Investigação Criminal: reflexões sobre a compatibilização entre a atuação do Advogado e do Delegado de Polícia

17/08/2019

A pesquisa, estudo e vivência de toda problemática que envolve a política de combate à criminalidade refletem o grau de democraticidade[1] de uma sociedade e, consequentemente, a efetividade dos direitos e garantias fundamentais a serem respeitados pelo próprio Estado. O nível [elevado ou não] de respeito aos direitos individuais de uma pessoa, por parte do Estado, demonstra o alcance de respeitabilidade pelos preceitos constitucionais em vigor no ordenamento,[2] ou seja, quanto mais respeitador o Estado for, maior o alcance dos preceitos constitucionais reitores nesta sociedade. Eis, pois, a necessidade de se extirpar a animosidade na atuação ou mesmo no tratamento entre Advogados[as] e Delegados de Polícia. Ambos desempenham funções essenciais, possuindo, para tanto, direitos, deveres e prerrogativas de modo que todo esse emaranhado de regras jurídicas não é excludente ou mesmo impeditivo entre si.

O trabalho do advogado vai além de elaborar peças jurídicas, realizar audiências ou administrar um escritório. A advocacia também conta com uma função social. Este profissional exerce um papel importante na defesa dos direitos de qualquer cidadão e, para que possa exercer tal mister de forma íntegra, a legislação prevê ume série de prerrogativas que viabilizam e favorecem o exercício pleno da profissão. Possibilitam, assim, maior autonomia e independência ao profissional de modo que, justamente por conta de tais prerrogativas, nenhum advogado deve ser constrangido em sua atuação. Tampouco pode ter seu papel diminuído por nenhuma autoridade do Judiciário, executivo, legislativo ou mesmo do Ministério Público. Da mesma maneira, as prerrogativas do advogado não devem ser confundidas com um privilégio. Não se trata de utilizá-las para fins de abusos cometidos pelos próprios profissionais.

Necessário entender que as prerrogativas são garantias que favorecem o exercício pleno da advocacia. Justamente por isso, não devem ser confundidas ou utilizadas para cometer interferências no andamento dos órgãos públicos visando o próprio interesse do profissional. É fundamental que o advogado tenha consciência de suas prerrogativas e, do mesmo modo, é importante que saiba os limites de cada uma delas. Para que a advocacia seja exercida em condições de igualdade e em total liberdade é preciso conhecer quais são e para que servem as prerrogativas do advogado. Assim, pode-se agir de acordo com as disposições legais, sem que haja excesso ou mesmo arbitrariedade. As prerrogativas estão previstas nos artigos 6º e 7º da Lei 8.906/94. Em conformidade a elas, o advogado pode exercer suas atividades de forma autônoma e independente, sem temer a atividade de nenhuma autoridade que tenha o objetivo de diminuir a atividade do advogado.

No mesmo sentido, o Delegado de Polícia exerce função pública e social essencial relacionada à apuração de infrações penais, perquirindo acerca de sua materialidade e autoria, por meio do Inquérito Policial, procedimento administrativo regido por normas jurídicas constitucionais e infraconstitucionais e que serve, em regra, para subsidiar a atuação do Estado/acusador estabelecida pelo Ministério Público (também da vítima no caso de ação penal de iniciativa privada).[3] A persecução penal se inicia ordinariamente por meio de uma investigação criminal, via de regra, através do Inquérito Policial, sendo, posteriormente, remetido ao titular da ação penal para que, só então, analise a viabilidade da formalização de uma acusação através do oferecimento da denúncia ou queixa em juízo.

Dessa forma, o inquérito policial apresenta-se como instrumento de contumaz importância para o Estado, representando, embora não seja o único, o principal meio qualitativa e quantitativamente utilizado nos processos penais pelo país a fora. Malgrado a lei o trate como dispensável, na medida em que o titular da ação penal pode dispor desde já de elementos de informação suficientes para ajuizar a ação penal, não é isso o que se observa como a regra na prática, havendo um considerável domínio desse meio de investigação.[4]  

Para desempenhar a sua função, o Delegado de Polícia possui diversas prerrogativas que garantem a efetividade de sua atuação. Dentre as mais relevantes pode-se observar os poderes de requisição (de exames periciais, informações e etc) e apreensão de bens, a inamovibilidade como garantia de imunização frente a interferências políticas, as representações (por prisões e outras medidas cautelares) perante a autoridade judiciária, o domínio técnico-jurídico estabelecido sobretudo no indiciamento e no relatório final entre outras.[5] Como dito, nenhuma dessas prerrogativas existe senão para o correto desempenho da função essencial de investigação, servindo à sociedade e ao Estado na forma idealizada pela Constituição.

