneira na sua atividade profissional e em sua vida que não necessitam ser apresentadas, porque sua biografia os precede. José Roberto Batochio é um desses casos. O espaço desta coluna não seria suficiente para destacar a importância do seu legado para a advocacia brasileira.

Quem me conhece, sabe que não sou de fazer homenagens imerecidas ou ressaltar qualidades que não reconheço nas pessoas.

No caso, quero falar do perigoso e crescente movimento de criminalização da advocacia ou, indo direto ao ponto, quero trazer para a discussão o disposto no §1º do art. 2º da Lei nº 12.850/2013: Art. 2º - Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa: Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas. § 1º - Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.

Acontece que, mo momento em que os advogados festejam a criminalização da violação às prerrogativas, assunto que me deixa sempre desconfortável, tive a oportunidade de estar com Dr. Batochio e ouvir sua lúcida advertência, exatamente sobre a perigosa abertura proporcionada pelo parágrafo primeiro acima transcrito. Em tempos de (hiper)punitivismo, Batochio alerta para o perigo da interpretação que se vá dar para um tipo penal cujo verbo nuclear é: embaraçar. Repetindo o teor do parágrafo: “Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa”.

Em recente artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo[1], com o título “De leis e salsichas”, o ex-Presidente do Conselho Federal da OAB e autor do Estatuto da Advocacia cita a célebre passagem atribuída ao príncipe Otto Eduard Leopold von Bismarck-Schönhausen, a quem se credita a frase “os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis”. Conforme Batochio, o autor da frase foi o poeta americano John Godfrey Saxe. Bismarck, por outro lado, teria sido o autor de outra máxima: “Com leis ruins e funcionários bons ainda é possível governar. Mas com funcionários ruins as melhores leis não servem para nada”.

Segundo o articulista, não se pode cometer injustiça com as salsichas, que têm ao menos a fiscalização da Vigilância Sanitária. As leis, por outro lado, conforme escreveu: “são promulgadas ao arrepio da lógica e da sabedoria da ciência do Direito e manejadas a bel-prazer pelos que por primeiro deveriam observá-las”.

Sobre o § 1º do artigo 2º, Batochio destaca que: “Considerado isoladamente, o dispositivo se exibe materialmente inconstitucional, porque afronta o princípio da legalidade/taxatividade (qual é exatamente a conduta caracterizadora do delito?), da proporcionalidade (a mesma pena para o bandoleiro e para quem apenas embaraçou a investigação?) e do direito de não se autoincriminar (nemo tenetur se detegere).”

Com esse dispositivo, ingressa no ordenamento jurídico brasileiro a tipificação da (até então) popularmente conhecida: obstrução da justiça.

Leonardo Isaac Yarochewsky, na sua coluna do Empório do Direito, afirma: “Não pode ser confundido com obstrução da justiça o sagrado e constitucional direito de defesa e, consequentemente, o de não produzir prova contra si mesmo ou autoincriminar”. No mesmo texto, alerta para o ponto central do que estou querendo tratar aqui: “Há aqueles que chegam ao absurdo de, intencionalmente e maliciosamente, confundirem atos do direito de defesa com o que se convencionou chamar ‘obstrução da justiça’. Por óbvio, conversas do investigado com seu advogado sobre as estratégias de defesa não podem ser consideradas como obstrução da justiça. Já foi dito que não se podem confundir teses, táticas e argumentos da defesa com atos para impedir ou embaraçar a investigação criminal. Ressalta-se, ainda, que o próprio investigado não pode ser sujeito ativo do citado crime”.[2]

O debate já está no Supremo Tribunal Federal. É que o PSL ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5.567), sustentando a incompatibilidade de dispositivos da Lei nº 12.850/13 com o artigo 1º, inciso III; artigo 5º, incisos LIV, LVII, LXIII; artigo 144, parágrafos 1º e 4º, todos da Constituição Federal. Em liminar, foi requerida a suspensão do artigo 2º, parágrafos 1º, 6º e 7º e artigo 4º parágrafo 14, da Lei das Organizações Criminosas, até a decisão final pelo Plenário do Supremo. No mérito, o Partido requer a procedência da ação com a declaração da inconstitucionalidade dos dispositivos questionados.

Ainda a respeito do tema, vale registrar a atuação da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas (ABRACRIM)[3], no sentido do esclarecimento da sociedade a respeito da importância da proteção das prerrogativas do criminalista. Recentemente, o Presidente Elias Mattar Assad esteve reunido em Brasília com representantes da OAB e do Poder Judiciário, onde a temática esteve toda voltada para a defesa da profissão. No dia 27 de novembro próximo, o assunto volta a ser discutido em São Paulo, quando a entidade estará promovendo um evento próprio no interior da XXIII Conferência Nacional da Advocacia Brasileira. Neste dia, José Roberto Batochio e Técio Lins e Silva apresentarão o Manifesto da ABRACRIM a respeito da questão aqui posta.

A advocacia criminal, quando luta em defesa das prerrogativas profissionais, está defendendo o direito ao direito de defesa, ou seja, atua em nome de toda a cidadania brasileira, contra o abuso do estado em matéria de persecução penal.

Batochio, em seu excelente artigo, assevera com razão: “...é direito de qualquer das partes, inclusive do suspeito, participar da investigação, seja para comprovar a inexistência do crime, seja para provar que não o praticou”. Ainda: “Um suspeito de homicídio tem o direito de, em qualquer fase, requerer diligências para demonstrar, por exemplo, que a suposta vítima está viva. Ou pleitear à autoridade processante a verificação do álibi de que estava ausente do local no dia e na hora em que o crime ocorreu. É cediço e recorrente no cotidiano da jurisdição criminal”. Citando o artigo 14 do CPP, afirma o criminalista que: “A lei deixa claro, pois, que ao acusado é assegurado o direito de participar da investigação penal. Se a autoridade negar indevidamente a providência postulada, seria passível de ser acusada – ela também – de impedir ou obstruir a investigação, pois não é certo que está a interditar ao investigado providências investigatórias que objetivam a busca da verdade? É uma interpretação possível e razoável do vago dispositivo legal em exame. Questão de hermenêutica!”

A atuação do advogado criminalista em defesa do direito de defesa do acusado, não pode ser tratada como EMBARAÇO. O criminalista não atrapalha. Ele fala por quem não pode falar. Veja que, mesmo a mais prepotente autoridade, quando acusada de terrível abuso, necessita de um advogado que atue em seu nome.

Todo o requerimento da defesa pode ser deferido ou negado. Quando indeferido, deve a autoridade apontar por que o dispositivo legal no qual está amparado o pleito, não se aplica ao caso, fundamentando a decisão. Por assim ser, o advogado criminalista, ao atuar em qualquer fase da persecução penal, defende a aplicação da regra do jogo, enfim, defende que as garantias processuais sejam observadas, sem exceções, sem excessos, sem abusos.

Com Batochio, concluímos: “...voltando ao aforismo de Bismarck, resta óbvio que precisamos de leis mais claras e precisas, que não se dobrem à charcutaria dos autoritários de plantão”.

Mais não digo.


Notas e Referências:

[1] Jornal O Estado de São Paulo - 18 Agosto 2017

[2] Obstrução da justiça - http://emporiododireito.com.br/obstrucao-da-justica-2/

[3] www.abracrim.adv.br


 

Imagem Ilustrativa do Post: Me Underground Cell By Mckeyhan // Foto de: Mckeyhan Mancini // Sem alterações

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