No dia 14/02/2022 a internet foi bombardeada com comentários sobre o jogo da discórdia do BBB. Toda segunda-feira o reality show realiza um jogo em que basicamente, um jogador faz observações sobre a personalidade do outro. Na última segunda-feira, cada participante era convidado a dar um adjetivo para outro participante-jogador, após, caso o adjetivo fosse aceito pela maioria da casa como devido, o jogador-acusador jogaria um balde de água suja na cabeça do acusado. Em caso negativo, o jogador-acusado jogaria água em seu acusador.
Alguns acharam o jogo divertido e não viram nenhum problema no arremesso de água sobre a cabeça dos participantes, que estão no reality show de livre e espontânea vontade. Entretanto, é preciso destacar que todas as relações, sejam elas públicas ou privadas, estão sujeitas a valores e princípios fundamentais do ser humano que foram consagrados ao longo da secularização.
Assim, o objetivo aqui, mesmo que de forma breve, é analisar até que ponto é válido o entretenimento da sociedade com submissão a situações vexatórias à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. Para melhor elucidar, interessante relembrar a atração do bar francês do arremesso de anão que causou repercussão mundial, com discussões sobre o princípio da dignidade da pessoa humana e outros princípios fundamentais.
O caso do lançamento de anão é um caso emblemático no Direito, mormente porque a análise do conflito chegou à Comissão de Direitos Humanos da ONU, que precisou sopesar o princípio da dignidade da pessoa humana com o alegado por Manuel Wackenheim, pessoa que era arremessada, no sentido de que ele concordava em participar do evento e que aquela era sua fonte de renda. Em sua defesa, Wackenheim alegou que a proibição de arremessá-lo violaria o direito ao trabalho e à livre iniciativa.
O princípio da dignidade da pessoa humana, positivado na Constituição Federal do Brasil, bem como em outros dispositivos internacionais, garante, dentre diversos desdobramentos, que o indivíduo seja tratado com respeito, já que a dignidade é algo intrínseco a própria existência do ser humano. Nesse ponto, a partir da lógica kantiana, os sujeitos são um fim em si mesmo, constituindo a dignidade um valor intrínseco e soberano. Ao reconhecer tal princípio como um dos pilares da existência humana, garanta-se o direito ao “reconhecimento, respeito, proteção e até mesmo promoção e desenvolvimento da dignidade, podendo inclusive falar-se de um direito a uma existência digna.”[1]
Vivemos nos tempos da modernidade líquida, em que o entretenimento é facilmente acessível, basta o telespectador deslizar seu celular, ligar sua televisão, enfim, somos bombardeados com diversos conteúdos diariamente e muitas vezes sequer paramos para analisar o que estamos assistindo.
Na era digital somos submetidos a conteúdos diários de influencers que, em síntese, são pessoas que se “autopromovem” e a partir dessa atividade obtém sucesso econômico e social. Entretanto, muitas vezes, essas pessoas ultrapassam os limites de sua própria imagem, dignidade ou liberdade de expressão com justificativa que estão gerando conteúdo para as pessoas que buscam entretenimento, ou que estão trabalhando.
Não se trata aqui de mencionar se isto é certo ou errado, que deve ou não ser praticado, até mesmo porque estaríamos possivelmente violando outros direitos fundamentais desses indivíduos. Mas sim, se trata de observar até que ponto as pessoas se submetem a situações vexatórias utilizando de suas imagens para serem vistos pela sociedade.
O caso do arremesso de anão, bem como o caso em que os brasileiros tiveram a oportunidade de assistir nesta última semana, não deixaram de nos trazer a reflexão sobre o tanto que o ser humano dispõe de sua dignidade humana para ser visível, comentado e curtido em cenário nacional. No jogo, adjetivos como arrogantes, trapaceiro, sem personalidade eram dados a outro jogador, admitido o adjetivo pela casa, o adjetivado recebia um banho de água em sua cabeça, tamanho foi o desdobramento do programa que uma das participantes foi acusada de agressão e expulsa do BBB.
Quando Sarlet aduz a respeito do conceito de dignidade da pessoa humana, que entre os seus desdobramentos impõe a existência do tratamento a vida com respeito e dignidade, bem como a vedação da pessoa ser reduzida à condição de mero objeto[2], nos faz repensar que tipo de entretenimento estamos consumindo, mais além disso, nos faz pensar o que estamos fazendo com nossa dignidade, direito este que através de muitas revoluções passou a fazer parte do rol de direitos humanos e que possui diversas características, sendo algumas delas a universal, inalienável e irrenunciável!
Logo, é possível afundar-se em um mar de questionamentos que podem ser analisados em diversas perspectivas, tais como: Até que ponto vale a dignidade do ser humano para entretenimento do outro? Até quando essa disposição de direitos fundamentais nos será “benéfico”? Ou ainda, será que não estamos banalizando esses direitos conquistados arduamente?
A Constituição Federal de 1988, elenca o princípio da dignidade humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, que além da sua característica vertical entre Estado e indivíduo, também deve-se observar seu caráter horizontal, de indivíduo para indivíduo, o que sabemos que muitas vezes em nenhuma direção é observado.
No tocante ao arremesso de anão que ocorreu em outras cidades do mundo não apenas na capital da França, os próprios sujeitos em diversas esferas processuais tentaram justificar o ato sob o fundamento que ganhavam dinheiro com seu arremesso e que haviam consentido para o espetáculo. Porém, sem sucesso as justificativas. No caso específico de Manuel Wackenheim, a Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos entendeu que o arremesso do anão, mesmo com seu consentimento, era um atentado a dignidade da pessoa humana e era necessário banir o fato para a manutenção da ordem pública[3]. Logo, houve a ponderação de princípios e neste caso, prevaleceu a dignidade humana.
A analogia do caso do arremesso de anões com o reality show brasileiro, é apenas para demonstrar como somos escravos da mídia e que qualquer coisa é válida para nos manter sendo vistos por aqueles que estão por detrás das telas. Porém, terão aqueles que vão dizer: Mas ah! O que é um banho de água suja tem a ver com a “minha” dignidade humana? Mas também, terão aqueles que vão dizer: A mesma coisa que simplesmente um balde de água desperdiçado hoje, terá a ver com a falta intensa de água que viveremos amanhã!
Notas e Referências
[1] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 71.
[2] “Com efeito, verifica-se que na sua atuação como limite, a dignidade implica não apenas que a pessoa não pode ser reduzida à condição de mero objeto da ação própria e de terceiros, mas também o fato de que a dignidade constitui o fundamento e conteúdo de direitos fundamentais (negativos) contra atos que vioem ou exponham a ameaças e riscos, no sentido de posições subjetivas que têm por objeto a não intervenção do Estado e de terceiros no âmbito de proteção da dignidade.” SALET, Ingo; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 260.
[3] World Courts. Human Rights Committee 75th Session - 8-26 July 2002. Manuel Wackenheim v.France. Disponível em: http://www.worldcourts.com/hrc/eng/decisions/2002.07.15_Wackenheim_v_France.; htm. Acesso em 15 fev. 2022.
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