Estabelecidas tais premissas, cumpre observar de que modo é possível compatibilizar ambas as atuações (do Advogado e do Delegado), sobretudo sob uma perspectiva pragmática. Na medida em que os interesses e objetivos são a priori contrapostos, é imprescindível pensar em uma harmonização de ambas as funções, em especial de forma a não prejudicar ou minorar as prerrogativas dos atores envolvidos.

Não raro se observa uma verdadeira “tensão” na atuação desses dois agentes, de modo que com a presente análise, pretende-se jogar alguma luz a respeito do tema sem qualquer objetivo de encerrar a discussão, mas tão somente fomentar o debate e agregar pontos de vista de profissionais que se encontram na “ponta” de toda essa problemática.

            Iniciando o debate, é muito comum observar referências ao inquérito policial e de um modo mais geral à investigação criminal como sendo uma etapa “pré-processual”. O sentido em tal afirmação seria em estabelecer uma função preparatória, cabendo ao inquérito policial angariar os elementos de informação para viabilizar a acusação, enquanto o processo penal em si, fase em que já há a judicialização da demanda através da denúncia ou queixa, se incumbiria do arbitramento de responsabilidade propriamente dito (imposição de pena).

            No entanto, tal afirmação não observa o real sentido da palavra “processo” que, como conceito específico dentro da Teoria Processual, apresenta um significado próprio. Segundo o estágio de desenvolvimento atual, processo significa uma modalidade de procedimento adotado pelo Estado quando o seu agir implica na interferência na esfera jurídica de terceiros, buscando viabilizar a atuação destes sob a forma do contraditório.[6]

            Sendo assim, seja na área criminal com prisões e contrição de bens, seja na área tributária/administrativa com aplicação de multas e outras sanções, sempre que o Estado agir de forma interventiva, necessária será a adoção do processo como forma de legitimar a sua atuação. É dizer, a marca fundamental do processo não é a presença de um agente específico (juiz, p.ex.), mas a atuação interventiva do Estado que demanda que as partes que sejam tocadas em suas esferas de direitos possam atuar como forma de agregar seus valores e pontos de vista, legitimando tanto do ponto de vista jurídico quanto social a decisão final.[7]

            O que ocorre no inquérito policial e em toda as modalidades de investigação criminal é justamente uma atuação como a definida acima. Por meio de tais instrumentos é possível apreender e alienar bens, aprisionar pessoas, afastá-las de suas funções, restringir o contato com pessoas de sua família entre outras formas de intervenção que representam modalidades de arbitramento de responsabilidade (diferentes da pena, mas ainda assim sanções).

É indubitável que o processo admite variada tipologia segundo o ramo de atuação e os interesses envolvidos (trabalhista, administrativo, cível, criminal – investigação e instrução, etc.),[8] não possuindo o inquérito policial as mesmas características que a fase processual de acusação em juízo. Todavia, tal diferença não permite simplesmente negar a sua verdadeira natureza a pretexto de consagrar o interesse do Estado em apurar os delitos à míngua das garantias mínimas que devem ser observadas em qualquer formato processual.

Por isso é tão importante assegurar um espaço adequado de atuação da defesa na investigação criminal como forma de viabilizar o contraditório. A partir de tal elemento as conclusões finais atingidas no bojo do procedimento terão maior legitimidade (dentro e fora do processo em si). Ninguém nega que um servidor público submetido a um processo administrativo de demissão que tramite perante o seu superior hierárquico tenha que estar assistido por advogado e que as conclusões finais serão mais legítimas do que aquelas obtidas de forma unilateral. Entretanto, quando se pensa na investigação criminal, o desejo de repressão criminal praticamente “cega” as pessoas motivando-as a pensarem que a atuação do Estado deve ser única e a defesa, quando atua, o faz para “atrapalhar”.

Diante de todo esse contexto é necessário pensar como compatibilizar ambas as atuações, ou seja, em que medida essa modalidade de processo irá viabilizar a atuação dos interessados, no caso a defesa dos investigados.

Parece fora de dúvida que o contraditório na fase processual de investigação criminal não será pleno tal qual aquele desenvolvido em uma audiência de instrução, tendo em vista a existência de diligências necessariamente sigilosas, por exemplo os chamados métodos ocultos de investigação (interceptação telefônica e de e-mails, infiltração de agentes),[9] cuja efetividade depende de um sigilo inicial. No entanto, isso não dispensa a obrigação dos agentes públicos envolvidos de observarem um padrão mínimo de conduta que assegure a participação da defesa, presente ou futuramente.

Um grande exemplo disso é a necessidade de preservação da chamada cadeia de custódia da prova, que evidencia com base documental toda a trajetória de aquisição do elemento de prova, permitindo que a defesa se manifeste a respeito. Como denuncia Geraldo Prado, “ [n]o direito brasileiro praticamente não há referências doutrinárias à cadeia de custódia, designação pela qual é conhecido o dispositivo que pretende assegurar a integridade dos elementos probatórios, não obstante o seu significado em termos de redução de complexidade de garantia constitucional contra a prova ilícita.”[10]

Todavia, não é possível exigir-se tal obrigação por parte dos Delegados de Polícia e dos demais setores das agências de investigação sem um mínimo de respaldo jurídico e estrutural. É necessário enquadrar corretamente a atuação dos Delegados de Polícia como atividade técnica e jurídica autônoma, livre de interferências políticas (assim como é o Ministério Público), eis que as decisões tomadas são realizadas com base em critérios objetivos. Ademais, urge a necessidade de uma reestruturação completa dos setores de investigação (administrativo, pericial, operacional), iniciando-se pelo nível de investimento regularmente realizado, para que se dê a possibilidade concreta de que tais obrigações sejam cumpridas, do contrário haverá sempre essa dissonância entre prática e teoria.

Um outro elemento essencial para a compatibilização entre as atuações dos Advogados e dos Delegados de Polícia é sem dúvida a necessidade de lutar contra a tendência de criminalização da advocacia. É possível dizer que em países de vertente mais autoritária de pensamento como o Brasil e os demais países latino-americanos há uma tendência de se criminalizar a defesa técnica quando esta empreende uma defesa ativa, além de se relativizar as garantias, notadamente a confidencialidade entre advogado e cliente.[11]

É possível observar, na prática, a imputação de advogados como membros de organizações criminosas muitas vezes pelo simples fato de exercerem a defesa de forma ativa. Quando um advogado é constituído para defender determinada pessoa acusada de integrar organização criminosa, é de se esperar que este conheça a suposta organização, converse com pessoas muitas vezes foragidas, tome conhecimento de crimes, entre outros, sem que isso represente que o advogado está associado para a prática de tais crimes.

Como ressalta Geraldo Prado, o tema da participação penalmente relevante de advogados em delitos alheios é extremamente delicado porque, não raro, toca nas fronteiras do exercício do direito de defesa, consagrado como fundamental nos textos constitucionais e tratados internacionais de direitos humanos. Sendo assim, o autor se vale do conceito de ações neutras como aquelas contribuições a fatos ilícitos alheios não manifestamente puníveis, que aparecem em contextos de atuação profissional, cotidiana ou habitual, para diferenciar a atuação profissional regular do advogado, que exerce a defesa ativamente, dos comportamentos penalmente relevantes.[12]

Por fim, é possível ainda apontar como elemento essencial para a compatibilização entre a atuação do Advogado e do Delegado de Polícia a necessidade do desenvolvimento de um pensamento metodológico no que tange a atuação processual. Muito do que se entende por preparação e atuação processual propriamente dita ainda encontram-se atrelados a padrões subjetivos quase intuitivos de cada advogado, promotor, delegado atuante, não havendo na doutrina nacional a preocupação com a sistematização de técnicas que auxiliem a atuação e, consequentemente, a compatibilização entre atuação dos agentes.[13]

É possível observar que o ensino jurídico no Brasil se limita a veicular conhecimentos teóricos, especialmente acerca da lei e da jurisprudência. Por exemplo, se observada a grade curricular de uma faculdade de Direito brasileira, dificilmente se encontrará qualquer atividade de cunho obrigatório concernente ao treinamento de profissionais para a litigância de forma prática (laboratórios de argumentação p.ex.). O ensino prático é comumente associado ao estudo da jurisprudência dos tribunais e a escritórios modelo de peticionamento.

Além disso, as disciplinas são, geralmente, transmitidas sob a perspectiva do juiz como gestor do processo de modo que, dificilmente, incorporam a visão das partes que efetivamente atuam nas diferentes causas. Isso tudo cria um déficit no que tange ao momento de atuar de forma concreta, contribuindo para o acirramento entre os agentes ora analisados, já que a ausência de referenciais teóricos e práticos importa no desconhecimento de sua própria função, não sendo raro ver Advogados mais inquisitoriais do que Delegados.

Sendo assim, diante de tudo que foi exposto é possível observar que o tema da compatibilização entre as funções do Advogado e do Delegado de Polícia no âmbito da investigação criminal não é algo simples, demandando estudos mais avançados que indiquem pontos de reflexão aptos a permitirem uma harmonização entre as funções e, consequente, uma melhora no âmbito do próprio objeto do processo em si. Foi defendido nessas breves linhas que a investigação criminal representa indubitavelmente etapa de cunho processual, o que demanda a necessidade de assegurar a atuação das partes envolvidas.

Como forma de compatibilizar a atuação dos agentes envolvidos nessa fase particular, a observância de padrões de conduta que viabilizem o contraditório, especialmente relacionados à preservação do material probatório por parte dos Delegados de Polícia; a reestruturação jurídica da carreira dos Delegados de Polícia, com a garantia de uma atuação autônoma e livre de influências políticas, equiparada ao Ministério Público e os demais envolvidos no processo, e estrutural, com a observância dos investimentos necessários; a luta contra a criminalização da advocacia, garantindo-se o respeito necessário aos advogados no desenvolvimento de suas funções e o aprofundamento do estudo prático acerca da atuação processual, desenvolvendo-se uma metodologia de atuação fundada sob a perspectiva das partes do processo são alguns dos pontos propostos e que podem em muito contribuir com o objetivo de melhorar a compatibilização entre Advogados e Delegados de Polícia no sistema processual pátrio.

 

 

Notas e Referências

[1] MARTINS, Rui Cunha. O Ponto Cego do Direito. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010.

[2] LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal. Introdução Crítica. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2017., p. 67.

[3] “O inquérito Policial é um procedimento administrativo realizado pela Polícia Judiciária, consistente em atos de investigação visando a apurar a ocorrência de uma infração penal e sua autoria, a fim de que o titular da ação penal possa exercê-la, bem como requerer medidas cautelares.” BADARÓ, Gustavo H. Processo Penal. 5ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 122.

[4] CHOUKR, Fauzi. Hassan. Iniciação ao processo penal. 1ed. Florianópolis, SP: Empório do Direito, 2017, p. 266.

[5] Vide Lei 12830/2013.

[6] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: AIDE Editora, 2011, p. 103.

[7] É como aponta Fazzalari: “Tal estrutura consiste na participação dos destinatários dos efeitos do ato final em sua fase preparatória; na simétrica paridade de suas posições; na mútua implicação das suas atividades (destinadas, respectivamente, a promover e impedir a emanação do provimento); na relevância das mesmas para o autor do provimento; de modo que cada contraditor possa exercitar um conjunto – conspícuo ou modesto, não importa – de escolhas, de reações, de controles, e deva sofrer os controles e reações dos outros, e que o autor deva prestar contas dos resultados. (...). Existe, em resumo, “processo”, quando em uma ou mais fases do iter de formação de um ato é contemplada a participação não só – e obviamente – do seu autor, mas também dos destinatários dos seus efeitos, em contraditório, de modo que eles possam desenvolver atividades que o autor do ato deve determinar, e cujos resultados ele pode desatender, mas não ignorar.” FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 119-120.

[8] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: AIDE Editora, 2011, p. 115.

[9] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra de cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 59.

[10] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra de cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 80.

[11] PRADO, Geraldo. Ações neutras e incriminação da advocacia. In: PRADO, Geraldo. Estudos Jurídicos. São Paulo: Editora Contracorrente, 2018, p. 242.  

[12] PRADO, Geraldo. Ações neutras e incriminação da advocacia. In: PRADO, Geraldo. Estudos Jurídicos. São Paulo: Editora Contracorrente, 2018, p. 245-246.

[13] BARILLI, Raphael Jorge de Castilho. Teoria do caso e sua aplicação ao processo penal brasileiro. Curitiba: Editora CRV, 2019.

 

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